Stalker

Cena de "Stalker" de Andrei Tarkovsky/ Divulgação
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Por RAFAEL MANTOVANI & NICOLÁS GONÇALVES

Considerações sobre o filme de Andrei Tarkovski

Stalkear, hoje em dia, é crime no Brasil. O termo diz respeito a perseguir alguém como uma espécie de predador. Mas não é isso que Сталкер (“stalker”) quer dizer na cultura russa. Segundo Ekaterina Vólkova Américo e Edelcio Américo, o neologismo foi criado pelos irmãos Strugatski no livro Piquenique na estrada de 1971 (que, aliás, é a inspiração do filme Stalker de Andrei Tarkovski de 1979) e designa os guias em construções abandonadas na Rússia, que acabaram assumindo uma imagem de loucos ou mendigos videntes e seriam figuras muito queridas pelos seus compatriotas.

Como costumavam ser as adaptações de Andrei Tarkovski da literatura para o cinema, a de Stalker também é sui generis, pois não se trata de uma versão imagética da sequência narrativa do livro, mas sim, da captura de um dos seus elementos para tratar de alguns problemas filosóficos e sociais com uma poética visual e sonora.

A primeira consideração com relação ao texto dos Strugatski é a postura do stalker. No livro, Redrick Schuhart, o stalker e personagem principal, é um indivíduo cativante, altivo, arrogante, confiante e, também, violento. E, na grande maioria do livro, entende a Zona – lugar em que dejetos foram deixados por uma rápida passagem alienígena no planeta – como um local para lucrar e conseguir financiar a sua vida ébria. Os artefatos curiosos ali deixados e que desafiavam as leis da física valiam um bom dinheiro, mas precisariam ser traficados, já que havia a tentativa de controle de acesso por parte do Estado.

Já o stalker de Tarkovski é um indivíduo um tanto abatido e submisso. Segundo Luiz Carlos Oliveira Jr., as cicatrizes e vincos faciais têm uma grande força no filme. O stalker aqui, embora em um momento inicial tente se mostrar como um líder, em seguida, passa a obedecer e apanhar (ao contrário de Redrick que manda e bate) e se diz um piolho.

A segunda consideração é que Andrei Tarkovski concentra a sua trama, na maior parte do filme, em três personagens: o próprio stalker, o professor e o escritor. O escritor, por sinal, é o único que tenta dizer seu nome, sendo rapidamente impedido. Eles não são nomeados de outra maneira, são identificados apenas com os seus lugares sociais – de prestígio, diga-se de passagem.

A terceira é que o filme se concentra no ponto final do livro: na “sala” que realiza os desejos mais íntimos e, no livro, atende pelo nome de “esfera dourada”. Entretanto, ela não realiza qualquer desejo, mas apenas os mais profundos. No livro, quando Redrick pergunta ao jovem Arthur Barbridge o que ele pediria à esfera dourada, ele responde “bem, as pernas para o meu pai, é claro”. O pai tinha perdido ambas em uma incursão anterior na mortífera Zona. “Mentira”, responde Redrick reafirmando que a esfera dourada realizava exclusivamente os desejos mais íntimos. Arthur enrubesce e chora.

Já na versão do filme, logo que os três entram na Zona, o stalker conta a história de outro stalker, um suicida conhecido como Porco-Espinho, cujo irmão morreu ali. Porco-Espinho teria se arrastado na lama para ressuscitar o irmão, mas, ao contrário, a “sala” não trouxe o seu irmão de volta à vida. Ela lhe revelou seu desejo mais profundo, tornando-o extremamente rico. A conclusão é que ele teria se matado porque, apesar de supor que desejava ter seu irmão de volta, seu espírito desejava o luxo. Porco-Espinho se enforcou como Judas, talvez não por arrependimento, mas por não suportar viver em um mundo que soubesse de sua traição. O que os delatava? A riqueza.

Por fim, Andrei Tarkovski coloca em cena um cachorro que segue as três personagens principais em momentos curiosos e tem uma presença bastante importante ao final do filme. Uma delas é quando saem da Zona e encontram com a esposa do stalker. Ela pergunta ao professor se ele precisava de um cão. A sua sugestão era que ele o adotasse. O professor responde que tem cinco em casa. A esposa reconhece que o professor gosta de cachorros e diz que “isso é muito bom”. Em uma das sequências finais do filme, é dado um pote de leite ao canino no chão e, ao lado, deitado no piso, aparece o stalker que inicia a sua lamúria com relação à perda de esperança que as pessoas têm no futuro.

