A maior prisão ao céu aberto

Khaled Hourani, Paisagem não natural, 2020
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Por EDUARDO SILVEIRA NETTO NUNES*

Abraçar-se ao opressor, o Estado de Israel, é um ato de concordância com a materialização, em nosso tempo, das consequências mais brutais do racismo

“É uma luta entre os filhos da luz e os filhos da escuridão; entre a humanidade e a lei da selva” (Benjamin Netanyahu).

“Israel está impondo um cerco completo à Gaza: sem eletricidade, sem comida, sem água, sem combustível; tudo fechado! Estamos lutando contra animais humanos” (Yoav Gallant, Ministro de Defesa de Israel).

“Toda a nação (palestina) é responsável. Não é correta a retórica de que os civis (palestinos) não estão conscientes e não estão envolvidos. É absolutamente falso…e lutaremos até romper sua coluna vertebral” (Isaac Herzog, Presidente de Israel).

“Todos temos um objetivo em comum: apagar a Faixa de Gaza da face da terra” (Nissim Vaturi, vice-presidente da Knesset – Assembleia Nacional).

“A África do Sul busca através da denúncia de Crime de Genocídio contra o Estado de Israel, proteger urgentemente os direitos dos palestinos em Gaza…, incluído o seu direito de existir como grupo e de ser protegido contra atos de genocídio e o risco de cometer genocídio, de conspiração para cometer genocídio, de incitação direta e pública de cometer genocídio, da intenção genocida e de cumplicidade ao genocídio” (República da África do Sul).

No Brasil é absolutamente esperado que o racismo seja associado ao racismo perpetrado contra a população negra e indígena, isso porque com uma sociedade forjada na escravização de pessoas indígenas, africanas e afrodescendentes, negras, com o fim da escravização o racismo foi sendo constituído como um conveniente instrumento para os “brancos” estigmatizatem os povos negros e indígenas como incapazes, incultos, inaptos, incivilizados, bárbaros. Entretanto, o racismo também é gravemente expresso contra outros povos, como o povo palestino!

Em 2023 e 2024, parte do mundo, aquele que ainda luta e acredita na emancipação e dignidade dos povos, acompanhou/a, indignado e estarrecido, a materialização do racismo com a guerra de invasão perpetrada pelo Estado de Israel contra o povo palestino que vive na Faixa de Gaza, ato que a República da África do Sul denunciou à Corte Internacional de Justiça (CIJ) como “crime de genocídio”!(1) Invasão esta que se soma a outras tantas violações ao território palestino submetido à sucessivas violências sofridas desde o final do século XIX, mas com maior intensidade quando da criação do Estado de Israel em áreas densamente povoadas por palestinos e palestinas, em 1948, e que redundou, na época, na expulsão de cerca de 750 mil palestinos forçados ao êxodo, no episódio conhecido como Nakba.

O fato da República sul-africana ser a proponente da ação na Corte Internacional de Justiça não é irrelevante, ainda mais considerando que o país foi gravemente afetado pelo racismo e pelas políticas de apartheid, ao longo de sua história, o que confere especial dignidade e legimitidade ao acusador, ainda mais porque o governo sul-africano reconhece que aquilo imposto pelo Estado de Israel, contra o povo palestino, na Faixa de Gaza, é a expressão contemporânea do racismo, do apartheid, do colonialismo, do imperialismo e do sionismo que se sintetizam em ações criminosas classificadas como genocidas.

Dessa invasão ao território palestino, em 1948, pelo então novo Estado de Israel, se sucederam inúmeros intentos e concretização do avanço israelense sob as áreas nas quais palestinos levavam suas vidas, chegando ao ponto em que, em uma região de domínio originário total palestino, hoje Israel passou a exercer o domínio direto e indireto de praticamente toda a região, cabendo ao povo palestino pequenas “ilhas” na Cisjordânia e na Faixa de Gaza (ver imagem abaixo), nas quais levam a vida ao redor de cinco milhões de pessoas (dois milhões em Gaza e três milhões na Cisjordânia).

