A extravagante política de juros do Banco Central

Imagem: Karolina Grabowska
Whatsapp
Facebook
Twitter
Instagram
Telegram

Por PAULO NOGUEIRA BATISTA JR.*

São duvidosos os argumentos em defesa das generosas taxas de juro que o mercado tanto aprecia e que tanto o favorece

1.

Volto a escrever sobre a extravagante política de juros do Banco Central. O assunto é vasto; vou me ater ao que parece mais relevante na atual conjuntura brasileira.

Começo com a divisão da diretoria do Banco Central. Antes da mais recente reunião do Comitê de Política Monetária do Banco Central (Copom), a mídia anunciou um combate de proporções épicas. De um lado, os conservadores, defendendo redução de 0,25 ponto percentual da Selic, a taxa básica de juro. De outro, os revisionistas, lutando por uma diminuição de 0,5. Prevaleceu o grupo conservador, com cinco votos, contra o grupo minoritário, os quatro diretores indicados pelo presidente Lula.

Mas foi, na verdade, uma Batalha de Itararé. Entre mortos e feridos, salvaram-se todos. A ata dessa reunião do Copom, como seria de prever, valeu-se do habitual “banco centralês” para apaziguar ânimos e restabelecer a concórdia entre os nove ilustres integrantes do colegiado.

Persiste o problema de fundo, entretanto. Em dezembro, termina o mandato do atual presidente do Banco Central – o que é motivo de esperanças e temores. Esperanças para nós, que queremos uma mudança de orientação da política monetária. Temores para a turma da bufunfa, sempre agarrada à prática de juros exorbitantes.

O que quer o mercado? Idealmente, que Roberto Campos Neto continue ou, o que daria no mesmo, que seja substituído por outro funcionário graduado do sistema financeiro, daqueles que seguem o script e não ameaçam os interesses estabelecidos.

Não sendo isso possível, e por via das dúvidas, a turma da bufunfa tenta intimidar o governo, em especial o ministro da Fazenda. Faz sentir, de várias maneiras e por vários canais, que a escolha não pode recair sobre nome pouco palatável. Se o sucessor não puder ser um deles, que seja uma figura inofensiva e cooptável.

A mídia corporativa, que sempre ecoa as inquietações e interesses do mercado financeiro, prevê há tempos, sem muita alegria, que Gabriel Galípolo, será o próximo presidente do Banco Central. Galípolo tem um perfil pouco usual – formação econômica heterodoxa, mas com passagem pelo sistema financeiro. Foi um dos quatro que preferia um corte de 0,5 pontos percentuais na última reunião do Copom. Provavelmente liderou o grupo dissidente.

Parece-me, aliás, que montaram uma pequena armadilha para ele. Aproveitaram algumas declarações suas ligeiramente “fora da caixa” para estigmatizá-lo como um pouco irresponsável e sujeito à influência política do governo. Roberto Campos, em contraste, seria “técnico”, “responsável” e “independente”. Um disparate. Entretanto, o placar do Copom, 5 a 4, ajudou a dar alguma sustentação a essa narrativa.

2.

Mas deixemos de lado esses movimentos táticos. Há questões mais fundamentais, entre outras a seguinte: por que o BC insiste tanto na política de juros altos? É possível justificá-la?

Os efeitos colaterais são muitos e desagradáveis. A política monetária prejudica as finanças públicas via custa da dívida governamental, dificulta o crescimento econômico e a formação de capital, provoca concentração da renda nacional. Os argumentos em seu favor teriam que ser muito fortes. E são? Vejamos.

A argumentação do Banco Central tem essencialmente duas partes. A primeira é que a sua tarefa primordial, estabelecida em lei, é conduzir a política de juros de forma a alcançar as metas de inflação definidas pelo Conselho Monetário Nacional (CMN). Pela legislação vigente, o Banco Central só deve se preocupar secundariamente com os efeitos da sua política sobre os níveis de atividade e de emprego. Em outras palavras, a lei brasileira estabelece para o Banco Central um mandato dual, porém assimétrico. Na prática, o foco é na inflação.

A segunda parte do argumento é que os modelos macroeconômicos adotados pelo Banco Central indicariam, supostamente com alguma segurança, que o elevado nível da Selic é indispensável para garantir a convergência da inflação às metas fixadas pelo CMN. Os efeitos adversos da política monetária sobre a atividade econômica, o déficit público e a distribuição da renda seriam o preço a pagar para manter a inflação dentro das metas.

Essa argumentação pode parecer sólida, ela conta com muito apoio no mercado financeiro, na mídia e nos meios acadêmicos tradicionais. E, no entanto, não é difícil perceber as suas fragilidades.

Omite-se, com frequência, o fato de que o Banco Central não é simplesmente um executor de metas fixadas pelo CMN. O presidente do Banco Central é um dos três membros do Conselho, sendo os outros dois os ministros da Fazenda e o do Planejamento. Este último tende a ter menos peso por estar distante dos assuntos monetários. Atualmente, como a ministra Simone Tebet não é do ramo, a influência do Planejamento é ainda menor do que a habitual.

Além disso, o Banco Central exerce a secretaria do Conselho. Como sabe qualquer pessoa experiente, quem exerce a secretaria de um órgão tem peso decisivo nas suas deliberações. Assim, repito pela enésima vez, o Banco Central, em larga medida, fixa a metas para si próprio. Essa foi essa uma das questões “fora da caixa” levantadas por Gabriel Galípolo pouco tempo antes da mais recente reunião do Copom.

