Por OTAVIANO HELENE*
Qualquer que seja o lado examinado sobre o projeto — agora uma lei — paulista das escolas cívico-militares é ruim
A criação de escolas cívico-militares, projeto transformado na Lei Complementar 1398/2024, aprovada pela Assembleia Legislativa paulista, recebeu críticas amplas de todos os setores envolvidos com a educação. A oposição a esse projeto conseguiu uma quase unanimidade entre educadores, formuladores de políticas educacionais, entidades científicas e sindicais, entidades ligadas aos setores público e privado, administradores e demais profissionais de todas as áreas ligadas à educação: todos o criticaram, pois por qualquer ângulo que o projeto seja analisado, ele tem problemas.
Ainda que já tenha recebido muitas críticas, o projeto tem tantos problemas que elas não se esgotaram. Vejamos algumas pouco lembradas.
O texto que encaminha a proposta à Assembleia Legislativa e que a justifica (ver PLC 9/2024), logo após um primeiro parágrafo formal, afirma que a implantação será feita “priorizando-se aquelas [escolas] situadas em regiões de maior incidência de criminalidade”. Tal frase deixa claro que a intenção do projeto não é a educação, o ensino, a aprendizagem ou o desenvolvimento de crianças e jovens; caso fosse esse, o primeiro argumento em sua defesa deveria fazer referência aos processos de ensino e aprendizado.
O problema da criminalidade está fora das escolas, e afeta diariamente a vida da totalidade da população. É lá que a polícia deve agir, inclusive impedindo que tais problemas invadam as escolas e afetem seus estudantes e trabalhadores.
Se o objetivo do projeto é usar a capacidade de trabalho de pessoas aposentadas para promover o “desenvolvimento de um ambiente escolar adequado, que promova avanço no processo de ensino-aprendizagem”, justificativa que aparece no terceiro parágrafo da carta que o encaminhou, não deveria ser por meio do uso de militares aposentados. Esse objetivo seria mais bem satisfeito se os aposentados convidados fossem professores, orientadores educacionais, psicólogos escolares, assistentes sociais ou outros profissionais com muito maior experiência com os problemas das escolas e de seus estudantes.
Outra possibilidade seria convidar pessoas aposentadas das áreas da saúde, tais como enfermagem, fisioterapia, fonoaudiologia, medicina, odontologia entre tantas outras; isso responderia a muitas das necessidades dos estudantes das escolas públicas, contribuindo para reduzir problemas que afetam o desenvolvimento e o aprendizado de crianças e adolescentes. Entre cientistas e docentes universitários também seria fácil encontrar muitas pessoas motivadas e dispostas a colaborar com o avanço nos processos de ensino e aprendizado em escolas públicas.
Na carta de encaminhamento do projeto, além das poucas justificativas para sua implantação, não há um diagnóstico dos principais problemas do sistema educacional, coisa que seria fundamental para subsidiar uma lei complementar à Constituição do Estado que tenha como objetivo a desenvolvimento da educação. No parágrafo seguinte da carta há um erro grosseiro de redação que o torna ininteligível. Esse, que não é o único erro de português, denota o descuido de quem a escreveu e o desrespeito por aquelas pessoas às quais a carta era dirigida.
Os demais parágrafos também não apresentam justificativas válidas. O citado alinhamento do projeto com o Plano Estadual de Educação não parece ter sustentação. Mesmo a citação de sua ligação com resolução do próprio governo estadual parece frágil, a menos que o significado da palavra “seguro”, na afirmação de que escolas devem oferecer um “ambiente escolar acolhedor e seguro”, tenha algum entendimento diferente daquele usado nos meios educacionais.
Por que acreditar que as corporações militares poderiam administrar a disciplina dentro das escolas, como o projeto supõe, quando não conseguem administrar a disciplina no entorno dessas escolas, apesar de policiais serem treinados para esta última tarefa, e não para a primeira?
Qualquer que seja o lado examinado, o projeto, agora uma lei, é ruim. Ele não ajudará a superar nenhum problema de nosso sistema educacional, que são muitos. O principal deles e causa de muitos outros é o orçamento por aluno na rede estadual paulista de educação básica. Esse orçamento, destinado a remunerar professores e demais trabalhadores, à manutenção das escolas, à compra de materiais educacionais, entre tantas outras despesas típicas de um sistema educacional, não deve atingir sequer os quinhentos reais mensais por aluno. Por isso, as escolas não têm condições de atender adequadamente os alunos nem fornecer aos professores as condições adequadas e dignas de trabalho.
A militarização das escolas é mais um problema a atrapalhar a educação pública.
*Otaviano Helene é professor sênior do Instituto de Física da USP.
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