Esses elementos fílmicos nos parecem colocar um clássico problema filosófico, uma reflexão sobre o cuidado de si e a tendência moderna que teríamos de nos agarrar aos conhecidos prazeres hierárquicos ao invés de viabilizarmos uma saída ética para os problemas que enfrentamos. Somam-se as influências filosóficas de uma Rússia que criticava o enfraquecimento do espírito desde os seus clássicos do século XIX, a queda do regime soviético e a veia cristã de Andrei Tarkovski.

Rebaixar o stalker à categoria de piolho o coloca em um patamar biológico. Viver sem as alegrias oferecidas pela sociedade em que vive. Além do mais, o stalker de Andrei Tarkovski afirma que eles, stalkers, não podem “sequer pensar no interesse próprio”. O seu objetivo é outro, não é a realização de interesses individuais. Curiosamente, aqui, a bastante diferente personagem do cineasta se aproxima em muito do stalker dos irmãos Strugatski, que, diante da esfera dourada, afirma que não consegue pensar em nenhum outro desejo que não fosse “felicidade para todos, de graça, e que ninguém seja injustiçado”.

Trata-se, portanto, de uma aposta em uma mudança completa das relações sociais, econômicas e políticas. Mas, no filme de Andrei Tarkovski, a realização do stalker é simplesmente levar as pessoas para a “sala”. “Ser um stalker é uma vocação”, conforme diz o professor. Entretanto, como já mencionado, a “sala” não realiza todo e qualquer desejo, mas unicamente os verdadeiros. Isso significa que, assim como aconteceu com Redrick no livro, os que nela entram precisam fazer um exame de consciência. Esse exame não é fácil e, no caso de Arthur (no livro) e do Porco-Espinho (no filme), não é nem agradável. Refletir a respeito de si próprio e dos próprios desejos pode levar à conclusão de ser alguém eticamente condenável.

Temos, assim, a segunda transformação importante no filme da personagem principal na trama do livro: no filme, trata-se de um ser “insultável”, passível de violência física e talvez até de pena. Mas é o único que assume o seu desejo: o que lhe dá mais prazer é levar pessoas até a “sala”. Essa atitude de levar pessoas a confrontarem a si mesmos tem enorme proximidade com a máxima socrática do “conhece-te a ti mesmo”.

O cuidado de si, na versão de Sócrates, diz respeito a colocar-se à prova. Mas, também, há que se considerar a versão “piolhenta” do stalker tarkovskiano, que encontra uma grande proximidade com outro filósofo da antiguidade que tinha na pobreza, na miséria, no escândalo de uma vida animalesca e despudorada a maneira de acusar as relações sociais da sua época: Diógenes, o cínico, que talvez tenha sido o indivíduo mais punk da história da humanidade, com o perdão do anacronismo.

O primeiro momento em que aparece o cão no filme é quando o professor e o escritor começam a se alfinetar. O escritor diz que as certezas da ciência não valem muito e o professor diz que não está interessado na insegurança do escritor. Na sequência, o professor assume que está interessado no Prêmio Nobel, aparece o cachorro e o escritor diz que só se interessa por si mesmo e pela sua independência: ou ele deveria fazer a diferença ou reconhecer-se “um bosta”. Em seguida, perguntam ao stalker por que ele não quis entrar na “sala”, ao que ele responde que está bem como se encontra e o cão vai ao seu encontro em um tom de sépia, que ressurge no filme nesse instante.

No seu último curso, A coragem da verdade de 1984, Michel Foucault nos fala sobre o que os cínicos – os da corrente filosófica – consideravam ser a verdadeira vida, a vida soberana, que se expressa nas rotinas que retorcem todos os valores, etiquetas, posturas e hierarquias da sua época. Diógenes seria o verdadeiro soberano porque é dono de si, independentemente de qualquer determinação social. E a sua sabedoria era alicerçada pelas práticas de si que o tornariam autônomo em relação ao julgamento alheio. Era capaz de enunciar o discurso efetivamente verdadeiro ao mesmo tempo em que defecava em público e vivia de esmolas.

O rebaixamento à animalidade era necessário para o exercício do desinteresse às superficialidades da vida. A desonra, para o cínico, seria ferramenta para desenvolver a autarquia. Essa postura se aproxima de uma atitude canina: os cínicos agiriam como cães. Em grego, “cinismo” se diz Κυνισμός. Em alemão, há a diferenciação feita por Paul Tillich entre Kynismus, o antigo cinismo, e Zynismus, o cinismo contemporâneo. Kynismus começa com o fonema /k/, que é o mesmo de cão, canino, cachorro. A origem etimológica, segundo Michel Foucault, é essa mesma. Bio kynikós: viver como cão. Apenas dessa forma é possível conhecer-se verdadeiramente a si mesmo. Em um dos versos recitados pelo stalker, fala-se sobre a flexibilidade dos homens e das árvores jovens em contrapartida à rigidez de quando estão para morrer. A metáfora de que a flexibilidade é sinal de vida e a rigidez é a expressão da morte também fazem sentido no âmbito filosófico.

