Por FLORESTAN FERNANDES*
A luta aberta e persistente representa a única via para quebrar a resistência dos de cima e suas máquinas governamentais de opressão social
Ao Tribunal Popular Zumbi dos Palmares.
Saúdo os companheiros que prepararam e organizaram este debate sobre Zumbi e tiveram a ideia de estendê-lo a todos os excluídos e explorados. Apesar de distanciadas no tempo histórico, não se pode separar estas duas formas de luta: a dos escravos de ontem e a dos explorados de hoje.
Todos os oprimidos, que sofrem preconceitos, discriminação e exclusão, como se fossem párias ou não-classe, compartilham da necessidade de transformar a sociedade, por meio da violência ou da contraviolência.
Zumbi dos Palmares colocou-se acima das vítimas da opressão. Escolheu a guerrilha como o penoso caminho para conquistar e manter a liberdade. Tornou-se um símbolo: do escravo que se auto-emancipa sob uma sociedade colonial escravocrata e enfrenta todos os ódios e perversões de elites privilegiadas e intolerantes.
Zumbi e seus seguidores constituíram uma sociedade nova, negando a base pseudo-jurídica montada sobre um princípio do Direito Romano — “servus non habet personam” (um servo não tem persona).[i]
Demonstraram, assim, que a pessoa do escravo ficava embutida na condição de coisa e que, unidos entre si, os escravos possuíam tanto força social quanto inteligência e capacidade política. Por isso, sua solidariedade e vontade comum derrotaram o poderio dos senhores e da ordem colonial.
Essa foi a razão que conduziu muitos outros oprimidos a recorrer a levantes corajosos e indomáveis. E fez com que o exemplo de Palmares ainda paire como ameaça à tirania e à autocracia sustentadas pelos donos do poder.
Não ceder, nem se acomodar! Não servir de vítima dócil à sanha dos algozes! Aí está o segredo de uma vitória — então inconcebível — e da atração que ela exerce até hoje entre os de baixo.
A luta aberta e persistente representa a única via para quebrar a resistência dos de cima e suas máquinas governamentais de opressão social. Sobrepujar os desafios dos riscos inevitáveis para extirpar os medos que impedem os humildes de se tornarem agentes da própria história e artífices de uma sociedade fundada na liberdade e na igualdade.[ii]
*Florestan Fernandes (1920-1995) foi professor de sociologia na USP e deputado federal pelo PT. Autor, entre outros livros, de A Revolução burguesa no Brasil (Contracorrente).
Notas
[i] Florestan corrobora a tese do jurista e historiador Perdigão Malheiro, segundo a qual, apenas pela manumissão o negro “aparece na sociedade e ante as leis como pessoa (persona) propriamente dita” (MALHEIRO, Perdigão (1976). A escravidão no Brasil: ensaio histórico, jurídico, social, vol. 1, Petrópolis: Vozes; Brasília: INL, p. 141). Para Marcel Mauss, o princípio “servus non habet personam” sustenta que o escravo não tem direito à personalidade, como também: “não possui seu corpo, não tem antepassados, nome, cognomen, bens próprios” (MAUSS, Marcel (2003). Uma categoria do espírito humano: a noção de pessoa, a de “eu”. In. Sociologia e antropologia, São Paulo: Cosac & Naify, p. 389). Florestan reconhece esse tipo de discriminação ao negro mesmo depois da abolição: “Apesar da enorme tolerância associada ao uso de nomes e prenomes das famílias tradicionais pelos ex-escravos, até aí se estabeleciam distinções notórias. Certa matrona, de família com belo renome, tinha por hábito chamar por Clemente os moleques de recado (em regra, ‘pretos’). Uma ocasião, um desses rapazes foi à sua casa para lhe prestar um serviço. Ela indagou: ‘Como é que você se chama? Clayton?… Isso não é nome de negro! Você se chama é Clemente!’ E o designou, sempre, por esse nome” (FERNANDES, Florestan (2008). A integração do negro na sociedades de classes, vol. 1. São Paulo: Globo, p. 350). Como bem notou Haroldo Sereza, o próprio Florestan teve uma experiência semelhante em sua infância humilde, quando passou a ser chamado de Vicente pelos patrões da sua mãe, Maria Fernandes, que fora empregada doméstica (SEREZA, Haroldo (2014). In. PERICÁS, Bernardo; SECCO, Lincoln (orgs.). Intérpretes do Brasil: clássicos, rebeldes e renegados. São Paulo: Boitempo).
