O desacoplamento da Rússia

Imagem: Dmitry Trepolsky
Whatsapp
Facebook
Twitter
Instagram
Telegram

Por ALASTAIR CROOKE*

Não é fácil expressar o modo pelo qual a vitória “absoluta” da Rússia na Ucrânia se confunde com a sensação da ascensão em curso de um renovado sentido de “eu” do país

As relações entre Estados Unidos e Rússia chegaram ao fundo do poço. É ainda pior do que se imaginava. Tornou-se patente, no discurso norte-americano dirigido às altas autoridades russas, que os primeiros tratam os segundos claramente como inimigos. Para ilustrar, é como se um alto funcionário russo perguntasse “o que você quer de mim?”, e a resposta viesse na forma “desejo a sua morte”.

A tensão implícita e a falta de intercâmbio genuíno são piores do que durante a Guerra Fria, quando os canais de comunicação permaneceram abertos. Esse espaço vazio é agravado pela ausência de sentido prático entre os líderes políticos europeus, com os quais um debate fundamentado se revelou impossível.

As autoridades russas reconhecem os riscos desta situação. Elas, no entanto, não sabem como corrigi-la. O teor do discurso também passou da hostilidade total para a mesquinhez. Por exemplo, os Estados Unidos poderiam se dispor a impedir a entrada de trabalhadores na missão russa na ONU simplesmente para reparar janelas quebradas. Moscou então, relutantemente, se vê diante de poucas alternativas, a não ser responder de forma igualmente mesquinha. E, assim, as relações pioram em espiral.

Reconhece-se por toda parte que a “guerra de informação”, deliberadamente injuriosa, é dominada por inteiro pela grande mídia ocidental, o que azeda ainda mais a atmosfera. E ainda que os dispersos meios de comunicação alternativos ocidentais existam e venham ganhando certa escala e importância, não são facilmente incorporados ao debate – são, ao mesmo tempo, diversos e individualizados. A etiqueta de “apologista de Putin” mantém sua toxidade para qualquer provedor de notícias autônomo, e pode destruir sua credibilidade num simples golpe.

Na Rússia, compreende-se que o Ocidente vive hoje uma “falsa normalidade”, um interlúdio dentro da sua própria guerra cultural, no período que antecede a 2024. Os russos o percebem por meio de um paralelo evidente com a sua própria experiência de polarização civil radical: quando a nomenklatura soviética exigia a todos conformidade com a “linha” do partido, sob pena de sanções.

Moscou mostra-se aberto ao diálogo com o Ocidente, mas até agora os interlocutores não representam mais que a si mesmos, e não têm mandato.[i] Essa experiência induz à conclusão de que não faz muito sentido “bater a cabeça” contra a parede de tijolos de uma liderança ocidental ideologicamente pré-orientada. Os valores russos são apenas como um pano vermelho para o touro ideológico ocidental. E não está claro quando pode chegar o momento ou mesmo se então um interlocutor acreditado (capaz de se comprometer) estará presente em Washington para atender o telefone.

Não obstante, os russos veem a inimizade projetada pelo Ocidente com relação à Rússia como comportando tanto aspectos positivos como graves riscos – por exemplo, a ausência de tratados sobre a utilização e mobilização de armas. Os russos sublinham como o desdém ocidental para com eles – acrescido da inimizade explícita – permitiu finalmente à Rússia ir além do horizonte da europeização de Pedro, o Grande. Este último episódio começa a ser visto agora como um desvio do verdadeiro destino da Rússia, ainda que reconhecido no contexto da ascensão da nação europeia pós-westfaliana.

A hostilidade demonstrada pelos europeus para com o povo russo (e não apenas para com seu governo) levou a Rússia a “ser ela mesma” de novo, o que lhe vem para seu grande benefício. Ainda assim, a mudança gera certa tensão: é evidente que os “falcões” ocidentais estarão sempre a esquadrinhar o cenário russo, com vistas a localizar, dentro do seu corpo político, um hospedeiro no qual possam inocular os esporos da sua Nova Ordem Moral armada. Seu propósito: penetrar e fragmentar a sociedade russa.

Inevitavelmente, portanto, qualquer apego cultural explícito ao Ocidente suscita prevenção para a “corrente patriótica” agora dominante. Os russos que se inclinam à cultura europeia, especialmente em Moscou e São Petersburgo, sentem essa tensão. Não são peixes nem aves. A Rússia está avançando rumo a um novo modo de ser, deixando os europeístas a verem seus marcos de referência recuarem. Em geral, a mudança é vista tanto como inevitável como provocadora de um verdadeiro renascimento russo e de um novo sentimento de confiança.

Nossos interlocutores russos relataram-nos que o renascimento religioso passou por uma autoignição espontânea, à medida que as igrejas reabriram após o fim do comunismo. Muitos novos templos foram construídos e, hoje, aproximadamente 75% dos russos afirmam ser cristãos ortodoxos. Há uma percepção de que o “renascimento ortodoxo” tem certo toque escatológico, provocado, em parte, pelo que um dos interlocutores chamou de “escatologia antagônica à ordem das coisas”.