Em outra cena com o cachorro, a metáfora da morte aparece de maneira mais forte e evidente. Ele está deitado na frente de um casal de cadáveres abraçados, sobre o qual cresceu uma planta. Poderíamos ficar com a consideravelmente superficial interpretação de que “do amor cresce a vida”. Contudo, há talvez outra possibilidade mais sinistra: os dejetos que banhavam a usina em que o filme foi gravado não eram segredo para ninguém. O diretor sabia dos riscos a que expunha todos os envolvidos pela radiação. Sua locação em uma hidrelétrica na Estônia estava próxima a uma planta química que despejava dejetos no rio Jägala, o rio de onde a usina retirava suas águas.

Anatoli Solonitsin, que interpreta o escritor, foi vencido por um câncer de pulmão três anos depois das filmagens. O próprio diretor faleceu com a mesma doença quatro anos depois de Solonitsin. Sua esposa e assistente de direção, Larisa Tarkovskaya, morreu, também de câncer, um ano depois do marido. Outros que estiveram envolvidos no filme também perderam suas vidas em um curto intervalo de tempo. A arte sobrevive ainda que não haja mais aqueles que a conceberam.

Voltando ao cão: o stalker de Andrei Tarkovski vive, de certa forma, como um. É pária da sua sociedade, foi preso, é menosprezado pelos outros ilustres visitantes da Zona e, ao final, se encontra em mise-en-scène igualado ao cachorro. Ele se dói pelo fato de que não há mais esperança entre as pessoas. Afinal, no filme, ninguém resolveu entrar na “sala”. Na versão livresca, Redrick pede que se estabeleçam a felicidade geral e a justiça. O cinismo tem como pressuposto certa pobreza teórica, mas uma vida heroica e ética. Está sempre a serviço da humanidade. Não dissimular, não se tornar uma alma sem verdade é o princípio ético primeiro do cínico.

O intuito é romper com os costumes, as leis, os hábitos, as convenções. Nesse sentido, haveria também a obrigação de ser benéfico aos demais nesse exercício de levar todos em direção à verdade. Conhecer-se é, portanto, condição sine qua non para a superação de nossos vícios. A “sala” do filme seria, então, uma ferramenta técnica e tecnológica ideal tanto para o autoconhecimento quanto para a superação. O lamento do stalker de Andrei Tarkovski poderia ser entendido como a angústia de Diógenes ao perceber que a humanidade estaria condenada a submergir irremediavelmente na simulação, na vida falsa. Ninguém supõe o autoexame.

Ninguém supõe suspender todas as regras sociais, pois acarretaria a perda de status. Tanto o professor quanto o escritor desejam a manutenção da sociedade e o impedimento da utopia desejada por Redrick. Talvez porque o passo preliminar para se chegar a isso – conhecer-se a si mesmo por parte dos integrantes da sociedade moderna – talvez esteja interditado.

Entra aqui um tema demasiadamente russo. Nas palavras de Tchekov, em Enfermaria nº. 6, texto que é citado em O espelho (outro filme do diretor), a sociedade russa é banhada por parvoíce sonolenta, de faquirismo, de espírito embotado. Seria o nosso momento tempos de revoluções de pensamento ou de elevação ética e filosófica? Não. Contudo, ainda assim, a Rússia foi o chão do mais importante experimento igualitário que fracassou fragorosamente século XX. O pessimismo dos escritores russos do século XIX se revela politicamente no século seguinte. E temos, assim, a emergência da análise das psicologias individuais na modernidade: uma sociedade que não favorece a análise ética pessoal não tem como colher bons frutos mesmo que venha a abolir a propriedade privada.

Um elemento que atravessa o filme de Andrei Tarkovski – bem como toda sua obra – é a água. Aqui, em especial, parece ser o elemento de mediação entre jornada e sacrifício. Aparece como uma representação exterior das mutáveis sensações das três personagens que se aventuram na Zona. Marco Fialho nos diz que ela pode ser sinal de incômodo e instabilidade. Ela muda os cenários e, mesmo quando estática, carrega consigo a força de toda a sua destruição, que pode ser entendida duplamente como impossível de deter, mas também como renovação. A natureza segue em meio aos destroços e irremediavelmente há de vencer o que venha a ser feito em nome de um pretenso progresso.

