Por CAUÊ NEVES*
Considerações sobre a peça teatral dirigida por Bete Coelho e Gabriel Fernandes
“Petra, eu não sei por que complicar o que pode ser simples. O bom comportamento, como você chama, é uma coisa que existe, é para ser usado. A pessoa que está sempre procurando o novo, quando o que existe já foi bem testado, bem, essa pessoa…” (Sidonie).
A história da moda requer a compreensão de seu pathos incluído no olhar da história da arte. É assim que o pensamento sobre a moda pode se tornar capaz de aproximar categorias tão bem-aventuradas da arte no geral. Pathos, genius, sofrimento, inspiração… são conceitos que moldam a linguagem gestual da criação artística. Nesse sentido, a criação do estilista ou da costureira também é assombrada pelo espaço do embate entre a criação imersiva na fantasia e a criação imersiva na razão, como uma luta entre os deuses mitológicos Apolo e Dionísio. O que advém deste processo, poder-se-ia chamar o estilo do artista, tão caro às formas expressivas da moda. São estes os ensinamentos do historiador de arte alemão Aby Warburg, que observou o peso energético da criação modelado por ninfas eufóricas, mas também maníacas. No boudoir de Petra von Kant, vemos a concentração da experiência teatral dessa dinâmica e o fenômeno da moda personificado – à la Dialogo della moda e della morte (1824) de Giacomo Leopardi – entre a artista e seu objeto.
Petra (2024), adaptação dos diretores Bete Coelho e Gabriel Fernandes da peça alemã – que depois virou filme – As lágrimas amargas de Petra von Kant (1971) de Rainer Werner Fassbinder, ilumina o que, nos parece ser, a alegoria perfeita para descrevermos o melodrama vivido entre Petra von Kant e Karin: o problema da nouveauté (ou novidade) na moda. A peça, centrada na relação sáfica e intergeracional entre Petra e Karin, nos conta, em cinco atos, a história da glória e queda da relação. Glória, certamente, pois Petra, uma estilista bem-sucedida, fica embasbacada com o espetáculo da beleza da juventude que emana de Karin. Ela, que é bem mais jovem que Petra, esbanja encanto ao mesmo tempo que uma carência nos olhos; como uma ideia crua, foi atraída pelas promessas da estilista, que notou que Karin teria muitas potencialidades na moda. Se, como diria Friedrich Nietzsche em seu aforisma 114, na obra Aurora, o olhar do convalescente se assemelha ao olhar da criança, isto é, prenhe de pulsão e de receptividade, então Karin estava na hora certa e no ateliê certo. Pois, como sabemos, Petra havia terminado uma relação com Frank, seu ex-marido, e desabafava sobre ele para Sidonie, sua amiga.
O problema da nouveauté foi bem captado pelo filósofo e conterrâneo de Fassbinder, Walter Benjamin. Benjamin soube decifrar a camada mais densa em um habitat moderno, a saber, o apego sem-fim pelo que é novo. A moda aparece, para o filósofo, como um espelho figurativo que permite reproduzir o alcance das ramificações que a novidade veste nas sociedades modernas, como a fetichização da mercadoria e o sex appeal do inorgânico. Não obstante, a moda também é passível de uma reflexão estética própria, visto que as vestimentas se relacionam dialeticamente com a sociedade no pensamento benjaminiano, em que o novo, na moda, imediatamente morre, vira desuso, mas nasce outra vez, ganhando uma nomenclatura atualizada. A moda é essa áspera graça que cria vítimas, fashion victims, à medida em que é cultuada. Isto posto, como afirma Giorgio Agamben, todos somos vítimas sacrificiais de um Deus sem rosto chamado moda. É nesse sentido que vemos, em ambas as representações (tanto no filme quanto na peça), a alegoria da novidade personificada na relação entre Petra e Karin. A estilista é a vítima da moda, cuja atualidade é marcada por demandas que não existiam em épocas passadas, especificamente, a confecção de coleções, desfiles e peças particulares. Marlene, sua assistente de design, é atravessada por esse temperamento de busca pelo atual. Então, quando Karin chega ao ateliê, impõe para Petra os desafios do que poderíamos chamar de nouveauté. Além de ser, literalmente, uma estranha para Petra, ela é jovem, mais nova que Petra, e vem marcada pelo abandono. Karin conta que seu pai matou sua mãe e logo se suicidou, o que faz com que leve uma vida difícil e, cuja carência, Petra sente-se abocada a preencher. Trata-se do exemplo apropriado para entendermos o metabolismo interno da moda: Karin, escurecida sob o signo do abandono, volta a brilhar para os olhos de Petra. E Petra, por sua vez, quer tomar posse dessa novidade que Karin emana, como os pintores modernistas que precisam reproduzir o instante visto, pois quem está fascinado com um objeto procura não se distanciar dele. Karin precisa morar com Petra, precisa posar para Petra, precisa ser sua ninfa. Petra, por seu turno, vê um futuro perfeito para Karin. Na adaptação (2024), Petra pede que Karin desfile: a fantasia de Petra é colocada em ato. Essa passagem parece nos indicar que a peça é uma reflexão sobre a moda, mas há, sem dúvidas, mais pistas desse indicativo em jogo: figurino e cenografia.
