Crônica da espoliação amazônica

Imagem: Julia Volk
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Por JOSÉ RAIMUNDO TRINDADE & GEDSON THIAGO BORGES*

A geração de riqueza nova criada pela Vale S.A., corresponde a implementação de mecanismos de produção e apropriação de mais-valia

“Os tambores da noite/ estão chamando. Chamam/ chamas de mim. (Max Martins, Poemas Reunidos)

A característica mais marcante da economia brasileira nessas primeiras décadas do século XXI corresponde ao crescente processo de reprimarização de sua economia e a crescente espoliação de seus recursos naturais. O centro da atual dinâmica econômica está associado a produção de commodities minerais e agrárias.  Ademais, a redução do setor industrial, na composição do Produto Interno Bruto (PIB) do Brasil, vem reforçando nos últimos anos a continuidade de uma lacuna nas etapas de engenharia e produção tecnológica do país, sendo que, a situação do setor industrial nacional agrava-se mais ainda pelo estabelecimento de uma base frágil de promoção da intensidade tecnológica.

O resultado de um processo vinculado a reconfiguração do capitalismo global que já dura quatro décadas, tem empurrado a economia brasileira para um quarto ciclo de dependência, atrelado a subordinação do ciclo de valorização da demanda internacional por bens primários e básicos. Concomitantemente, a dinâmica de acumulação de capital em escala global criou nos últimos decênios uma elevada integração de trocas internacionais, estabelecendo uma maior interseção comercial a partir da redução de barreiras alfandegárias e liberalização cambial.

A reprimarização econômica constitui ponto mais evidente em economias que alcançaram um grau de complexidade industrial maior, como o caso do Brasil. Especificamente as condições de evolução da pauta exportadora brasileira nos últimos anos recolocou a questão da problemática do desenvolvimento de um “padrão exportador de especialização produtiva”, seja pela base exportadora de baixa intensidade tecnológica, seja pela forte dependência do ciclo de valorização da demanda internacional por bens básicos ou primários.

A combinação desses fatores permitiu observar a crescente conformação do setor mineral brasileiro em um dos centros exportadores de commodities nacionais, com destaque para a empresa mineradora multinacional Companhia Vale, resultante de processo de privatização na década de 1990 que transferiu não somente parcela da riqueza mineral brasileira para interesses privados internacionais, mas também condições estratégicas para qualquer base de desenvolvimento autônomo nacional.

A pauta exportadora brasileira é dominada pela presença de itens primários como soja, óleos brutos de petróleo, cana de açúcar, carnes bovinas, milho, com destaque para o minério de ferro, que ocupa uma posição na dianteira, entre os principais produtos exportados pelo Brasil. No período de 2015 a 2019 a produção mineral de ferro do Brasil correspondeu no acumulado a 2,1 bilhões de toneladas métricas. Na maior parte desse período, a produção brasileira de ferro foi dominada pela atuação da mineradora Vale, sendo que no quadriênio 2015 – 2018, cerca de 80% da produção nacional de minério de ferro correspondeu a produção mineral d a referida empresa, como pode ser visto no gráfico abaixo.

Gráfico 01 Participação da Vale S.A na produção mineral de ferro do Brasil, 2015 a 2019 em %

Fonte: Agencia Nacional de Mineração. Elaboração própria (2022).

A diminuição da participação da Companhia Vale na produção brasileira de ferro no ano de 2019 está conectada ao rompimento da barragem em Brumadinho (MG) em janeiro de 2019. Além do mais, essa redução na produção mineral dessa empresa expressa também a reverberação dos problemas oriundos no rompimento da barragem de Fundão em Mariana (MG), ocorrida em novembro de 2015, na mineradora Samarco (joint-venture entre a Vale S.A. e a anglo-australiana BHP Billiton).

A interseção entre o rompimento das duas barragens da mineradora Vale, pode ser compreendido nas medidas de intensificação da acumulação, ou seja, a imposição de uma marcha forçada para alcançar elevadas taxas de lucros, combinada com a redução dos gastos com manutenção e segurança.

Em relação ao último aspecto, a diminuição dos investimentos em manutenção e segurança foram reduzidos de maneira sistemáticas. No período de 2014 a 2017 houve uma redução de US$ 600 milhões, o que representou a saída de um patamar de US$ 2,8 bilhões para US$ 2,2 bilhões, respectivamente. Uma avaliação pormenorizada desses investimentos em manutenção e segurança aponta que, nos anos de 2014 a 2017, os recursos destinados as “pilhas e barragens de rejeitos” sofreram uma brutal redução de 57%, de modo que, os US$ 474 milhões foram reduzidos para US$ 202 milhões (BELLUZZO; SARTI, 2019).

A redução dos investimentos em manutenção e segurança, fragilizou a estrutura de contenção das barragens, em dois aspectos. Primeiro, a redução desses recursos perpetuou o uso das barragens a montante, o tipo de barragem usada em Mariana (MG) e Brumadinho (MG), onde a construção da barragem consiste na utilização dos próprios rejeitos da mineração, sendo estes, posicionados em forma de degraus sobre o dique inicial, o método mais barato, porém o mais perigoso e passivo de rompimento. Em segundo lugar, a diminuição dos recursos em manutenção e segurança, impossibilitou, premeditadamente, a modernização das barragens, inviabilizando a utilização de métodos mais seguros, para contenção dos lagos de decantação, como os métodos da jusante e linha centro (THOMÉ; PASSINI, 2018).