Notavelmente, poucos interlocutores “lamentaram a morte” dos “liberais russos” seculares (que haviam deixado a Rússia): já vão tarde! (Ainda que alguns estejam agora regressando). Parece haver aqui um elemento de purgação na sociedade da ocidentalização dos séculos anteriores, mesmo que a ambivalência seja inevitável: a cultura europeia – ao menos em termos de filosofia e arte – foi, e é, um componente incorporado à vida intelectual russa, e de modo algum estaria prestes a desaparecer.

O âmbito político

Não é fácil expressar o modo pelo qual a vitória “absoluta” da Rússia na Ucrânia se confunde com a sensação da ascensão em curso de um renovado sentido de “eu” do país. A vitória na Ucrânia parece ter sido assimilada como destino metafísico, como algo seguro e revelador. A liderança militar russa, compreensivelmente, continua lacônica com relação ao provável resultado estrutural/institucional do conflito. O debate nos programas de televisão, por outro lado, parecem mais centrados nas rixas e cismas que assolam Kiev que nos detalhes dos resultados no campo de batalha.

Compreende-se que a OTAN foi amplamente derrotada na Ucrânia. A extensão e a profundidade desse fracasso da Aliança é que parece ter sido uma surpresa na Rússia, ainda que reconhecidas, em certa medida, como testemunho da capacidade de adaptação e inovação tecnológica russa para a integração e comunicação de todos os recursos militares. “Vitória absoluta” pode ser entendida como: de forma alguma Moscou permitirá que a Ucrânia se torne novamente uma ameaça à segurança russa.

As autoridades russas consideram que tanto a guerra na Ucrânia quanto aquela em Israel/Oriente Médio combinam-se para segmentar o Ocidente em esferas separadas e controversas, com sua consequente fragmentação e possível instabilidade. Os Estados Unidos enfrentam reveses e desafios que revelarão agudamente sua perda de capacidade de dissuasão, exacerbando mais ainda suas ansiedades quanto à segurança.

Moscou está ciente do quanto o Zeitgeist político em Israel mudou como resultado de um governo radical instalado após as últimas eleições, e, portanto, das consequentes limitações às iniciativas políticas dos governos ocidentais. Ele também observa atentamente os planos de Israel com relação ao sul do Líbano. A Rússia está se coordenando com outros Estados para evitar que a situação resvale em direção a uma grande guerra. A visita do presidente iraniano Ebrahim Raisi a Moscou na semana passada centrou-se, supostamente, na busca de um acordo estratégico abrangente e (supostamente também) incluiria a assinatura de um pacto de combate às sanções ocidentais impostas a ambos os Estados.

Nos termos de uma ordem global emergente, Moscou assume a presidência dos BRICS em janeiro de 2024. É, ao mesmo tempo, uma enorme oportunidade para avançar o mundo multipolar dos BRICS num momento de amplo consenso geopolítico no Sul Global, como também um grande desafio. Moscou percebe a janela de oportunidade oferecida pela sua presidência do bloco, mas está consciente de que os Estados que o compõem estão longe de ter uma posição homogênea. No que diz respeito às guerras de Israel, a Rússia tem tanto um lobby judeu influente como uma diáspora russa em Israel que impõe certos deveres constitucionais ao presidente. A Rússia provavelmente agirá com cautela no que se refere ao conflito Israel-Palestina, a fim de manter a coesão dos BRICS. Mas seguramente formas de inovação econômica e financeira importantes emergirão da presidência russa do bloco.

Por outro lado, nos termos de um “problema União Europeia” para a Rússia – em contraponto ao chamado “problema russo” para a Europa –, foram a União Europeia e a OTAN que, após o golpe de Estado em Kiev (EuroMaidan), arquitetaram um exército ucraniano como aquele que deveria ser um dos maiores e mais bem equipados exércitos da Aliança Atlântica no continente. Depois que a proposta de um acordo de paz russo-ucraniano em março de 2022 foi vetada por Boris Johnson e Anthony Blinken – quando então uma guerra mais longa e intensa tornou-se inevitável –, a Rússia mobilizou-se e preparou suas próprias cadeias de abastecimento logístico.

Com isso, os líderes da União Europeia estão agora “fechando o círculo” de seu delírio projetivo de uma expansão militar russa (ela mesma não mais que uma reação à intensificação da ação da OTAN na Ucrânia). O esforço russo passa a ser, então, prova de um plano para invadir a Europa continental. No que tudo leva a crer que é uma orquestração, os principais meios de comunicação ocidentais mantêm-se à cata de qualquer coisa que possa, ainda que remotamente, assemelhar-se à evidência dos supostos “desígnios” da Rússia contra a Europa.

O espectro do imperialismo russo está sendo insuflado para inculcar medo na população europeia e para justificar que a Europa desvie recursos para a preparação logística de uma guerra que se aproxima com a Rússia. Isto figura mais uma volta nesse círculo vicioso de ameaça de guerra que pressagia coisas ruins para a Europa. Nunca houve, para a Europa, qualquer “problema russo”, até que os neoconservadores aproveitassem a “oportunidade” do EuroMaidan para fragilizar a Rússia.