Além disso, e talvez mais relevante, cabe a dúvida: será que as metas de inflação não seriam excessivamente ambiciosas, contribuindo para que os juros fiquem nas alturas? O presidente Lula fez essa pergunta publicamente algumas vezes. Ficou sem resposta convincente. Se o centro da meta de inflação fosse um pouco mais alto e o intervalo de tolerância (a distância entre teto e piso), um pouco mais amplo, não teria o Banco Central mais raio de manobra para suavizar a política de juros?

A meta para 2025, por exemplo, é 3% com um intervalo de tolerância de 1,5 p.p. para cima e para baixo. Um ajuste modesto das metas estabelecendo, digamos, uma meta de 3,5%, com intervalo de tolerância de 2 p.p. para cima e para baixo dificilmente traria risco de descontrole inflacionário e favoreceria a prática de juros reais mais civilizados.

Mas não é só isso. Que modelo ou modelos são esses que geram a necessidade de manter juros sempre na estratosfera? Todo modelo econômico envolve uma dose considerável de incerteza. Qualquer um que tenha experiência nessa área sabe que eles não são capazes de dar respostas unívocas às principais questões. Por isso, aliás, é que os Bancos Centrais nunca se baseiam apenas em modelos e nas projeções deles derivadas. Para a tomada de decisões, observam todo um conjunto de variáveis, indicadores e informações.

Ora, muitos desses indicadores sugerem que seria possível, sim, flexibilizar mais rapidamente a política monetária. Dadas as incertezas que sempre cercam a questão, a polêmica é inevitável e tende a ser acirrada. Em favor da redução, pode-se alinhar as seguintes evidências, entre outras. A taxa de inflação corrente está sob controle e não apresenta tendência de alta. Para este ano e o próximo, as projeções de inflação não indicam grande diferença em relação às metas.

A economia apresenta capacidade ociosa na indústria e taxas elevadas de desocupação dos trabalhadores (sobretudo nas definições mais amplas de desemprego). Existe, finalmente, muita folga no balanço de pagamentos, o que permite ampliar as importações com tranquilidade. A catástrofe no Rio Grande do Sul, como todo choque de oferta, pressiona a inflação e derruba a produção, mas não modifica radicalmente, até onde se pode enxergar, o quadro econômico nacional.

Má notícia para a militante turma da bufunfa: parecem duvidosos os argumentos em defesa das generosas taxas de juro que tanto apreciam e que tanto os favorecem. Boa notícia para os inconformados com a política monetária atual: os juros poderiam ser mais baixos, com impacto benéfico sobre a atividade econômica, o emprego, a dívida pública e a distribuição da renda.

*Paulo Nogueira Batista Jr. é economista. Foi vice-presidente do Novo Banco de Desenvolvimento, estabelecido pelos BRICS. Autor, entre outros livros, de O Brasil não cabe no quintal de ninguém (LeYa) [https://amzn.to/44KpUfp]

Versão ampliada de artigo publicado na revista Carta Capital, em 17 de maio de 2024.


A Terra é Redonda existe graças aos nossos leitores e apoiadores.
Ajude-nos a manter esta ideia.
CONTRIBUA

Veja neste link todos artigos de

10 MAIS LIDOS NOS ÚLTIMOS 7 DIAS

__________________
  • Como os soviéticos venceram a desertificaçãocccp 22/09/2024 Por RICARDO CAVALCANTI-SCHIEL: O Grande Plano da URSS para a Transformação da Natureza nos conta que a magnitude do seu impacto só foi possível porque aliou conhecimento, planejamento sistêmico e vontade soberana da nação
  • América do Sul — uma estrela cadenteJosé Luís Fiori 23/09/2024 Por JOSÉ LUÍS FIORI: A América do Sul se apresenta hoje sem unidade e sem qualquer tipo de objetivo estratégico comum capaz de fortalecer seus pequenos países e orientar a inserção coletiva dentro da nova ordem mundial
  • Marx e a financeirização – o exuberante capital fictíciodolar olho 48 18/09/2024 Por RENILDO SOUZA: O papel crucial da ciência e da tecnologia na economia capitalista do século XXI favorece a valorização das mercadorias-conhecimento gerando as chamadas renda-conhecimento
  • O avesso de Marxcultura los soles 14/09/2024 Por TIAGO MEDEIROS ARAÚJO: Comentário sobre o livro recém-lançado de José Crisóstomo de Souza
  • O caminho do meioamazon 22/09/2024 Por JOSÉ DIRCEU: A Amazon é a nova aposta dos EUA pelo controle dos ativos digitais brasileiros
  • Franz Kafka e seu bestiário em trânsitopexels-moldyfox-3924726 20/09/2024 Por RICARDO IANNACE: Comentários sobre o bestiário em Kafka
  • O livro de CatuloPaulo Martins – Foto_edited 03/09/2024 Por PAULO MARTINS: O que nos resta de Catulo é suficiente para dizer que seu ecletismo genérico (dos gêneros poéticos) é impressionante
  • A base estrutural das novas direitasELEUTERIO2 25/09/2024 Por ELEUTÉRIO F. S. PRADO: A civilização aparece finalmente como barbárie e a humanidade parece caminhar para a extinção
  • Fredric Jameson (1934-2024)Frederic Jameson 24/09/2024 Por THOMAS AMORIM: Como Walter Benjamin percebeu, os mortos seguem interessados na construção de um futuro melhor e também Fredric Jameson continua e continuará conosco
  • O último pub — The old oakcultura telefone 22/09/2024 Por WELLINGTON MEDEIROS DE ARAÚJO: Comentário sobre o filme de Ken Loach

PESQUISAR

TEMAS

NOVAS PUBLICAÇÕES