Uma carreira de Estado para o SUS

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Por Paulo Capel Narvai*

O presidente Lula vem reafirmando que não quer “fazer mais do mesmo” e que seu governo precisa “ir além”. Seremos, finalmente, capazes de sair da mesmice e ir além. Conseguiremos dar esse passo adiante na Carreira-SUS?

Direto ao que importa: a carreira de Estado do SUS (“Carreira-SUS”), é mais, muito mais do que um mero plano de cargos, carreiras e salários de uma instituição ou órgão público. É assunto institucional do SUS, no campo da Seguridade Social brasileira. É tema político em cujo centro está o lugar que deve ocupar o trabalho, e quem trabalha, no capitalismo financeirizado que marca o Brasil e o mundo contemporâneo. Refiro-me à Seguridade Social, pois é o lócus do SUS. O trabalho em saúde, no SUS, deve ser compreendido como uma parte do trabalho social no Brasil, de modo articulado aos trabalhadores da previdência social e da assistência social, pois esse trabalho tem como objeto não uma mercadoria, mas um direito social.

Embora o SUS seja responsável por feitos notáveis na saúde pública brasileira, os profissionais responsáveis por esses feitos não se sentem “trabalhadores do SUS”, mas “funcionários da Prefeitura”, “servidores do governo do Estado”, uma vez que são estes que lhes pagam os vencimentos – escrevi em 2015. Não há, portanto, identificação funcional com o SUS. Esses profissionais de saúde “vestem outra camisa” e não a “camisa do SUS”, conforme se diz.

Ninguém (com exceções, claro) se sente “do SUS” e, portanto, os rumos e o destino do sistema não lhes dizem respeito, não lhes significam nada. E isto é, sem dúvida, mais um desastre simbólico envolvendo o sistema (outro desastre simbólico é o que diz respeito ao ocultamento do símbolo do SUS).

Por causa dessa complexidade subjacente ao tema, os debates sobre a Carreira-SUS, são atravessados por muitos interesses, que vão dos vários tipos de corporativismos aos muitos modelos de gestão pública que impactam o SUS, passando pela burocracia estatal, em meio aos esquemas de dominação política da burguesia que controla o Estado brasileiro, com a conhecida mão de ferro que submete os três poderes da República ao seu poder econômico.

Como classe social hegemônica, a burguesia odeia o que denominamos “ideário do SUS”: os valores que o norteiam, a universalidade, a equidade, a integralidade (que rejeita a saúde-doença como fenômeno apenas biológico) e a gestão participativa (com base em conselhos e conferências de saúde sob os princípios do Estado Democrático de Direito). A classe social que manda e desmanda no Estado brasileiro não quer que recursos financeiros (suficientes, adequados e estáveis) sejam alocados ao nosso sistema universal de saúde. Se pudesse, extinguiria o SUS hoje mesmo, ou o quanto antes.

É, porém, nesse contexto adverso, hostil ao trabalho e aos trabalhadores, que a Carreira-SUS, como uma carreira de Estado, ou se resolve no Congresso Nacional, como o pilar estruturante que falta ao SUS, ou seguirá “morrendo na praia”, como “tem morrido” desde que, há trinta e seis anos, o SUS foi criado naquela terça-feira em que se reuniu, em 17 de maio de 1988, a 267ª Sessão da Assembleia Constituinte.

Simulacros de carreira

Para desgosto dos anti-SUS, tal qual a fênix, a carreira que tem morrido na praia, sempre ressurge das cinzas, deformada, transfigurada, quase irreconhecível, mas ela aí está, reaparecendo sob várias formas, como a da “lei do agente comunitário de saúde”, a “lei do piso salarial nacional da enfermagem”, a “lei do programa Mais Médicos” e os vários projetos de lei (PL) que tramitam no parlamento brasileiro, um dos quais para equiparar o “agente de vigilância sanitária” ao “agente comunitário de saúde” e ao “agente de combate às endemias” e outro que “modifica o salário-mínimo dos médicos e cirurgiões-dentistas”, previsto na Lei nº 3.999, de 15 de dezembro de 1961.

A sanção presidencial de leis que deputados e senadores não conseguem impedir, e que aprovam supondo que com isso vão amealhar votos e “cabos eleitorais”, em mal disfarçada tentativa de mercantilização da saúde, acaba por criar um cipoal legislativo sobre “quase a mesma coisa”, mas que não consegue ocultar o fato de que vai se instituindo no Estado nacional um simulacro de carreira, um arremedo de plano, um pastiche de cargos, um fantasma de salários, como uma espécie de embrião teratogênico de uma Carreira-SUS. “A vida não para”, diria Cazuza.

Mas esse não é o único caminho possível para, finalmente, dotar o SUS de uma carreira de Estado que respeite os profissionais da saúde e que opere como um enfrentamento corajoso, digno e contundente do trabalho indecente e da precarização dos vínculos empregatícios, instituindo a valorização e o reconhecimento dos direitos trabalhistas na saúde pública.

