Por CARLOS ATÍLIO TODESCHINI*
Porto Alegre tem o melhor sistema de proteção contra cheias do Brasil. É considerado um “minissistema holandês”. Por que esse sistema falhou em sua função de evitar que a cidade fosse alagada?
1.
Para que fique evidente meu conhecimento das questões que envolvem a tragédia que estamos vivendo no Rio Grande do Sul, devo informar que fui Chefe de Gabinete e Assessor Especialista do Departamento de Esgotos Pluviais (DEP), de 1993 a 1996, Diretor de Conservação e Diretor do DEP em 1997, e posteriormente Diretor-Geral do Departamento Municipal de Água e Esgotos (DMAE) de 2001 a 2004.
Antes de qualquer observação técnica é preciso registrar que estamos passando por um desastre inédito. Dois fatores contribuíram significativamente para configurar este quadro: (i) o aquecimento do oceano Atlântico (que ficou em média quatro graus acima da média histórica) e (ii) os sinais de perda de capacidade da floresta amazônica de capturar os rios voadores que sobrevoam a região. Essa conjunção de fatores foi agravada pelo aquecimento desmedido do centro-oeste e sudeste do país.
Quando uma corrente amazônica chega à região e entra em choque com as correntes frias do sul, os rios voadores desabam. De novo foi no Rio Grande do Sul que o fenômeno aconteceu. E, com isso, quase 90% de seus municípios foram atingidos (alguns deles foram reduzidos a vestígios). Os prejuízos são incalculáveis e a reconstrução demandará tempo indeterminado, além de recursos vultosos. Algumas cidades provavelmente não serão reconstruídas no mesmo local onde existiam porque duas cheias no intervalo de oito meses já demonstraram a inviabilidade urbana dos respectivos sítios.
Mas é necessário também registrar que Porto Alegre tem o melhor sistema de proteção contra cheias do Brasil, composto por Diques, Casas de Bombas, pelo Muro da Mauá, por comportas de superfície e de gravidade, e ainda pela estrutura predial da usina do gasômetro. É um complexo que representa investimentos que ultrapassam um bilhão de dólares, construído durante várias décadas (desde 1941). O sistema é robusto e capaz de proteger a cidade contra inundações até a cota 6 de cheia do Guaíba (a qual, ressalte-se, não foi atingida nos eventos). É considerado um “minissistema holandês”.
Ainda assim, mesmo com a inundação tendo atingido níveis nunca medidos antes, o sistema serviu para retardar a chegada da onda de cheia e dar tempo de evacuações – o que permitiu a preservação de vidas. O que não aconteceu em Canoas onde, só na UTI do pronto socorro municipal, nove pessoas não puderam ser resgatadas, sem considerar mortos e desaparecidos cujo número final só poderá ser conhecido quando as águas baixarem.
2.
Mas cabe perguntar: porque o sistema de Porto Alegre – embora tenha permitido ganho de tempo para evacuações – falhou em sua função de evitar que a cidade fosse alagada (fato que gerou e gerará gigantescos danos de ordem sanitária, social, urbanística e econômica)? É preciso ser claro e evidenciar: as últimas gestões do município de Porto Alegre e do estado do Rio Grande do Sul têm dispensado um tratamento desleixado e de desmonte das estruturas públicas em geral – gênero das quais são espécie as estruturas públicas de proteção.
O conceito do sistema de proteção é o mesmo da Holanda. O colapso atual, contudo, acontece porque os serviços básicos de manutenção não foram feitos e então, por decorrência, pelo menos duas comportas não resistiram à pressão da água e foram a pique: o abandono das suas estruturas – enferrujadas, emperradas, sem graxa e sem pintura – chegou a tal ponto que assistimos a comporta da região central ser acionada por uma retroescavadeira.
