A obra-prima ignorada

Michael Ayrton. Paisagem Grega I, 1960–1
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Por RONALDO TADEU DE SOUZA*

Comentário sobre o livro de Honoré de Balzac

1.

De todos os escritores que compõem o assim chamado cânone da literatura ocidental nenhum possui obra tão extensa como Honoré de Balzac. Sua Comédia Humana ultrapassa os 10 volumes (são um total de 17 na consagrada edição da editora Globo), chegando aproximadamente às mais de 8 mil páginas. Ele sem dúvida expressou pelo enredo e pela historicidade dos temas que tratou aspectos constitutivos da era e da sociedade pós-mundo feudal.

Não é fortuito que o historiador marxista Eric Hobsbawn afirma que após a Revolução Francesa (a mais importantes das revoluções burgueses) entravamos no mundo de Honoré de Balzac. Os sonhos e desejos ingênuos de Luciano Rubempré, a ambição sobre-humana das filhas de Goriot, a essência calculista e monetária de Grandet são momentos que conformaram a espiritualidade de uma sociedade governada pelo realismo frio e sem alma do dinheiro – do capital. (

Karl Marx foi um apaixonado leitor do autor de As Ilusões Perdidas; e Friedrich Engels ter dito que ele revelou mais sobre a sociedade francesa de seu tempo que todos os sociólogos, pensadores políticos e historiadores do mundo. De modo que, os grandes trabalhos de Honoré de Balzac são conhecidos do público letrado (brasileiro); seus significados no contexto do romance histórico acerca da existência humana na aurora de um tempo em que tudo o é sólido desmancha no ar, estão registrados ao longo dos anos por diversos críticos literários, ensaístas, filósofos, sociólogos da cultura e pesquisadores e pesquisadoras das letras.

Entretanto, uma parte da grandiosa Comédia Humana ainda está para ser desterrada pelos estudiosos. Ao desvelamento das relações sociais do mundo pós-1789 em todas as suas variações – nas cenas da vida privada, nas cenas da vida provinciana, nas cenas da vida política, nas cenas da vida parisiense, nas cenas da vida rural e nas cenas da vida militar –, Honoré de Balzac incorporou pequenos textos (também ficcionais) que tinham como preocupação questões envolvendo o fazer artístico, as tensões da vivência por que passam os artistas (e os escritores) diante da necessidade de sobrevivência e a indagação sobre o lugar absoluto ou não, pelo contrário às vezes, do talento original e criativo nas artes.

Em Estudos Filosóficos, o volume 15 da Comédia Humana, encontramos o pequeno ensaio-conto, anedota-crítica de arte ou ainda breve tratado sobre estética-prosa histórica (o texto é de difícil classificação), A obra-prima ignorada. Assim; a questão é: qual é a obra (e seu significado) A obra-prima ignorada de Honoré de Balzac? No que segue proponho uma breve abordagem, de modo a interpretar referido conto com vistas a argumentar que se prefigura em A obra-prima ignorada os traços e os aspectos fundadores da arte moderna (de vanguarda).

2.

Na pergunta qual é a obra de A obra-prima ignorada é possível se desdobrar uma série de outras interrogações; bem como erigir formulações e configurar hipóteses de trabalho. Ao menos três considerações nos interessam ainda que não abordaremos duas delas diretamente no presente ensaio. Quais sejam: primeiro, interessa observar que é um texto que se exercita na fronteira entre arte e literatura, aqui importa dizer que é sempre complexo abordar de modo articulado, em interação, essas duas esferas da estética, o próprio texto em si é sobre artes plásticas (pintura).

Mas Balzac enquanto tal é um escritor, e um dos grandes romancistas da história da literatura como frisamos há pouco, e vez por outra ele distingue em A obra-prima ignorada a arte como pintura e a poética (subentendida) como proceder literário; deriva-se dessa peculiaridade a segunda consideração articulada em dois momentos (uma no âmbito da literatura e outra acerca da arte moderna).

O conto é sugestivo para problematizarmos algumas observações de um dos mais influentes crítico literário do século XX, George Lukács, na medida em que ele toma a obra de Balzac como uma das representantes do romance histórico-realista, e isso, em contraposição aos romances modernos, particularmente os romances de James Joyce, de Franz Kafka, e de Marcel Proust, três dos principais autores das inovações formais  do modernismo literário.