Em especial, na Faixa de Gaza, o Estado de Israel impõem, desde 2007, restrições duríssimas à população pela construção de muralhas ao longo de toda a fronteira da região com Israel, impedindo palestinos de entrar e sair livremente, bem como do ingresso de provimentos e produtos necessários ao dia-a-dia, sendo considerado esse território a maior prisão ao céu aberto de pessoas livres e sem nenhuma condenação criminal, da face da terra, ou, então, o maior campo de concentração no mundo, ou ainda o maior regime de apartheid contemporâneo, isso porque palestinos vivem confinados sob controle direto e intenso de suas vidas pelo Estado de Israel.

A guerra genocida contra o povo palestino, iniciada em outubro de 2023, perpetrada pelo Estado de Israel, como denuncia a África do Sul, até o momento, resultou na morte de 37.202 pessoas palestinas, dentre as quais cerca de 13.000 são crianças (35%) e 10.000 mulheres (30%); na afetação de 85 mil pessoas com lesões corporais de com diferentes intensidades, incluindo mutilações, amputações; na migração forçada de 1.700.000 pessoas palestinas que tiveram de saír de seus territórios de vida;(2) na morte de 125 jornalistas, de 195 trabalhadores humanitários da Organização das Nações Unidas e de 340 pessoas ligadas à assistência médica (médicos, assistentes sociais e enfermeiras); na produção de cerca de 19 mil crianças órfãs, pelo falecimento de suas mães.(3)

Para além da grave ameaça à vida e à integridade física de palestinos e palestinas, as ações bélicas-genocidas do Estado de Israel, de acordo com as denúncias da África do Sul e da ONU, implicaram na imposição de condições que tornaram a vida do povo palestino na Faixa de Gaza, praticamente, inviável, isto porque foram ou gravemente afetados ou destruídos ao redor de 77% das instalações físicas destinadas à saúde (Hospitais, clinicas médicas, postos de atenção à saúde); mais de 68% de edificações habitacionais (casas, prédios, moradias); 68% da infraestrutura de telecomunicações; 50% de todas as estradas; 60% de instalações educacionais (e as que sobraram estão inviabilziadas para utilização escolar); 100% das Universidades; 205 mesquitas ou templos religiosos; 195 patrimônios ou edificações históricas; 13 bibliotecas.(4)

O acesso a recursos básicos como água, eletricidade, combustível, gás, alimento e insumos médicos, todos indispensáveis para que o cotidiano possa ser, minimamente, chamado de digno, em virtude das características administrativas da Faixa de Gaza, impostas por Israel, estão absolutamente inviabilizados ou sendo viabilizados de modo, criminosamente, insuficiente.

O fornecimento de eletricidade comumente é zero; o abastecimento de água, pela infraestrutura e plantas de dessalinização destruídas e pela impossibilidade da entrada da ajuda humanitária, é reduzido entre um e dois litros diários por pessoa para satisfazer todas as suas necessidades; a produção agrícola na região, já difícil e insuficiente para alimentar a população em épocas “normais”, com a invasão israelense, ficou inviabilizada, assim como foi restringida a entrada de alimentos proveniente da ajuda externa gerando um quadro de fome e miséria intransponível pelo qual, cerca de 90% dos palestinos passam por severa insegurança alimentar, isso porque apenas Israel é quem autoriza ou não a entrada de alimentos uma vez que controla todos os acessos por terra, mar e ar na Faixa de Gaza, e ele tem optado por não conceder as autorizações conforme às necessidades palestinas.