O filme tem cerca de 140 cortes, durando, em média, 70 segundos cada um deles. O tempo é outro ponto importante para compreender os significados do filme. Deter um mundo que avança em velocidade de cruzeiro e que não experimenta cada sensação que a arte deve trazer parece ser uma clara intenção do autor. A sequência da chegada à Zona e o som feito pelo carrinho correndo nos trilhos nos carrega junto com as personagens. Seus quase 4 minutos representam o pavimento ou, talvez, a ressurreição de um mundo que, andando sobre os trilhos, vai recuperando a cor.

A busca da felicidade – princípio que parece ter de acompanhar qualquer um que se atrever à Zona – se apresenta sempre em uma distância até então inalcançável. Ainda que tanto o professor quanto o escritor sejam, dentro de determinada visão de sucesso na modernidade, bem-sucedidos em suas trajetórias, nunca alcançaram o que, de fato, almejaram e nem ao menos aquilo que deveriam desejar. Se, para Tarkovski, fazer arte é servir (como ele mesmo o diz em Cinema como oração), apenas o stalker estaria tentando cumprir a sua missão.

O escritor tem a pretensão da arte legítima, perene; o professor, a da ciência, metódica, que caminha na direção do progresso. Mas, no fim, ambos aceitam as vidas que levavam e os privilégios que as suas posições emprestavam em detrimento de algo que possa ser verdadeiramente transformador. A indústria que engole o escritor lhe deu a mansão para onde voltaria após a incursão. Permitiu-lhe ser desejado por mulheres, como chega a afirmar em determinado momento. Da ciência, o professor recebe as ferramentas de sua própria destruição representada pela bomba que desiste de ativar.

Se há um elemento externo que se interioriza nas personagens é a presença da musa, uma força intangível que, ao ser mediada pelo intelecto, permite tanto ao professor quanto ao escritor um talento que não há, por exemplo, no stalker ou em sua esposa. Eles são capazes de coisas que outros homens não podem fazer. Essa seria a sua missão. Por isso, a Zona é bondosa com eles. Note-se que, ao início da incursão, o escritor é avisado, em alto e bom som, que deveria parar. Ainda que mortífera com os audaciosos, a Zona o poupa da morte. O caminho descuidado que estava tomando deveria ser interrompido. Seria este um aviso para que retornasse à sua missão?

No livro, em especial, qualquer descuido na Zona se torna fatal e a paciência do lugar com aqueles que nele adentram não é muito longa. A menos que o lugar entenda que aqueles sujeitos ainda podem retornar à sua missão. A missão de servir, seja como um stalker, um escritor ou um cientista. O stalker avisa ao escritor: trata-se de uma espécie de “não vá sozinho”. Ele o desobedece, mas é poupado. Em seguida, quando o professor regressa sozinho para buscar sua mochila, apesar de o stalker afirmar que não o veriam mais, eles estão reunidos na cena seguinte. A Zona tinha seu plano.

Diferentemente do livro, em que a mensagem de igualdade e de justiça aparece apenas na última frase e da boca mais improvável que é a do stalker Redrick, no filme, ela surge nos diálogos mais importantes, cuja palavra mais emblemática é “esperança”. Andrei Tarkovski retira os alienígenas da causa da existência da Zona. De início, fala-se de “chuva de meteoro ou visita do abismo cósmico”. Posteriormente, questionado sobre o que seria aquilo, o professor responde que poderia ser uma “mensagem para a humanidade” ou um “presente”. Ao levar em consideração o cristianismo do cineasta, podemos dar abertura para o fato de que poderia ser também uma intervenção divina. Chegando ao final do filme, descobrimos que o propósito do professor era explodir a Sala.

Ele conta, no telefone, aos seus colegas (que tinham construído a bomba com ele, mas que, em seguida, tinham se arrependido e decidido abortar o plano) que havia encontrado a bomba. Ela estava em posse dele. A voz ao telefone diz que ele não é Heróstrato: Heróstrato, a figura da Antiguidade que explodiu o tempo de Ártemis em Éfeso com o único objetivo de ser lembrado, ou seja, para se tornar conhecido.

O professor, chamado de Heróstrato e que reconhece que gostaria de receber o Prêmio Nobel, também revela qual é o seu maior medo: haveria a possibilidade de imperadores frustrados buscarem a “sala” e, também, de que a buscassem aqueles que querem mudar o mundo, “autodenominados benfeitores da humanidade”. O escritor então retruca que os desejos que os indivíduos teriam são individuais e que não existiria tanto amor ou tanto ódio pela humanidade em geral. Seria impossível, segundo ele, que algo do gênero se realizasse, pois se trataria da implementação de uma sociedade justa ou do reino de Deus na Terra.