A obra-prima ignorada não é um texto literariamente realista e histórico, pois o próprio enredo construído por Balzac – o sentido da arte para Frenhofer – está, de certo modo, distante de ser qualificado a partir daquelas duas características (histórico e realista), ele está, por assim dizer, mais próximo, o personagem, de um esteta a autoexplicitar a arte (e a literatura) modernista, nos termos expressos por Giulio Carlo Argan (1987); a terceira formulação balzaquiana está contida na imanência da questão que aqui apresentei, em sentido forte – qual obra, seu significado, sua poeticidade, sua forma, é a obra presente em A obra-prima ignorada? Vejamos.

A obra-prima ignorada foi publicada em primeira versão no ano de 1831. Uma nova versão apareceu em 1837, nela Balzac fez alterações variadas, sobretudo, na descrição do ateliê de Porbus (Lagos, 2014). Três personagens compõem a narrativa; são eles Porbus o mestre-pintor, Poussin o noviço que deseja aprender as técnicas da pintura para se tornar grande artista e por fim o exótico Frenhofer – esse, supostamente é o artista par excellence.

Pois, é nessa figura mítica da Comédia Humana que Balzac irá representar os sentidos da criação (Rivero, 2004); Frenhofer exprimi as virtudes estéticas da imaginação na arte (Barolsky, 2004). Com efeito – Frenhofer irrompe na cena inicial de A obra-prima ignorada dessa maneira: “um velho subiu a escada” (Balzac, 2003 [1831], p. 15). Balzac representa o idoso no estilo histórico-preciso, no detalhismo da caracterização do romance do século XIX, na distribuição equilibrada entre o lugar externo da ação que está latente e a fisionomia romântica.

O personagem Frenhofer já dá andamento problemático no enredo balzaquiano sobre o cerne do fazer artístico, pois ele é visto com “indumentária” estranha; rosto “diabólico” (profano); cor dos olhos impressionistas de um “verde” inusitado; cabeça original talhada com arabescos; cintilações “fantásticas” vinda da escada presentificam esse velho místico – era como se fosse a (parodia) de “uma tela de Rembrandt” (Ibidem, p. 16). Segue-se a fabulação; estão eles – Poussin e Frenhofer – no ateliê de Porbus; é ali que a matéria adquire forma de arte. É nesse intervalo da existência onde o autêntico se funda; o jovem Poussin experimenta o deslumbramento dos “pintores natos ao verem [a] primeira” (Ibidem) sala na qual a dimensão da arte está partilhada em todos os lugares, momentos e disposições espirituais.

O diálogo inicia-se. Maria do Egito é o quadro que incita a conversação; feita para o jogo (utilitário) dos Medicis ela se tornou objeto de troca no momento de dificuldade da família: Maria Médicis vendeu seu homônimo pictural “quando se viu na miséria” (Balzac, 2003 [1831], p.18) e desde então o quadro era reproduzido. É o significado da arte, entretanto, que está sendo debatido.

Indagado sobre se gostou ou não da Maria do Egito de Poussin, Frenhofer é categórico, a santa não estava “mal-feita” (Ibidem); ocorre que o quadro (o original e a reprodução) não possui vida – “sua santa […] não tem vida” (Ibidem) –, desenhar um rosto perfeito, imitar corretamente as regras da “anatomia” (Ibidem) não é a forma-da-arte. Seguir as normas da boa pintura, sustenta Frenhofer, não é suficiente para erguer a linguagem poética em um quadro. Trata-se, isto sim, de subjetividade – de paixão heroica (Barolsky, 2004) para erigir a arte.

De delírio por fazer o hodierno estético, Frenhofer quer o “frenesi criativo” (Rivero, 2004). Para ele não é originar artificialismos bem construídos, geometricamente raciocinados, já que o objetivo do velho, se é que há algum, está equidistante da “boa perspectiva […], [de exprimir] as cores do céu corretamente” (Balzac, 2003 [1831], p. 19); era ele um precursor do impressionismo? O mestre do mestre de Poussin é impiedoso com a Maria do Egito; na verdade a lição sobre arte de Frenhofer é dada, indiretamente, ao correto e ético Porbus.

