Pelo fim das prisões

Giovanni Battista Piranesi’s (1720–1778), As prisões da imaginação, 1761.
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Por JULIAN RODRIGUES*

Considerações a partir do livro recém-lançado de Alípio DeSouza Filho

As estatísticas não são totalmente precisas – o que, aliás, já é por si só um indício do tamanho desse imbróglio. Grosso modo, as estatísticas apontam que há cerca de 840 mil pessoas cumprindo pena no Brasil – em regime fechado, semiaberto ou aberto.

Apenas os EUA (com seus 1,23 milhão de encarcerados) nos ultrapassa nesse ranking cruel – o que, aliás, diz muito sobre o nível de repressão e violência lá e aqui. Alguns levantamentos informam que haveria na China cerca de 1,7 milhão de presos. Mas é necessário considerar o viés de propaganda anticomunista na compilação e divulgação de tal estatística.

Entretanto, a tendência norte-americana é de redução do total de apenados – ao contrário do Brasil, que tem aumentado significativamente a população presa. Na última década caiu 22% o total de encarcerados nos EUA, enquanto aqui o número cresceu 44%!

Segundo a Secretaria Nacional de Políticas Penais (SENAPPEN): “o número total de custodiados no Brasil é de 644.794 em celas físicas e 190.080 em prisão domiciliar referentes a junho de 2023”. Cerca de 70% são pretos e pardos – manifestação mais que eloquente do nosso racismo estrutural.

O motor do sistema é a famigerada lei de drogas: “à medida que a população brasileira é composta por 57% de pessoas negras (pretos e pardos), entre os réus processados por tráfico de drogas, 68% são negros; no que diz respeito à cor/raça branca, representa 42% da população, e apenas 31% dos réus são processados por crimes envolvendo drogas”.

Mas por qual razão um tema tão importante, que afeta a vida de milhares de pessoas, é quase ignorado pelos setores progressistas, movimentos sociais, partidos de esquerda, pelo PT e pelo governo Lula? Ou pior, por que tal pauta aparece entre nós quase sempre na mesma clave manejada pelos reacionários, pela extrema-direita? Um coquetel indigesto de senso comum, populismo penal e punitivismo.

O suposto atenuante que geralmente aparece é de que a esquerda teria pouca experiência nessa área – o que não resiste ao cotejamento com os fatos. Na academia, nos movimentos sociais, em alguns governos e também nos nossos partidos há amplo acúmulo relacionado à urgência de reformas estruturais nas políticas de segurança pública, nas polícias, nas cadeias e por aí vai. Infelizmente, o campo dos direitos humanos, da racionalidade científica, dos movimentos negro, da juventude, feminista, popular, etc. são garbosamente ignorados em razão de uma adesão acrítica aos clichês e pseudoconsensos conservadores.

Os governos estaduais da Bahia – estado que o PT dirige ininterruptamente há quase duas décadas – são, tristemente, uma espécie de paradigma do que não fazer. Para contrastar: até mesmo o PSDB em São Paulo (de Covas a Doria) avançou bem mais do que as administrações petistas baianas nessa área.

Um mundo sem presídios?

Estabelecidos agora os prolegômenos, vamos ao grão. O professor Alípio DeSouza Filho, da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, traz a lume um libreto-manifesto – tão corajoso quanto contundente.

Sem os salamaleques e mediações costumeiras, Alípio DeSouza Filho já provoca no título da obra: Pelo fim das prisões: manifesto pelo fim das penas de encarceramento.

De Foucault à Agamben, em rápido voo que vai de Nietzsche, Sartre, Honneth a Chauí, o autor denuncia a recente escalada mundial do encarceramento. E chama atenção para um dado pouco visibilizado: em todo o mundo, a população carcerária masculina aumentou 22% enquanto o percentual de mulheres presas cresceu 60%!

Quadruplicamos em duas décadas os números. Atualmente há cerca de 40 mil mulheres presas, a grande maioria por “tráfico”. Ou seja, é óbvio que a atual política de “war on drugs” não é só antipobres e antipretos, é também totalmente particularmente nociva às mulheres trabalhadoras.

“Os cárceres são, sem dúvida, uma das mais funestas instituições já inventadas pelos seres humanos”. Alípio DeSouza Filho tem a coragem de dizer o que deve ser falado, sem floreios. É preciso, portanto, mudar toda a política de “segurança pública”, e a “política prisional” e a “política de drogas” entre outras. Hoje são máquinas de matar e prender jovens, trabalhadores, mulheres pretas, pardas, pobres e periféricas.

Eu senti falta, confesso, de uma pitada de análise das estruturas que enfatizasse as interseccionalidades classe-raça-gênero-território, além da conjuntura mundial e do hodierno contexto político brasileiro.

A propósito, a taxa nacional é de 300 presos por 100 mil habitantes. Na Inglaterra é a metade (144). Na Suécia são 51. Será, por um acaso, talvez, quem sabe, especulando muito, que poderia supostamente existir alguma relação entre tais níveis de encarceramento e a desigualdade social aqui e lá?

Todavia, é sempre preciso saudar o que é bom, belo e justo. “Nesses dias tão estranhos” nos quais tantas vezes “a poeira fica se escondendo pelos cantos” – e com a “cadela do fascimo” sempre à espreita – o grito de Alípio DeSouza Filho é lufada de ousadia e bom senso.

Prisão pra quem mesmo, cara pálida?

*Julian Rodrigues, jornalista e professor, ativista do movimento LGBTI e de Direitos Humanos, mestre em ciências humanas e sociais (UFABC) e doutorando em América Latina (Prolam/USP).

Referência


Alípio DeSouza Filho. Pelo fim das prisões: manifesto pelo fim das penas de encarceramento. Editora Caule de Papiro. [https://amzn.to/3R1ymDe]


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