Contrariado, o stalker responde que não pode haver felicidade às custas da infelicidade de outra pessoa. Aí passamos a saber que o seu grande incômodo é a desesperança daqueles dois. Mas que não se restringe apenas aos dois: as pessoas têm se tornado assim: desesperançosas, com olhos vazios e com o “órgão da crença” atrofiado por falta de uso. E aqueles dois quereriam destruir a esperança, afinal, segundo o professor, ele não poderia ficar em paz com a “sala” a céu aberto, disponível para a escória. Ora, a possibilidade indiscriminada de realizar desejos seria o fim da sociedade hierárquica da qual ele obtém seus prazeres.

O filme volta ao tom de sépia quando fora da Zona (em contraposição às cores quando dentro dela). A verdadeira vida para o stalker estava ali dentro. Parafraseando Tchekov, a sociedade russa teria o “espírito embotado”, talvez em sépia. Apenas duas vezes, ao final do filme, as cores são recuperadas fora da Zona: as duas são quando há um close na filha do stalker, Martuska. Aliás, a única pessoa nomeada no filme. No livro, trata-se da Monstrinho, filha de Redrick e de Guta, resultado direto dos efeitos da Zona sobre os que nela entram. Monstrinho, ao final do livro, praticamente já não era mais humana. No filme, os efeitos sobre Martuska não são tão intensos, mas, ainda assim, ela é o fruto da Zona.

Antes de aparecer pela segunda vez em cores, a sua mãe faz o seu monólogo, olhando para a câmera, dizendo que aquela vida, apesar das privações, era a vida que ela queria. Que nunca invejou ninguém e que viver ao lado do stalker lhe proporcionou uma felicidade amarga ao invés de uma vida cinza. Sem ele, talvez não teria havido tantos infortúnios, mas tampouco teria havido esperança.

A felicidade amarga parece ser uma analogia ao mundo soviético, uma vida desprovida de muito, mas que viabilizava ao menos vislumbrar a possibilidade de um futuro melhor e mais justo, em detrimento de uma vida cinzenta que existiria do outro lado da Cortina de Ferro, uma vida que aceitava as superficialidades ditadas pelo mercado. A esperança estava simbolizada pela “sala” e personificada na filha, Martuska, que aparece em seguida, como já mencionado, em cores. Martuska está lendo um livro. Então, ela o fecha e um poema de Fyodor Tyutchev (a propósito, também musicalizado pela Björk) é recitado:

“Adoro seus olhos, querida amiga,

sua maravilha cintilante, brilhante e ardente;
Quando, de repente, essas pálpebras sobem,
então, um raio rasga o céu,
você dá uma olhada rapidamente, e há um fim.
Há um charme maior, porém, para admirar:
quando abaixados estão aqueles olhos divinos
em momentos beijados pelo fogo da paixão;
quando através dos cílios abatidos brilham
as brasas fumegantes e sombrias do desejo.”

Diferentemente dos olhos vazios dos sem esperança, os de Martuska são beijados pelo fogo da paixão e lançam brasas de desejo. Martuska tem amor e deseja. E, com seus olhos, cuja maravilha é cintilante e ardente, começa a mover os objetos sobre a mesa. A filha, sendo o resultado do desejo mais íntimo possibilitado pela “sala” e não da socialização humana acostumada e abatida pela pretensa irreversibilidade da injustiça e exploração e, apesar de coxa (talvez a pior “escória”, na visão do professor, pois ela é a versão deficiente dos descendentes da “ralé”), ela pode mudar o que quiser. Afinal, ela é capaz até de suspender as leis da física. Talvez se torne a melhor guia entre os escombros.

*Rafael Mantovani é professor do Departamento de Sociologia e Ciência Política da UFSC. Autor do livro Modernizar a ordem em nome da saúde: a São Paulo de militares, pobres e escravos (1805-1840) (Fiocruz). [https://amzn.to/461cNJh]

*Nicolás Gonçalves é doutorando em sociologia política na Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC).

Referência


Stalker (Сталкер)
URSS, 1979, 163 minutos
Direção: Andrei Tarkovski
Roteiro: Arkadi Strugatski, Boris Strugatski, Andrei Tarkovski
Elenco: Alexander Kaidanovsky, Alisa Freindlich, Anatoly Solonitsyn, Nikolai Grinko.


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