De personalidade marmorificada – lisa, esculpida à perfeição, branca – ele não compreendia a posição do velho Frenhofer. Ora, esse deseja que a vida, que o caráter oposto ao destino (Benjamin, 2011) soprasse na alma do quadro – e consequentemente de Porbus e do jovem Poussin. Para ele, sem que o pintor, o poeta, o músico transfigure seu mundo próprio e autêntico para a matéria em toda a sua completude estarão longe de entregar à humanidade uma obra-prima.

Ingênuo o “jovem mal continha o desejo de agredir” (Balzac, 2003 [1831], p. 19) Frenhofer por desprezar o espelhamento rigoroso de um rosto humano feito com o pincel racional e consciente de seu mestre. O inconformismo moderado o fazia questionar como um indivíduo com aquele aspecto poderia ser tão irascível diante da Maria do Egito e de seu realizador (ou proprietário): um homem que respeita a natureza fundamental das coisas, um obediente seguidor dos costumes burgueses que é Porbus (Falkemback, 2012) não poderia estar diante de tal vilipêndio.

Após um exame mais detido da obra de Porbus, sempre na presença inconformada de Poussin, Frenhofer esboça o que seria uma obra de arte séria (Adorno, 1985). No diálogo tecido por Balzac a posição do pupilo-mestre (pupilo do velho e mestre do jovem pintor) reflete um engano social; a verdadeira arte é aquela que imita com precisão, com respeito ao delineamento externo e com parcimônia de animo a natureza. Porbus diz estudar “muito […] [o] colo nas modelos nuas [que pinta]” (Balzac, 2003 [1831], p. 21).

Sua queixa, para Frenhofer, imaginando complacência do velho, é dizer da natureza que ela esconde os “efeitos verdadeiros” (Ibidem) – daí a dificuldade e o insucesso dos pintores por vezes. Irritado com a postura tão acomodatícia, típica dos salões burgueses pós-restauração e dos artistas frequentadores deles, o antimestre como um tigre voraz exibindo as presas troveja que “a missão da arte não é copiar a natureza, porém expressá-la! Você não é um vil copista, mas um poeta!” (Ibidem, p. 21). (Um vanguardista a inventar o novo…).

Quem tenciona forjar a obra de arte, a obra prima, não deve se satisfazer apenas tomando atitude austera e rigorosa com a externalidade apreendida. (Há “pintores [que] triunfam institivamente sem conhecer [os] temas [que se quer racionalizados] da arte” (Ibidem, p. 22) – Porbus está estupefato.) Então; o que significa a arte? Frenhofer responde: é a forma (atribuída) à matéria. É transformar “o nada [em] tudo” (Ibidem, p. 24). Assim, fizeram “Ticiano e Rafael” (Ibidem) – assim não o fez o miserável utilitarista Pierre Grassou, um “espírito medíocre, metódico […], burguês” (Lago, 2014, p. 101).

Ser poeta, pintor, exige-se a disposição para experimentar a loucura da abundância e para aceitar a tentação em abarcar as circunstâncias da vida na sua extensão total; é a inclinação para intervir nas representações práticas da existência que faz surgir a uma obra de arte. Frenhofer ardente pela paixão da e ela arte arrebata a “paleta e [os] pincéis” (Balzac, 2003 [1831], p. 25); tomado de “aspiração heroica” (Barolsky, 2004, p. 51) o personagem principal do volume Estudos filosóficos da Comédia humana quer convencer esse Rubempré da pintura ainda sem ambição  a negar a “fria razão [dos] burgueses” (Balzac, 2003 [1831], p. 35) – quer convencer Poussin, não Porbus, a viver a antítese da “falta de seriedade da arte […] [que expressa a pobreza do gosto burguês” (Barolsky, 2004, p. 50).

“Você é digno de uma lição, e [ainda] capaz de compreender, vou mostrar-lhe quão pouco […] [é] preciso para [realizar] […] [a obra] de arte” (Balzac, 2003 [1831] p. 25): entenderá que “as coisas grandes são simples”. O jovem Nicolas Poussin querendo provar ser um borrador de tela honesto – “sou um desconhecido, mas um borrador de tela nato que acaba de chegar a esta cidade” (Ibidem) – após a indagação com rispidez de Porbus que quis saber quem ele era, copiou o rosto de Maria do Egito; o incandescente Frenhofer é um demônio; age com rapidez, o espírito é impaciente, das mãos extasiadas gesticulam traços luminosos, a “fértil imaginação” (Ibidem, p. 26) derrama singularidade na tela.