Mesmo diante dos efeitos negativos, em decorrência do rompimento das barragens da Vale S.A., ainda assim, a mineradora manteve seus níveis de receita liquida numa trajetória de crescimento como mostrado no gráfico abaixo.

Receita Líquida da Companhia Vale 2015/2020 (em milhões – valores correntes)

Fonte: Relatório Financeiro e Operacional, vários anos. Elaboração Própria (2022).

A multinacional Vale S.A., é a maior mineradora diversificada das Américas e faz parte do seleto grupo das big three, juntamente com a BHP Billiton e a Rio Tinto. Todavia, cabe destacar que, com a crescente participação da mineradora Fortescue, o setor mineral de ferro vem sendo dominado e transformado num grupo denominado big four. O ritmo intenso do crescimento da acumulação de capital da Vale S.A., pode ser traduzido pelos dados pertinentes ao crescimento da receita líquida da mineradora, a qual registrou em 2020 uma receita líquida acima de R$ 200 bilhões. É importante destacar que o ritmo de intensificação da acumulação ganhou um impulso maior no período de 2019 para 2020, como um salto de R$ 148 bilhões para R$ 208 bilhões.

Contudo, destaca-se que a geração de riqueza nova criada pela Vale S.A., corresponde a implementação de mecanismos de produção e apropriação de mais-valia. Nesse sentido, os elevados níveis de receita líquida alcançado pela Vale S.A., na sua gênese, estão relacionados aos elevados número de trabalhadores terceirizados e a baixa massa salarial que a Vale S.A., paga aos seus trabalhadores próprios.

Segundo confirmação dos sindicatos dos trabalhadores ligados à mineração, atualmente, o processo de terceirização suplantou o número de trabalhadores próprios. E tem ocorrido de maneira usual, a seguinte situação: demissão dos trabalhadores da empresa para ocupar e exercer a mesma função como terceirizados, com um salário menor e sem benefícios, que inclusive, deixam de ser extensivos aos seus familiares. A relação entre o nível de salários pagos aos cargos operacionais e administrativo são demasiadamente inferiores quando comparado com o nível de remuneração que recebe a alta diretoria da Vale S.A. A tabela abaixo ilustra esse entendimento.

Remuneração da Diretoria e Empregados da Companhia Vale

Fonte: (Belluzzo; Sarti, 2019, p.13)

Desse modo, enfatiza-se que o processo de valorização ampliada de capital da Vale S.A., encontra sustentação no rebaixamento salarial da força de trabalho própria e terceirizada. Sendo assim, a intensificação da valorização de capital da Mineradora Vale S.A., combinado com a diminuição dos investimentos em manutenção e segurança, revela uma faceta do problema, que culminou nos rompimentos programados das barragens.

Portanto, a continuidade desse modelo de extração e exploração mineral, com enfoque na elevação da receita a qualquer custo, deixa um alerta para a possibilidade de novos rompimentos de barragens, com perdas ambientais e humanas irreversíveis. Vale notar que diversos países têm revisto suas posições quanto a questão da reestatização da exploração de recursos naturais e serviços públicos essenciais. França, Alemanha Argentina, Canadá e Hungria, têm reestatizado serviços públicos de fornecimento de água, coleta de resíduos sólidos, energia e transporte, além da lógica de manter segmentos estratégicos, como minério e petróleo sob controle nacional e público.

Defender a reestatização da Companhia Vale, não necessariamente em reestabelecer a CVRD (Companhia Vale do Rio Doce), mas em algo mais necessário aos interesses sociais e econômicos da soberania nacional brasileira se torna  imprescindível, principalmente se considerarmos a riqueza de recursos naturais que as minas amazônicas possibilitam e que sua espoliação levam a completa destruição ambiental e ao crescente empobrecimento de nossa população, vis-à-vis a riqueza e os ganhos propiciados para meia dúzia de controladores internacionais e nacionais da atual Companhia Vale.

*José Raimundo Trindade é professor do Instituto de Ciências Sociais Aplicadas da UFPA. Autor, entre outros livros, de Agenda de debates e desafios teóricos: a trajetória da dependência (Pakatatu).

*Gedson Thiago Borges é doutor em Desenvolvimento Econômico pela Universidade Federal do Pará (UFPA).

 

Referências


Luiz Gonzaga Belluzo e Fernando Sarti. “Vale: Uma empresa financeirizada”. Le Monde Diplomatique: Observatório da Economia Contemporânea. Osasco (SP), v. 139, Fev. 2019. Disponível em: <https://diplomatique.org.br/vale-uma-empresa-financeirizada>.

José Raimundo Barreto Trindade. Empresas transnacionais, territorialidade e impactos ambientais na região amazônica oriental brasileira. In: CONGILIO, Celia R.; BEZERRA, Rosemayre, MICHELOTTI, Fernando. Mineração, trabalho e conflitos amazônicos no sudeste do Pará. Marabá (PA), Editora: iGuana, 2019.

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