No filme, o figurino das personagens, projetado por Maja Lemcke, é um convite para aprendermos sobre flerte, conquista e exibição. Na peça, vemos o véu e a seda como as principais vestimentas das personagens. Parafraseando a figurinista da peça, Renata Corrêa, a ideia era transmitir a transparência da alma e o despir da dignidade. Parece-nos que o figurino consegue, para além disso, adequar o tom sadomasoquista da peça e homenagear, de modo igual, a obra de Fassbinder. Isso se justifica, ao pensarmos no entrelaçamento sádico e masoquista entre Petra, Karin e Marlene, tendo Petra a sadomasoquista eleita: ora é dominada por Karin, ora é dominadora de Marlene. Em relação à homenagem ao cineasta, podemos destacar as inúmeras vezes em que o sadomasoquismo é um behaviour normal de seus filmes. E o mesmo podemos dizer de sua persona, suas relações amorosas e a jaqueta ou o colete de couro indispensáveis no seu dia a dia. Fugindo do look fetichista tradicional, do látex ao couro, tão importante para um Tom of Finland, por exemplo, consideramos que a peça eleva o fetichismo para a categoria de um fetichismo haute couture. A seda translúcida que veste Petra e Karin representa a atualização sofisticada e feminina da roupa de fetiche, isso por causa da cor preta e do entrever a pele através da transparência e dos cortes irregulares. Caberia lembrarmos aqui de Azzedine Alaia, de Halston e de Rober Dognani como criadores que uniram a sofisticação e a sedução por meio do uso de tecidos sem nervuras, favoráveis a uma transfiguração da relação entre o véu e o velado. O choker, que é o acessório-símbolo de uma relação de dominação, ao contrário da aparição no original, já é antecipado por Petra no segundo ato da peça.
Em ambos os roteiros, a cenografia tende a nos mostrar rostos um tanto diferentes entre si. É por isso que, nesta nova adaptação (2024), a cenografia assinada por Daniela Thomas e Felipe Tassara, projeta um quarto próprio (uma espécie de Huis Clos) cheio de espelhos em cujo centro encontramos a cama de Petra, de forma a possibilitar que a plateia consiga ver diferentes nuances dos rostos das atrizes – o que configura mais uma homenagem ao cineasta, tendo em vista que os espelhos sempre aparecem em suas obras, reproduzindo ad infinitum o cenário da cópula como alegoria da criação. No filme, a cenografia é preenchida por manequins nus. Na peça, o espelho é o objeto aliado para a criação em moda, já que não pode faltar enquanto instrumento para a estilista Petra. Contudo, os espelhos tornam-se paredes, formando quase um cerco, o que cria uma atmosfera claustrofóbica como uma pintura do artista francês Francis Bacon: Petra enjaulada na sua ruína amarga e passional, próxima de se transformar numa besta disfórmica.