Pequenos toques de cores são acompanhados por pinceladas disruptivas, essas forjam, junta àquelas, luzes subjetivas de espessura própria dando forma-apaixonada e forma-genuína à vivência: o gênio de Frenhofer urdiu “uma nova pintura” (Ibidem, p. 27).

Poder-se-ia continuar à exaustão esse breve ensaio. Mas tendo no horizonte os objetivos exigidos para escrever este trabalho – recoloco a questão ao qual organizei as asserções argumentativas do texto que lhes apresento; a obra da Obra-prima ignorada qual é? E seu significado? No âmbito da narrativa de Balzac é indecidível, bem como no que concerne à referência histórico-literário. É o próprio Frenhofer no enredo do romance (ou conto) que, sugestivamente, responde à nossa pergunta-método; estilizando a resolução ele diz que na “obra-prima” (Ibidem, p. 25), de A obra-prima ignorada, “apenas os iniciados [e jovens iniciantes] nos mais íntimos arcanos da arte podem descobrir […]” o que ela é; ela é aquilo que podemos chamar, na esteira das teorias estéticas de vanguarda, de arte: por oposição e negatividade aos Porbus, aos Pierres Grassous e toda modalidade de arte que prolifera como “comodity” (Barolsky, 2004, p. 51) no mundo mesmo de Balzac. E que ele explicitou de maneira inigualável ao longo da Comédia humana.

*Ronaldo Tadeu de Souza é professor no Departamento de Ciências Sociais da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar).

Referência


Honoré de Balzac. A obra-prima ignorada. Tradução: Teixeira Coelho. São Paulo, Iluminuras, 2000, 112 págs. [https://amzn.to/4azAjxv]

Bibliografia


ADORNO, Theodor W. Industria cultura: o esclarecimento como mistificação das massas. In: Dialética do esclarecimento: fragmentos filosóficos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1985.

BALZAC, Honoré. A obra-prima ignorada. São Paulo: Comunique editorial, 2003.

____________ Ilusões perdidas. Rio de Janeiro: Ediouro, 1994.

BAROLSKY, Paul. Frenhofer and the triumph of Fourgerés. Notes in the History of Art-Chicago, v. 23 nº 4, 2004, p.49-51.

BENJAMIN, Walter. Destino e caráter. In: Escritos sobre mito e linguagem. 2ª edição. São Paulo: Editora 34, 2013.

BURGER, Peter. O declínio da era moderna. Novos Estudos Cebrap, São Paulo, nº 20, 1988, p. 81-95.

FALKEMBACK, Daniel. A obra-prima ignorada (Honoré de Balzac). Posfácio. Site: https://www.posfacio.com.br/2012/07/02/a-obra-prima-ignorada-honore-de-balzac/.

LAGO, Izabel Baptista. O espaço de criação do pintor na obra de Balzac: um passeio pelos ateliês de Porbus, Servin e Grassou. Non Plus-Revista de Francês da USP, nº 6, 2014, p. 98-110.

LUKÁCS, George. Balzac: Les Illusions perdues In: Ensaios sobre literatura: Civilização Brasileira, 1965.

______________ Realismo crítico hoje, abordagem de um dos problemas mais graves e fascinantes do nosso tempo: a relação entre marxismo e as artes. Brasília: Thesaurus, 1991.

MARX, Karl. A guerra civil na França. São Paulo: Boitempo, 2013.

OLIVERIA, Regina Cibelle. Paulo Rónai e a organização da primeira edição completa de A comédia humana, de Honoré de Balzac, no Brasil. São Paulo. 203 páginas. [Tese de Doutorado – Estudos Literários e Culturais] Universidade de São Paulo/USP, 2021.

POUND, Ezra. ABC da Literatura. São Paulo. Cultrix, 2007.

RIVERO, Manuel Rodriguez. El error Frenhofer. S/L. Revista de Libros, 1 noviembre, 2004, p.1-3.


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