Por SAMUEL KILSZTAJN*
Tal qual o Golem, o Estado de Israel saiu do controle e tem disseminado o medo, o pânico e a morte, inclusive entre os dissidentes israelenses e judeus da diáspora
Na mística judaica, na literatura e no cinema, o Golem é criado artificialmente por um rabino para salvar a vida dos judeus contra ataques antissemitas, mas liberta-se do controle de seu criador e dissemina o medo, o pânico e a morte, em total desacordo com o mandamento “não matarás”.
A lenda diz que o estúpido gigante havia sido fabricado de barro e trazia em sua testa a palavra hebraica Emet, verdade. Depois que o feitiço vira contra o feiticeiro, o rabino destrói o Golem apagando a primeira letra de Emet, verdade, que resulta em Met, morto. Entre as diversas versões do Golem, a mais difundida é a do rabino cabalista de Praga do século XVI. Em 1920, Paul Wegener dirigiu o clássico filme do expressionismo alemão O Golem.
Para falar da ética e da estética sionistas, não vou fazer referências à ideologia dos radicais israelenses empenhados em promover a carnificina e expulsão dos palestinos para criar um estado teocrático que se estenda do Mediterrâneo ao Jordão (e, quem sabe, para além). Pelo contrário, vou citar o escritor mais influente de Israel, o pacifista Amós Oz em seu romance autobiográfico De amor e trevas, que atravessa a formação do estado. Tanto a sua família do lado paterno como do lado materno imigrou da Europa para a Palestina no período do Mandato Britânico e Amós Oz nasceu em Jerusalém em 1939.
Após o Holocausto, os europeus ansiavam por se livrar dos judeus sobreviventes e, muito mais poderosos do que os árabes, se empenharam em obrigá-los “a engolir o que a Europa queria vomitar”. Com a publicação do Plano de Partilha da Palestina da ONU em 1947, enquanto o pai de Amós Oz comemorava a profecia de Hertzl, “o estado judeu bate à porta”, sua mãe dizia, “Não bate, não há porta alguma, o que há é um precipício”.
Numa das passagens do romance, Amós Oz introduz a fala subversiva de um companheiro, “Do ponto de vista dos palestinos, somos estrangeiros vindo de outro planeta, que aterrissaram e invadiram as suas terras. Devagarinho fomos tomando pedaço por pedaço e, enquanto assegurávamos a eles ter vindo para o seu bem – para curá-los dos vermes e do tracoma, libertá-los do marasmo, da ignorância e da opressão feudal –, fomos espertamente garfando mais e mais de sua terra. Então, o que você acha? Que vão nos agradecer pela benevolência? Que viriam nos receber com fanfarras festivas? Que viriam nos oferecer numa cerimônia as chaves de todos os lugares que ainda não tomamos só porque nossos antepassados viveram por aqui um dia? Você ainda se surpreende quando eles empunham as armas contra nós? E agora, depois de impor-lhes uma derrota fragorosa e ter deixado centenas de milhares deles em campos de refugiados, ainda acha que vão fazer festinha para nós e nos desejar tudo de bom?”.
Na construção do Estado, as autoridades israelenses se empenharam em transformar o judeu da diáspora humanista, internacionalista e pacifista que caminhava como um cordeiro para o matadouro em um novo judeu forte e viril capaz de eliminar a presença da população nativa que habitava a Palestina.
Amós Klausner foi profundamente marcado pelo trágico suicídio de sua mãe em 1952, poucos anos depois da criação do Estado de Israel. Em De amor e trevas, o pai do protagonista é descrito como um intelectual, fraco e pouco viril; e o menino resolve ir morar em um kibutz para renascer na forma de um forte e viril israelense. Para se livrar da inhaca do judeu diaspórico, trocou também seu sobrenome yiddish por um sobrenome hebraico, assumindo uma nova identidade. Contudo, o destino trai Amós Oz que, ao invés de se transformar em um agricultor, volta-se à escrita em uma narrativa extremamente intimista.
Não gosto de ficar copiando textos originais, prefiro parafrasear as citações, mas, neste caso, temo que não acreditariam nas minhas palavras. “Meu pai lia em dezesseis ou dezessete línguas e sabia falar onze (todas com um sotaque russo)… O menino na foto é meu tio David… E a menina de grandes olhos puxados, vaidosa, pequena e charmosa, aquela menininha é meu pai.” Quando o pai chega em visita ao kibutz, o filho se dirige a ele montado em um trator em movimento, o que o surpreende e aterroriza. “… cheguei em um estrondo ao ponto de desembarque, em meio a uma nuvem de poeira, alguns minutos depois que o ônibus de Tel Aviv estacionou. Meu pai, que eu não via há mais de um ano, já estava lá, protegendo com as mãos seus olhos do sol e nervoso, esperando por ajuda… Me dirigi em um fragor até ele, freando quase na frente de seu nariz e, inclinando-me em sua direção, com uma mão ao volante e a outra pousada com domínio sobre o para-lamas, disse: Shalom. Ele olhou para mim com os olhos ampliados pelos óculos, parecendo uma criança assustada, e retribuiu apressadamente minha saudação, embora não tivesse certeza de quem eu era. Quando me identificou, pareceu surpreso… ‘Permita-me observar que não foi muito prudente aquela sua brusca freada. Você poderia ter me atropelado’”.