É preciso avançar e pensar soluções mais abrangentes e, portanto, sistêmicas para problemas crônicos do SUS, pois é possível construir outra história que, negando o simulacro, institua efetivamente uma Carreira de Estado, com a aprovação de uma lei nesse sentido pelo Congresso Nacional. Uma lei que crie não apenas um órgão no governo federal incumbido de coordenar sua gestão em âmbito nacional, mas que faça com que este órgão conte com um Fundo Nacional que financie a Carreira, gerindo recursos das quotas estaduais e municipais do Fundo Nacional de Saúde alocadas ao custeio de pessoal.

Ao invés de transferir recursos para estados e municípios, o órgão federal gestor da Carreira-SUS pode transferir o dinheiro diretamente para as contas-salário dos integrantes da Carreira-SUS, estejam onde estiverem trabalhando no SUS, mas sempre sob gerenciamento e controle funcional das autoridades locorregionais do SUS.

Fazê-lo não é apenas mais racional, pois faz cessar o “passeio” de dinheiro público por contas correntes de administrações municipais e delas para terceiros contratados que fazem apenas o que, atualmente, pode ser feito sem intermediários. É também muito mais seguro e transparente, pois todas as operações bancárias são contabilizadas e podem ser auditados por órgãos públicos incumbidos de fiscalizar a administração pública.

As administrações municipais, nesse cenário, poderiam abrir mão de terceirizar o SUS para organizações de propriedade de particulares, muitas vezes ditas “sociais”, para não terem de violar a Lei de Responsabilidade Fiscal, conforme se alega, pois não estariam incumbidas de todo o ciclo da administração dos quadros funcionais do SUS (como realizar concursos variados e onerar seus orçamentos com dispêndios salariais desses servidores), mas apenas atestariam a presença e a realização de atividades laborais nos locais de trabalho e atenderiam demandas rotineiras dos órgãos regionais de gestão da Carreira-SUS, integrantes da estrutura do órgão federal, que a coordenaria em âmbito nacional.

Tudo isso, porém, segue sendo negado aos trabalhadores que dão vida ao SUS diariamente e que, ainda recentemente, ajudaram o país a superar as agruras da pandemia de covid-19, agravadas pela estupidez instalada no poder federal e pelo negacionismo que se abateu sobre autoridades, em todos os níveis de gestão, e em boa parte da nossa população.

Muito mais que uma mesa de negociação

A Carreira-SUS, com as características que precisa ter, e que busco alinhavar neste artigo, não é assunto para uma ou algumas secretarias de um ministério, ou para um ministério de Estado, e nem mesmo para todo um governo. É tema que implica vários setores de governo e, portanto, vários ministérios. Construí-la é tarefa demorada, que implica mobilizar e pôr para trabalhar um conjunto relativamente grande de especialistas e técnicos capacitados. Tudo indica que realizar esse trabalho atravessará vários governos, nos próximos anos – talvez décadas.

Nessa empreitada instituinte, além de pensar grande e colocar os olhos num horizonte que é ainda indefinido, é prudente olhar para o passado, para que iluminando o futuro, ajude a criar o que é necessário hoje e avançar para esse horizonte indefinido, delineado apenas em grandes pinceladas. É que esse futuro não deve estar aprisionado ao passado e, sobretudo, aos erros e impossibilidades do passado. O mundo mudou desde que o SUS foi criado em 1988 e regulamentado em 1990, pelas leis 8.080 e 8.142.

Desde a histórica 8ª Conferência Nacional de Saúde, quando o SUS era ainda uma proposta – posteriormente encampada e aprovada pela Constituinte de 1988 –, a proposta de efetivação da carreira profissional dos sonhos dos trabalhadores do SUS vem sendo aprovada em todas as conferências nacionais de saúde. Apesar disso, ela nunca veio. E não há, atualmente, maiores dificuldades técnicas para construí-la, com participação social e dos profissionais. As dificuldades, muitas, são sobretudo políticas, e tem a ver com as características da nossa República, uma federação, num território continental.

A administração, incluindo a Administração Pública, se desenvolveu muito nas últimas décadas, sobretudo após a popularização da internet e a disseminação dos computadores, que hoje estão onipresentes em nossas vidas. Assim, o que não era viável quando o SUS foi criado, quando sequer se sabia ao certo quantos profissionais trabalhavam na área pública da saúde, em todo o país, hoje é absolutamente viável. Basta criar bases de dados e, em alguns dias, ou até mesmo horas, é possível dispor de dados necessários para a gestão nacional, e em qualquer nível da administração pública, da Carreira-SUS.

Há também, hoje, muitos planos de cargos e salários, em várias empresas, inclusive estatais, como o Banco do Brasil e os Correios, para ficar em apenas dois exemplos notórios, na área pública. Mas temos também os PCCS das Forças Armadas. Enfim, e reiterando: o problema central para uma Carreira de Estado do SUS não é técnico. É político. Porém, de modo geral, gestores do SUS desconversam sobre isso. Não querem nem ouvir falar do assunto. Estão e não querem sair dela, numa zona de conforto. Que pode ser confortante para gestores, mas que são um inferno para os trabalhadores. E muitas lideranças sindicais também, infelizmente.