Nos vários momentos da nossa gestão fazíamos a manutenção preventiva das comportas – tanto as de superfície, quanto as de gravidade – quando recebiam tratamentos e reparos relacionados a ferrugem, pintura, vedação, mobilização e outros, a ponto de serem acionadas manualmente a qualquer momento em caso de necessidade. As comportas de gravidade ficam submersas nos poços das casas de bombas (portanto não aparentes), e têm a função de realizar o esgotamento por gravidade quando o nível do rio está mais baixo do que o da cidade.
Essas comportas fazem parte das estruturas do sistema de proteção contra as Cheias: quando o rio está acima da cota 3 (mais alto que várias áreas da cidade), elas fecham com a pressão do rio e, então, o escoamento é feito pela elevação da água pelo acionamento do sistema de bombeamento. Sua manutenção é cara e é feita por serviços de mergulho altamente especializados.
É importante registrar que esse problema já havia aparecido na enchente de 2023. No entanto o prefeito Nelson Marchezan (2017-2020) decidiu extinguir o DEP – a única Secretaria integrante do primeiro escalão no Brasil para cuidar da drenagem e do serviço de proteção contra enchentes – da estrutura administrativa do município e o transformou em um mero departamento do DMAE, cindindo suas atribuições entre esse reduzido departamento e outra secretaria da administração direta – fato que gerou desconexão e desarticulação entre a tarefas que o DEP executava de forma unificada.
A prova do negacionismo dos atuais mandatários está, por exemplo, em um vídeo do prefeito Sebastião Melo afirmando em programa de TV que o muro da Mauá não mais deve existir. Ocorre, contudo, que o referido muro é parte do sistema de proteção da cidade contra cheias do Guaíba, é uma cortina de concreto no centro histórico da cidade (de 2,6 km de extensão) que liga o dique da Avenida Castelo Branco à Usina do Gasômetro (duas estruturas igualmente integrantes do sistema de proteção contra cheias). O muro possui comportas metálicas de superfície, (portões) as quais ligam o centro da cidade ao antigo cais do porto.
Essas comportas foram construídas para serem abertas quando necessário (para acesso ao cais do porto), bem como fechadas quando a cheia do Guaíba ameaçar a cidade com inundação. Sendo assim, é de delicada essencialidade que tais comportas recebam manutenção permanente – de proteção contra corrosão e verificação de trilhos, rolamentos, borrachas de vedação, parafusos e todos os demais componentes necessários à plena e emergencial operação do equipamento. Poucas dessas rotinas de manutenção, contudo, foram feitas nos últimos 20 anos – e, por isso, ao menos duas dessas comportas colapsaram, motivo pelo qual a água invadiu o centro da cidade e o inundou com o mesmo nível das águas do rio.
Ora, se o prefeito declara que o muro “não mais deve existir”, por que gastar recursos em manutenção de sua estrutura complementar (diques e comportas)? Por que investir em manutenção e cuidados nas casas de bombas e seus equipamentos eletromecânicos? Por que investir em reparos e desassoreamento dos canais e condutos forçados?
O prefeito Sebastião Melo propaga, também, a ideia de que é necessária outra solução para a proteção da cidade. Sem muro ou mesmo casa de bombas. Só que não sabe dizer qual seria essa solução! E mais: se ela existisse, essa nova proposta tinha que ser implantada antes de se destruir a atual.
Na mesma linha de especulação sobre a derrubada do muro da Mauá, há também registro em vídeo do governador Eduardo Leite. E essa postura de gestão apresentada por Sebastião Melo e Eduardo Leite desnuda claramente o caráter de seu preparo e de suas preocupações como gestores públicos: comprova que desconhecem o sistema de proteção pelo qual são direta ou indiretamente responsáveis, bem como sua postura servil à especulação imobiliária e ao mercado, principais fontes de especulações sobre a derrubada de parte do sistema de proteção da cidade contra cheias.
*Carlos Atílio Todeschini é engenheiro agrônomo. Foi Chefe de Gabinete e Assessor Especialista do DEP, de 93 à 96, Assessor Engenheiro do prefeito de Poa em 96, Diretor de Conservação e Diretor do DEP em 97, e Diretor-Geral do DMAE de 2001 a 2004.
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