O dia de Hiroshima

Imagem: David Warner
Whatsapp
Facebook
Twitter
Instagram
Telegram

Por CAIO HENRIQUE LOPES RAMIRO*

Um tempo do fim que a qualquer momento poderá se converter no fim do tempo

No último dia 6 de agosto, há 79 anos, tinha início uma nova era para a humanidade. Estes são os termos da primeira tese de Günther Anders, quando afirma que esta data deve ser lembrada como o “dia de Hiroshima”, isto é, este dia marca a era em que nós tomamos conhecimento de que temos o poder de transformar qualquer lugar e até mesmo o planeta inteiro em uma Hiroshima. Portanto, em sentido apocalíptico, há uma revelação de que estamos vivendo no tempo do fim.

Neste horizonte de perspectiva, parece interessante retomar esta temática considerando um texto de George Orwell, pseudônimo de Eric Arthur Blair. O escritor e crítico literário – nascido na Índia subjugada pelo domínio colonial da coroa britânica –, é bastante conhecido por seu livro distópico 1984, bem como seu romance A revolução dos bichos. Todavia, pretendemos esboçar algumas linhas a partir de outro trabalho de George Orwell, a saber: “Você e a bomba atômica”.[i]

George Orwell publicou este texto no jornal Tribune, em 19 de outubro de 1945. Portanto, o escrito veio a público dois meses após a explosão da bomba em Hiroshima e apresenta questões muito interessantes, inclusive para o tempo de agora.

Em primeiro lugar, George Orwell afirma que apesar da ameaça de todos sermos dizimados e feitos em pedaços, a bomba atômica não é objeto de discussão, ao menos não tanto quanto deveria se esperar. Na compreensão de Orwell existem algumas publicações, contudo, não são tão úteis aos cidadãos comuns, em especial naquilo que diz respeito à formação de uma compreensão acerca das dificuldades de produção desta arma e da pretensão de monopólio no que tange a sua utilização.

Não obstante, é bastante interessante a afirmação orwelliana de que há um lugar comum que diz respeito à imagem em paralelo da história da civilização e a história das armas. A partir desta aproximação, George Orwell apresenta algumas linhas da história a fim de demonstrar que, salvo, por óbvio algumas exceções, poderíamos pensar que existe uma regra que diz que em “tempos em que a arma dominante é exorbitantemente cara ou difícil de construir tendem a ser tempos de despotismo”.

Ora, por aqui a reflexão de George Orwell vai se construir a partir de um exame da facilidade ou não do acesso às armas, tendo por objetivo examinar a disputa acerca do monopólio da nova tecnologia de destruição, algo que já colocava no horizonte a corrida armamentista que testemunhamos na guerra fria.

Assim, ao que parece, um dos pontos centrais do argumento de George Orwell é evidenciar que se mostra possível pensar que o processo de produção da bomba, que exige uma ampla planta industrial e investimento em tecnologia, é algo custoso e difícil, o que exige inúmeros esforços, o que, todavia, para alguns pode representar algo como uma imagem do progresso técnico e que poderia colocar fim às guerras de longa escala.

No entanto, haveria um custo adicional e este último seria o prolongamento indefinido de uma “paz que não é paz alguma”. Portanto, trata-se de uma “era de suspensão”, isto é, retomando alguns termos de Günther Anders, um modo de estar no mundo que se apresenta como a vida dos ainda não inexistentes, sendo que esta última se desenvolve sob a sombra de Hiroshima, um tempo do fim que a qualquer momento poderá se converter no fim do tempo.

Logo, a questão moral básica passa a ser: Iremos sobreviver? Para George Orwell, “uma arma complexa faz do forte mais forte”, de tal modo, observa-se que a era de suspensão é também um tempo de despotismo.

*Caio Henrique Lopes Ramiro é doutor em direito pela Universidade de Brasília (UnB).

Nota


[i] Para a leitura de uma boa tradução do texto, ver: https://zeroaesquerda.com.br/index.php/2022/09/22/voce-e-a-bomba-atomica-george-orwell/.


Veja neste link todos artigos de

10 MAIS LIDOS NOS ÚLTIMOS 7 DIAS

__________________
  • A colonização da filosofiamar estacas 14/11/2024 Por ÉRICO ANDRADE: A filosofia que não reconhece o terreno onde pisa corrobora o alcance colonial dos seus conceitos
  • A massificação do audiovisualcinema central 11/11/2024 Por MICHEL GOULART DA SILVA: O cinema é uma arte que possui uma base industrial, cujo desenvolvimento de produção e distribuição associa-se à dinâmica econômica internacional e sua expansão por meio das relações capitalistas
  • O entretenimento como religiãomóveis antigos máquina de escrever televisão 18/11/2024 Por EUGÊNIO BUCCI: Quando fala a língua do rádio, da TV ou da Internet, uma agremiação mística se converte à cosmogonia barata do rádio, da televisão e da internet
  • Ainda estou aqui — habeas corpus de Rubens Paivacultura ainda estou aqui 2 12/11/2024 Por RICARDO EVANDRO S. MARTINS: Comentário sobre o filme dirigido por Walter Salles
  • Os concursos na USPMúsica Arquitetura 17/11/2024 Por LINCOLN SECCO: A judicialização de concursos públicos de docentes na USP não é uma novidade, mas tende a crescer por uma série de razões que deveriam preocupar a comunidade universitária
  • A execução extrajudicial de Sílvio Almeidaqueima de livros 11/11/2024 Por MÁRIO MAESTRI: A denúncia foi patrocinada por uma ONG de raiz estadunidense, o que é paradoxal, devido à autoridade e status oficial e público da ministra da Igualdade Racial
  • A falácia das “metodologias ativas”sala de aula 23/10/2024 Por MÁRCIO ALESSANDRO DE OLIVEIRA: A pedagogia moderna, que é totalitária, não questiona nada, e trata com desdém e crueldade quem a questiona. Por isso mesmo deve ser combatida
  • O porto de Chancayporto de chankay 14/11/2024 Por ZHOU QING: Quanto maior o ritmo das relações econômicas e comerciais da China com a América Latina e quanto maior a escala dos projetos dessas relações, maiores as preocupações e a vigilância dos EUA
  • Ainda estou aquicultura ainda estou aqui 09/11/2024 Por ERIK CHICONELLI GOMES: Comentário sobre o filme dirigido por Walter Salles
  • Antonio Candido, anotações subliminaresantonio candido 16/11/2024 Por VINÍCIUS MADUREIRA MAIA: Comentários sobre os mais de setenta cadernos de notas feitos por Antonio Candido

PESQUISAR

Pesquisar

TEMAS

NOVAS PUBLICAÇÕES