Mapa da destruição do território da Faixa de Gaza, 58% das construções estão danificadas ou destruídas pela ação do Estado de Israel

As ações criminosas perpetradas pelo Estado de Israel contra palestinos na Faixa de Gaza expressam uma força bélica assassina, em virtude da virulência, desproporcionalidade e, principalmente, da indistinção entre alvos civis e supostos alvos inimigos. Sobre a cabeça do povo palestino Israel despejou, em dados desatualizados, até novembro de 2023, 25 toneladas de explosivos, correspondente a duas bombas atômicas, parte das bombas guiadas remotamente por inteligência artificial, em alvos fixos, e outra parte interminável de bombas sem alvo certo, e em ambos os casos atingiram regiões densamente povoadas, destruindo bairros inteiros, infraestrutura essencial e matando milhares de pessoas.

A África do Sul sintetizou as motivações para denunciar o Estado de Israel por genocídio pedindo sua condenação pelas atrocidades cometidas, bem como para que parasse imediatamente as ações contra o povo palestino na Faixa de Gaza. Foram estas as motivações:

“O Estado de Israel: (i) participa do assassianto de palestinos em Gaza (incluídos crianças palestinas) em grandes quantidades; (ii) está causando graves danos físicos e mentais aos palestinos em Gaza, incluídas as crianças palestina; (iii) está impondo-lhes condições de vida destinadas a provocar sua destruição como grupo.

Essas condições incluem: (a) expulsão das residências e deslocamentos massivos, junto com a destruição em grande escala das casas e áreas residenciais; (b) privação do acesso adequado à alimentos e água; (c) privação do acesso à atenção médica adequada; (d) privação do acesso à habitação, roupas, higiene e saneamento adequados; (e) a destruição da vida do povo palestino em Gaza; e (f) imposição de medidas destinadas a impedir os nascimentos de palestinos”.

A defesa do povo palestino é urgente! Abraçar-se ao opressor, o Estado de Israel, neste momento é um ato de concordância com a materialização, em nosso tempo, das consequências mais brutais do racismo qual seja, o aparthied, o extermínio em massa de pessoas e o genocídio, denuncia a África do Sul. Qual é o seu lado nessa história?

*Eduardo Silveira Netto Nunes é professor de história na Faculdade de Educação da Universidade Federal do Acre (UFAC).

Referências


(1) Denúncia apresentada pela República da África do Sul na Corte Internacional de Justiça, acusando o Estado de Israel por suposto crime de genocídio. Original em inglês: https://www.icj-cij.org/sites/default/files/case-related/192/192-20231228-app-01-00-en.pdf#page=72

Versão em português: https://www.aacademica.org/edunettonunes/17

(2) Dados da Coordenação de Assuntos Humanitários, da Organização das Nações Unidas, ou OCHA, sigla em inglês, que publica periodicamente, em inglês, informes sobre a situação dos Direitos Humanos e de sua violação, na Palestina, em especial, na Faixa de Gaza. Conferir o site da instituição em: https://www.ochaopt.org/ 

(3) Dados da Agência para a Igualdade entre os Gêneros e o Empoderamento da Mulher, da Organização das Nações Unidas (ONU Mulheres). Conferir o site da instituição em: https://www.unwomen.org/es

(4) Dados do “Relatório da situação dos Direitos Humanos da Palestina (A/HRC/55/73, de 25/03/2024)”, apresentado ao Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos. Conferir o site da instituição em: https://www.ohchr.org/es/

5. Reportagem do Brasil de Fato sobre a situação das violências perpetradas por Israel entre outubro de 2023 e maio de 2024. “Raio-X do massacre: veja em mapas e gráficos como Israel está destruindo a Faixa de Gaza”,  Brasil de Fato | São Paulo (SP),15 de maio de 2024. https://www.brasildefato.com.br/2024/05/15/raio-x-do-massacre-veja-em-mapas-e-graficos-como-israel-esta-destruindo-a-faixa-de-gaza

6. Série de artigos sobre o “O genocídio em Gaza”, que podem ser localizados neste artigo: “O genocídio em Gaza: uma massiva operação de limpeza étnica em curso”. Michelle Ventura, Helena Othman, Rafael Oliveira e Bárbara Caramuru. 15 de dezembro de 2023. https://diplomatique.org.br/genocídio-gaza-limpeza-etnica-em-curso/


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