*Alastair Crooke, ex-diplomata britânico, fundador e diretor do Conflicts Forum.

Tradução: Ricardo Cavalcanti-Schiel.

Publicado originalmente no site da Strategic Culture Foundation.

Nota do tradutor


[i] O autor do artigo encontra-se em visita a Moscou para intercâmbio cultural.


A Terra é Redonda existe graças aos nossos leitores e apoiadores.
Ajude-nos a manter esta ideia.
CONTRIBUA

Veja neste link todos artigos de

AUTORES

TEMAS

10 MAIS LIDOS NOS ÚLTIMOS 7 DIAS

Lista aleatória de 160 entre mais de 1.900 autores.
Gilberto Maringoni Matheus Silveira de Souza Manuel Domingos Neto Walnice Nogueira Galvão Bruno Machado Luiz Renato Martins Gilberto Lopes Eleutério F. S. Prado Maria Rita Kehl Daniel Costa Andrés del Río Caio Bugiato Heraldo Campos Airton Paschoa Rubens Pinto Lyra Vladimir Safatle João Adolfo Hansen Luís Fernando Vitagliano Rodrigo de Faria Jean Marc Von Der Weid Everaldo de Oliveira Andrade Slavoj Žižek Samuel Kilsztajn Érico Andrade Paulo Sérgio Pinheiro Celso Frederico Lincoln Secco Luciano Nascimento Ronald Rocha Daniel Afonso da Silva Bento Prado Jr. Dênis de Moraes Marcelo Módolo Ronaldo Tadeu de Souza Benicio Viero Schmidt Alexandre Aragão de Albuquerque Ricardo Antunes Claudio Katz Vanderlei Tenório Ricardo Abramovay Bruno Fabricio Alcebino da Silva Luiz Eduardo Soares Afrânio Catani Otaviano Helene Igor Felippe Santos Michael Löwy Chico Whitaker Leonardo Boff Annateresa Fabris Luiz Werneck Vianna Jorge Branco Kátia Gerab Baggio Luiz Marques Marcos Aurélio da Silva José Micaelson Lacerda Morais João Feres Júnior Julian Rodrigues Antônio Sales Rios Neto Salem Nasser Mário Maestri Carlos Tautz Eduardo Borges Francisco Fernandes Ladeira Gabriel Cohn Marcelo Guimarães Lima Leda Maria Paulani Plínio de Arruda Sampaio Jr. Milton Pinheiro Michel Goulart da Silva Remy José Fontana Lucas Fiaschetti Estevez Paulo Nogueira Batista Jr Antonio Martins Daniel Brazil João Carlos Loebens Tadeu Valadares Marcus Ianoni Francisco de Oliveira Barros Júnior Jorge Luiz Souto Maior Ari Marcelo Solon José Machado Moita Neto João Carlos Salles Marilena Chauí Leonardo Sacramento Denilson Cordeiro Dennis Oliveira Flávio Aguiar Marilia Pacheco Fiorillo Jean Pierre Chauvin Ricardo Musse Marjorie C. Marona Fernando Nogueira da Costa Boaventura de Sousa Santos José Luís Fiori Antonino Infranca Paulo Capel Narvai Priscila Figueiredo Eugênio Bucci Andrew Korybko Sergio Amadeu da Silveira Ricardo Fabbrini Eleonora Albano Liszt Vieira Tales Ab'Sáber André Singer Luiz Carlos Bresser-Pereira Chico Alencar Luiz Bernardo Pericás Luis Felipe Miguel Henry Burnett Bernardo Ricupero Valerio Arcary Renato Dagnino José Costa Júnior Alysson Leandro Mascaro João Lanari Bo Gerson Almeida Marcos Silva Anselm Jappe Henri Acselrad Valerio Arcary Fernão Pessoa Ramos Juarez Guimarães Thomas Piketty Osvaldo Coggiola Mariarosaria Fabris Eugênio Trivinho Alexandre de Oliveira Torres Carrasco Lorenzo Vitral André Márcio Neves Soares Fábio Konder Comparato Luiz Roberto Alves José Raimundo Trindade Paulo Fernandes Silveira Eliziário Andrade Francisco Pereira de Farias Vinício Carrilho Martinez Ronald León Núñez Berenice Bento Leonardo Avritzer Rafael R. Ioris Celso Favaretto Paulo Martins José Geraldo Couto Tarso Genro Alexandre de Lima Castro Tranjan Ladislau Dowbor Armando Boito Manchetômetro Atilio A. Boron Elias Jabbour Alexandre de Freitas Barbosa João Paulo Ayub Fonseca Carla Teixeira Flávio R. Kothe Yuri Martins-Fontes João Sette Whitaker Ferreira Michael Roberts Sandra Bitencourt José Dirceu

NOVAS PUBLICAÇÕES