A atmosfera da peça também nos remete ao cenário teatral do desfile Primavera/Verão Voss (2001), de Alexander Mcqueen. Mcqueen, com esse desfile, revelou a conexão entre a elegância, o fashion e a beleza com o phóbos, a claustrofobia e a morte. Em um desfile tradicional, a passarela se localiza ao centro, em linha reta. Em Voss, as modelos andam dentro de um cubo espelhado e performam como se estivessem presas dentro dele. Ao liberar as paredes de vidro no fim do desfile, outro cubo é aberto e nos mostra uma mulher nua respirando por um tubo, imóvel, com uma postura elegante, petrificada e esquecida, a não ser pelos insetos. Petra aparenta ser uma somatória de todas essas mulheres: elegantes e claustrofóbicas, verdadeiros emblemas da moda. Petra, como qualquer estilista, está condenada à produção do novo na moda, tanto como satisfação, como por fins de trabalho. Sendo a novidade uma demanda da sociedade, a moda é a primeira instância a fazer a comunicação do que é o novo. Os gestos de sofrimento das modelos de Mcqueen se assemelham ao gesto melancólico, mas sem perder a postura, de Petra – com exceção do penúltimo ato, em que Petra está em completa ruína e embriaguez. Na última cena, Petra está como a mulher nua que respira sob aparelhos, em estado de recuperação após o ritual da novidade.
Benjamin afirma no Livro das Passagens, fragmento B 1, 4, o seguinte: “Pois a moda nunca foi outra coisa senão a paródia do cadáver colorido, provocação da morte pela mulher, amargo diálogo sussurrado com a putrefação entre gargalhadas estridentes e falsas”. Esse amargo diálogo sussurrado o observamos no momento do esvaecimento da esperança da moda: a ternura de Karin não é mais a mesma, o que instiga o público a pensar se a sedução do encontro inicial não ocultou a sua verdadeira face. Desta maneira, como diz Benjamin, podemos pensar que Karin era um cadáver colorido que chegou à casa de Petra. A consumação (Révolution) se deu devido ao momento de despossessão de Karin em relação a Petra, quando de suas saídas, festas e encontros. “Minta para mim” – eis o pedido de Petra, cuja expressão
simboliza um amor mascarado, mas também um amor bandido, temas tão frequentes na obra de Fassbinder, o cineasta do amor decadente. Outros filmes que abordam esses temas são Martha (1974), Eu Só Quero Que Vocês me Amem (1976) e Num Ano de 13 Luas (1978). Petra pede que Karin minta para ela, mas, na verdade, deseja a verdade. E quando pede que Karin fale a verdade, deseja escutar a mentira. Dessa forma, Petra oculta o seu rosto com a máscara amarga desse amor decadente. É, de fato, uma vítima sem rosto da moda, como sugere a tese de Agamben. Como se ocultasse o rosto sob um tecido transparente, tal como Martin Margiela mascarou suas modelos para os desfiles de sua maison: uma cobertura crepuscular que oculta de modo tênue o rosto. Nesse sentido, sua face mask é a imagem tênue entre a cor do tecido e a face. Ela pode ser compreendida como a representação do amor amargo de Petra, uma vez que opera nas dimensões do phóbos e do eros presentes na relação dela com Karin.
Petra não pode acreditar nos rodeios de Karin, mas poderia ser diferente para ela, enquanto nossa alegoria da novidade, cuja efemeridade e eterno-retorno é a sua marca? Em outras palavras, o novo, na moda, está intrinsecamente ligado à morte, ao seu momento de desaparição – esse é o outro significado que podemos atribuir a ele: a fantasmagoria, i.e., a aparição de um objeto que está na iminência de seu desaparecimento. A partida de Karin representa o acabamento da experiência do encantamento de Petra diante do novo. Ademais, indica que a mercadoria precisa sair de circulação para outra chegar.
Nos termos e objetos em que falamos, a nova mercadoria é entendida como o retorno do novo, como uma cópia malfeita do que era novo. Em termos contemporâneos, seria o fake fashion ou o fast fashion. Por essa razão, consideramos o retorno de Karin na boneca que Sidonie dá de presente para a amiga Petra no dia de seu catártico aniversário. O que parece ser uma simples boneca é uma cópia malfeita e infantilizada de Karin, vista sob um invólucro kitsch como as esculturas infantis e perturbadoras de Jeff Koons. E, se quisermos manter a leitura do estilo decadente, pois caberia lembrarmos das modelos-bonecas do último desfile de John Galliano para a maison Margiela, que tentam rememorar uma Belle Époque, mas são vertiginosas por conta de sua impossibilidade de existência no presente. Anos depois de tal período histórico e artístico, Galliano faz essas bonecas aparecerem em um mundo secularizado e desencantado. Não se trata, portanto, de uma releitura da época, mas de representar a imagem de choque entre os dois tempos.