Depois de relatar os horrores da guerra que se seguiu à aprovação do Plano de Partilha da Palestina na ONU, o forte e viril protagonista membro do kibutz narra seu encontro com David Ben-Gurion e descreve minuciosamente o herói nacional, a personalidade mais importante da história de Israel, o criador do novo judeu israelense, como uma caricatura do judeu do shtetl, “…um homem andando de um lado para o outro com pequenos e rápidos passos, as mãos cruzadas atrás das costas, os olhos no chão, a cabeça grande projetada para a frente como se fosse dar uma cabeçada… um homem baixo e atarracado, cuja altura era inferior a um metro e sessenta… este homenzinho compacto e de constituição poderosa, algo entre um montanhês forte e patriarcal e um anão velho e enérgico… Tinha uma profética cabeleira prateada que rodeava sua careca como um anfiteatro. Na margem inferior de sua imensa testa havia duas sobrancelhas grossas e cinzentas, abaixo das quais um par de olhos cinzentos e afiados perfurava o ar. Tinha um nariz largo e áspero, um nariz descaradamente feio, um nariz pornográfico, como uma caricatura antissemita. Seus lábios, por outro lado, eram finos e retraídos, mas seu queixo me parecia o maxilar proeminente e desafiador de um velho marinheiro. Sua pele era áspera e vermelha como carne crua. Sob um pescoço curto, seus ombros eram largos e poderosos. Seu peito era enorme. A camisa de gola aberta revelava um peito com pelos da largura de um palmo. Sua barriga era descaradamente protuberante, como a corcova de uma baleia. Parecia tão sólido como se fosse feito de concreto. Mas toda essa magnificência terminava, para meu espanto, num par de pernas de anão que, se não fosse uma blasfêmia, seríamos tentados a dizer quase ridículas”.
A descrição do pai intelectual, fraco e pouco viril, e a do criador do novo judeu forte e viril como uma caricatura do judeu da diáspora expressam a ética e a estética sionistas adotadas pelo Estado de Israel. A postura eminentemente crítica do pacifista Amós Oz nas passagens citadas também pode ser encontrada em seus comentários sobre o mau leitor que está lendo o seu romance autobiográfico, o leitor preguiçoso, sociológico, fofoqueiro e voyeur, que fica procurando a essência da obra no espaço entre o texto e seu autor, e não entre o texto e o leitor.
Usando a imagem de um painel para colocar a cabeça e tirar fotos, Amós Oz sugere que “Em vez de tentar enfiar lá a cabeça do autor, como costuma fazer o leitor banal, quem sabe se você poderia enfiar na abertura a sua própria cabeça, e ver o que acontece”.
“O mau leitor é um tipo de amante psicopata que pula em cima e rasga a roupa da mulher que cai em suas mãos. E quando ela já está completamente nua, ele continua em sua sanha e arranca sua pele, impaciente, joga fora sua carne e, por fim, quando já está chupando seus ossos com os dentes grosseiros e amarelados, só então é que se dá por satisfeito: Cheguei. Agora estou dentro, bem dentro, por dentro. Cheguei.”
Vou me permitir fazer uma nota no próprio texto, porque é mais política do que metodológica. Não leio hebraico e utilizo as traduções em português e inglês. Na edição em português, o item 5, dedicado ao mau leitor, ocupa seis páginas. Na edição em inglês o item 6 ocupa o lugar do 5. Procurei incansavelmente os parágrafos sobre o mau leitor na tradução em inglês e nada, custei a acreditar que todas as seis páginas dedicadas ao mau leitor foram deliberadamente excluídas da edição. O editor-in-chief certamente considerou de mau gosto e censurou a crítica ao leitor, porque os norte-americanos não suportariam um autor falar mal daquele que o está lendo. Conferi a edição em espanhol e ali estavam as seis páginas na íntegra, todas as queixas do Amós Oz contra el mal lector, el lector perezoso, sociológico, cotilla y mirón.
Mas voltemos ao Golem fabricado de barro (adamá), tal qual Adão, “E o Eterno Deus formou o homem do pó da terra” (Gênesis 2:7). Criado artificialmente pelo ser humano, o estúpido gigante que se liberta do criador e se empenha em destruir o mundo é uma ideia fixa, possível inspiração para o afamado Frankenstein de Mary Shelley (1918), humanoides e androides, que continuam sendo reproduzidos em Blade Runner de Ridley Scott (1982), The Terminator de James Cameron (1984) etc.
Tal qual o Golem, o Estado de Israel foi criado artificialmente para salvar a vida dos judeus do antissemitismo. Tal qual o Golem, o Estado de Israel saiu do controle e tem disseminado o medo, o pânico e a morte, inclusive entre os dissidentes israelenses e judeus da diáspora que, apesar da igualdade de direitos a judeus e não judeus constar de sua Declaração de Independência de 1948, ousam discordar que Israel seja a única democracia do Oriente Médio.
*Samuel Kilsztajn é professor titular em economia política da PUC-SP. Autor, entre outros livros, de Yiddish [amz.run/7C8V].
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