[ii] Florestan morreu em 10 de agosto de 1995. Em 19 de novembro deste ano, no domingo que antecedeu os 300 anos da morte de Zumbi, Benedita da Silva publicou um belo artigo em que aproveitou para relembrar algumas das ideias de Florestan (SILVA, Benedita (1995). O resgate dos ideais de Zumbi dos Palmares, Folha de S. Paulo, 19 de novembro de 1995, disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/fsp/1995/11/19/opiniao/8.html). Em 1996, num seminário em homenagem ao sociólogo, na UNICAMP, Clóvis Moura fez uma longa citação do texto que Florestan encaminhou ao Tribunal Popular Zumbi dos Palmares (MOURA, Clóvis (1998). Florestan Fernandes e o negro: uma interpretação política, Princípios, n. 50, disponível em: https://siac.fpabramo.org.br/uploads/acervo/PTDN_APS_SNCR_1998_ART_00001_NT.pdf. Nesta conferência, Moura comenta sobre seu último encontro com Florestan, em maio de 1994, num seminário na UFBA sobre o pensamento e a ação política de Carlos Marighella. Naquela ocasião, Florestan analisou as estratégias de guerrilha desenvolvidas por Marighella (FERNANDES, Florestan (2019). O pensamento político de Marighella, Traduagindo, 20 de novembro de 2019, disponível em: https://traduagindo.com/2019/11/20/o-pensamento-politico-de-marighella-por-florestan-fernandes/). Segundo Moura, os textos sobre Zumbi e Marighella refletem as posições de Florestan como militante revolucionário: “não mais pregado na cátedra, mas no corpo-a-corpo da política proletária, negra e socialista” (1998, p. 83).
As estratégias de guerrilha urbana desenvolvidas por Marighella influenciaram a ação política dos militantes do Black Panther (SANTIAGO, Andrey (2021). A influência de Carlos Marighella no partido dos Panteras Negras, Traduagindo, 4 de novembro de 2021, Disponível em: https://traduagindo.com/2021/11/04/carlos-marighella-panteras-negras/). Em 1974, um agente do FBI escreveu sobre o legado de Marighella nos EUA (DEAKIN, Thomas (1974). The legacy of Carlos Marighella, FBI Law Enforcement Bulletin, v. 43, n. 10, p. 19-25, disponível em: https://www.ojp.gov/ncjrs/virtual-library/abstracts/legacy-carlos-marighella). Em novembro de 1969, poucos dias após o assassinato de Marighella, o jornal do Black Panther publicou um texto do revolucionário brasileiro (MARIGHELLA, Carlos (1969). A message to brazilians, The Black Panther, v. 3, n. 29, 8 de novembro de 1969, p. 14-15, disponível em: https://www.marxists.org/history/usa/pubs/black-panther/03n29-nov%208%201969.pdf). Nesse período já circulava entre os militantes uma tradução clandestina do Mini-manual da guerrilha urbana, que seria publicada em 1971 (MARIGHELLA, Carlos (1971). Minimanual of the urban guerilla. In. MALLIN, Jay (org.). Terror and urban guerrillas: a study of tactics and documents, Florida: Coral Gables; University of Miami Press, p. 67-115, disponível em: https://www.latinamericanstudies.org/book/Marighella.pdf).
[iii] Pesquisa, edição e notas de Diogo Valença de Azevedo Costa (UFRB) e Paulo Fernandes Silveira (FEUSP e GPDH-IEA/USP). Esse documento encontra-se na Coleção Especial do Fundo Florestan Fernandes, na Biblioteca Comunitária da UFSCar; referência para localização: UFSCar/SiBi/COLESP/Fundo Florestan Fernandes/título do documento.
[iv] Este documento é composto por duas folhas: numa delas vê-se o texto datilografado com as correções feitas à mão por Florestan; a outra traz o mesmo texto corrigido, com encaminhamento de Vladimir Sacchetta, amigo do sociólogo e da sua família, a Benedito Mariano, diretor do Centro Santo Dias de Direitos Humanos. O boletim informativo da Coordenação Nacional das Entidades Negras (CONEN), de março de 1995, anuncia a realização do Tribunal Popular Zumbi dos Palmares, na cidade de São Paulo, como parte das homenagens pelos 300 anos da morte desta grande liderança negra, disponível em: https://www.enfpt.org.br/acervo/jornadas/jnfc-racismo/timeline/media/documentosacervo/300%20anos%20de%20zumbi%20dos%20Palmares.pdf. Este julgamento simulado ocorreu na Faculdade de Direito da USP, no Largo de São Francisco, no dia 12 de maio de 1995. Ele foi presidido pela senadora Benedita da Silva (PT-RJ) e teve como promotor o deputado Hélio Bicudo (PT-SP). Uma das juradas foi a senadora Marina Silva (PT-AC). Como Florestan destaca em seu texto, o evento promoveu um amplo debate sobre as diversas formas de violência do Estado. O padre Júlio Lancellotti, por exemplo, foi convidado para falar sobre a violência contra os menores, estas informações estão contidas em reportagem da Folha de S. Paulo, disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/fsp/1995/5/12/cotidiano/26.html. Com a saúde debilitada, Florestan não participou do evento, mas mandou esse texto para os organizadores.
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