O retorno do novo, aqui, em forma de boneca, nos provoca o choque do diagnóstico da nossa condição primeva, passional e “infantil” enquanto sociedade incapaz de despertar do ciclo da novidade, desde a esfera da moda até as demais esferas da cultura e dos costumes. Também é a expressão reveladora da impossibilidade de captação do atual, do presente, do instante, ao mesmo tempo que a necessidade de tê-los resguardados. Agamben, em seu ensaio, O que é o contemporâneo?, nos indica que vivemos uma relação de distância com o tempo presente, de tal forma que somos anacrônicos e inatuais, pois não conseguimos coincidir com o presente. Nessa perspectiva, o atêlie de Petra é palco das encenações do eterno retorno do novo, que demanda de Petra a captura incessante da novidade que emana em Karin e que ganha, ao final, uma cópia de Karin. Nos comovemos com os gestos de Petra pois, ela, enquanto artista, está imbuída passionalmente na ideia do novo. Seu sofrimento refere-se à impotência frente ao ritual do novo, que está intimamente ligado ao ritual da mercadoria na sociedade capitalista. O sofrimento de Petra é, como tentamos mostrar e dar voz, uma caricatura da artista passional na esfera da moda, cuja criação possui um peso energético como qualquer outra forma de arte.
A montagem da peça (2024) flerta com uma certa reflexão sobre a moda e, ao mesmo tempo, propõe construir poeticamente uma moda adequada e atualizada ao tom do roteiro original, além de se inspirar na estética fassbinderiana. Com isso, voltamos ao pensamento histórico da moda para destacar os estilistas que também elevaram estética fetichista à categoria de haute couture. O que está na essência desse estilo na peça é, justamente, a representação do amor amargo e mascarado entre Petra e Karin. Consequentemente, evocamos aquele que, enigmaticamente, levou as máscaras para a passarela: Martin Margiela. Propomos, através desta máscara, a imagem tênue do tipo de amor experienciado entre as personagens.
Alinhada ao figurino “sadomasô” sofisticado, está a impecável e enclausuradora cenografia, que convida a refletir alegoricamente sobre ambientes tão dramáticos quanto o representado. Por isso, para fazer jus à moda, examinamos a construção cenográfica e poética do desfile Voss (2001) de Mcqueen ao lado da cenografia da peça (2024). Os espelhos do cenário mostram, ao público que assiste a peça, uma multiplicidade de rostos de Petra que, seguindo a sua tragédia iminente no roteiro, lembram as figuras disformes das pinturas de Bacon.
Por fim, o diagnóstico da modernidade de Benjamin é fundamental para que o conceito de novidade se revele como a alegoria central no drama da peça, abrangendo desde a relação de Petra com as demandas de sua profissão até o faro temporal da moda. Como vimos, esse faro temporal refere-se à dinâmica ou paradoxo do retorno do novo. Interpretamos tal dinâmica como as cópias reproduzidas da haute couture que são, sobretudo, decadentes em relação ao original. Então, o retorno de Karin como boneca nos sinaliza o movimento de tentativa de reprodução do novo, cuja imperfeição e perversão são exemplificadas, na história das formas, ora pela arte kitsch de Koons, ora pelas bonecas decadentes de Galliano.
*Cauê Neves é graduando em filosofia na USP.
Referência
Petra
Texto: Rainer Werner Fassbinder.
Tradução: Marcos Renaux.
Direção: Bete Coelho e Gabriel Fernandes.
Elenco: Bete Coelho, Luiza Curvo, Lindsay Castro Lima, Clarissa Kiste, Renata Melo.
A Terra é Redonda existe graças aos nossos leitores e apoiadores.
Ajude-nos a manter esta ideia.
CONTRIBUA