Por SEAN PURDY*
É essencial que nós que apoiamos o movimento contra o genocídio na Palestina tirássemos as importantes lições de movimentos de protesto semelhantes no passado
Inevitavelmente, questões históricas são levantadas no discurso público quando há explosões de revolta como agora no movimento estudantil em solidariedade com a Palestina e contra o genocídio na Gaza. Com mais de 100 ocupações de campi universitários nos Estados Unidos e outras dezenas no Canadá, Europa, Ásia e América Latina, o movimento estudantil pró-palestino tem capturado a imaginação de milhões de pessoas no mundo contra o brutal genocídio acontecendo em frente dos nossos próprios olhos na Gaza.
É essencial que nós que apoiamos o movimento contra o genocídio na Palestina tirássemos as importantes lições de movimentos de protesto semelhantes no passado. Como parte desse processo, é também preciso desmentir o abuso de história evidente na mídia, nos governos e nas organizações pró-Israel sobre a atual onda de protestos nos campi norte-americanos. A seguir, apontamos alguns abusos, entre muitos outros.
Como o Professor Rashid Khalidi da Universidade Columbia bem lembrou, no site oficial da biblioteca e de outros sites da Universidade Columbia há homenagens aos alunos que ocuparam o campus em 1968 contra a guerra do Vietnã mesmo que a própria universidade na época chamou a polícia para violentamente esmagar os protestos. O movimento estudantil dos anos 1960-1970 é justamente elogiado por seu papel importante no fim da guerra dos Estados Unidos contra Vietnã que matou mais de um milhão de civis no país sem falar das centenas de milhares no Laos e Camboja.
No dia 30 de abril, a administração dessa mesma universidade, apoiada pela mídia convencional, políticos dos dois partidos políticos principais, organizações pró-Israel nos EUA (e no Brasil) e o governo de Israel, elogiaram o violento despejo do acampamento em solidariedade com Palestina pela polícia de Nova York com centenas de presos. Foi repetido pela polícia ao mesmo tempo na Universidade da Cidade de Nova York e no dia seguinte na Universidade de Nova York.
Ativismo estudantil legitimo que tinha um papel crucial nas lutas para um melhor mundo é elogiado na memória pública coletiva por políticos e governantes quando é abstrata, uma coisa do passado distante, mas não quando é um confronto atual sobre exatamente as mesmas coisas envolvendo liberdade de expressão e movimentos sociais. Até agora, houve despejos violentos pela polícia em vários campis nos EUA com mais de três mil estudantes presos além de dezenas de professores. Numa das cenas mais chocantes, a Professora Annelise Orleck, judia e chefe do Departamento de Estudos Judaicos na Dartmouth College, foi presa violentamente no 1º. de maio enquanto tentava proteger alunos e negociar com a polícia.
Enquanto isso, a polícia tem rotineiramente ignorada ou até protegida, agressivos provocações e violentos por manifestantes pró-Israel. No 1º. de maio na Universidade de California, em Los Angeles, jagunços sionistas feriram 25 estudantes pró-palestinos, um ataque completamente ignorado pela polícia.
Outro exemplo gritante: a mídia, governos, polícia e organizações pró-Israel falando que a palavra “intifada” – reivindicado pelos estudantes em solidariedade com Palestina – significa, por definição, ataques violentos.
É uma distorção da palavra em árabe que significa “revolta” em geral. Em árabe, as revoltas pacíficas da Primavera Árabe, por exemplo, foram chamadas intifada. No site em árabe do Museu do Holocausto em Washington, o Levante do Gueto de Varsóvia é chamado intifada. Mesmo assim, o significado da palavra é distorcido para justificar a criminalização de legitimas movimentos sociais atuais.
Por fim, apoiadores de Israel dizendo que os acampamentos pró-palestinos nos campi norte-americanos são ilegais de acordo com o Ato de Direitos Civis de 1964 que proibiu segregação nos EUA. O Ato foi estabelecido como resultado de vários anos de mobilização pelo movimento por direitos civis. Milhares foram presos e dezenas mortas em atos de desobediência civil. Além da hipocrisia de apoiadores de Israel falarem em “segregação” enquanto sustentam apartheid na Palestina, é um flagrante abuso de história.
Na Universidade de Mississippi, palco de um dos mais nojentos exemplos de racismo na história dos Estados Unidos quando supremacistas brancos tentaram impedir a entrada do primeiro aluno negro na universidade em 1962 houve uma cena semelhante no dia 3 de maio de 2024. Uma multidão de alunos brancos com bandeiras dos Estados Unidos contra o acampamento de alunos pró-palestinos testemunhou um aluno branco confrontando uma mulher negra no acampamento imitando um macaco com gestos e voz. O governador do Estado de Mississippi tuitou que a manifestação dos alunos brancos “esquentou seu coração”.
Os estudantes nos EUA nos anos 1960-70 estavam errados sobre a guerra do Vietnã? Não. Estavam errados sobre apartheid na África do Sul nos anos 1970-80? Não. Estavam errados sobre as brutais e ilegais guerras contra Iraque e Afeganistão nos anos 2000? Não.
Não estão errados sobre o genocídio na Gaza.
*Sean Purdy é professor de história dos Estados Unidos na USP. Autor, entre outros livros, de O general estadista: Douglas MacArthur (Intermeios). [https://amzn.to/3ELP16Y]
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