Está em curso, no segundo semestre de 2024, o processo da 4ª Conferência Nacional de Gestão do Trabalho e da Educação na Saúde (CNGTES), que sob o tema central “Democracia, Trabalho e Educação na Saúde para o Desenvolvimento: Gente que faz o SUS acontecer”, começou a ser impulsionado com a realização de conferências municipais e regionais, encerrado em junho. A etapa nacional da 4ª CNGTES ocorrerá em Brasília, de 10 a 13 de dezembro. Há muito em discussão, mas a Carreira-SUS mobiliza corações e mentes, como não poderia deixar de ser.

Parece superado, finalmente, um período em que esse assunto era tratado (quando era tratado…) de modo vago e com ambiguidades e subterfúgios, como se se tratasse de um tema irrelevante ou tão complexo que as pessoas não pudessem entender. E não se trata disso, claro.

Mas é perceptível que muitos atores políticos, importantes na cena, vem buscando deslocar o debate sobre a Carreira-SUS, do plano nacional, para várias carreiras localizadas, restritas a algum Município ou Estado. Ou focalizando o debate em detalhes sobre carga horária da jornada de trabalho dessa ou daquela categoria profissional, ou de recursos transferidos para “o município pagar o piso” e outras questões do tipo que, tendo certamente importância, nem sempre são relevantes frente ao desafio de criar a Carreira-SUS. Algumas são falsas questões, postas ao debate aparentemente para ocupar um espaço que deveria estar sendo dedicado a outros aspectos, cruciais, do tema da Carreira-SUS.

O debate sobre isso precisa, porém, a meu juízo, considerar que o assunto requer abrangência nacional, levando em conta as características do nosso sistema federativo e o modelo de governança muitíssimo bem-sucedido construído pelos atores sociais que cuidam do SUS, como um sistema público, do Estado brasileiro. São atores fundamentais, além de dezenas de entidades de profissional de saúde e movimentos sociais, o Conselho Nacional de Saúde (CNS) e os Conselhos que reúnem e organizam politicamente, os secretários estaduais de saúde (CONASS) e as secretarias municipais de saúde (CONASEMS).

Assim como o SUS não é uma megaorganização estatal, única, que opera nacionalmente como um “serviço único” de saúde, a Carreira-SUS deve ser concebida e instituída como algo mais do que um PCCS de um “serviço único”, mas como uma “política de pessoal” para um “sistema de saúde”. Esse aspecto sistêmico é decisivo, tanto para o SUS quanto para a Carreira-SUS.

Para o SUS, pois suas características sistêmicas, embora tenham base no chamado “setor saúde”, requerem que o SUS articule políticas públicas formuladas e geridas em outros “setores”, como o ambiente e a educação, para ficar em apenas dois setores clássicos, que impactam a saúde das pessoas e dos animais, como muito bem formulado pela “Saúde única” (“One Health”) ou “Uma só saúde”. A “Saúde única” propõe uma abordagem integrada, reconhecendo a conexão entre a saúde humana, animal, vegetal e ambiental.

Para a Carreira-SUS, pois sua governança interfederativa, precisa se coadunar com o modelo de governança do SUS, com gestão participativa e protagonismo de todos os entes federativos, acrescidos das representações dos trabalhadores do SUS e dos usuários do nosso sistema universal de saúde, em todos os níveis da estrutura do SUS. Nesse sentido, o Conselho Nacional de Saúde aprovou resolução que recomenda a criação de Conselhos Locais de Saúde em todas as unidades de saúde do SUS com o objetivo de fortalecer processos democráticos de cogestão no SUS. Para um sistema único, uma carreira única. Mas, para um sistema com governança compartilhada por todos os entes federativos, também uma carreira com governança compatível com o sistema do qual é parte estruturante.

Características estruturais

Em anos mais recentes, muitas lideranças de trabalhadores do SUS, comprometidas com os interesses desses profissionais, vêm convergindo na defesa de uma Carreira de Estado para o SUS na qual estejam contempladas, pelo menos, as seguintes exigências:

Carreira de Estado – deve ser efetivamente uma Carreira de Estado, abrangendo e envolvendo, portanto, todos os entes federativos, sob coordenação do governo federal;

Interfederativa – todos os entes federativos devem contribuir e ter suas atribuições e competências definidas para a sua viabilidade em termos nacionais, incluindo a participação no cofinanciamento e na gestão da Carreira-SUS, em âmbito nacional, locorregional e municipal. Essa característica da Carreira-SUS requer que sua base operacional seja municipal, com gestão compartilhada entre os entes federativos municipal, estadual e federal, com a criação de uma instância específica em cada uma das 456 Regiões de Saúde do SUS, que articula, planeja, organiza, supervisiona a execução e avalia, permanentemente, os fluxos e a dinâmica da Carreira-SUS na região, sob coordenação nacional do governo federal, com uma Executiva Nacional da Carreira-SUS instalada no Ministério da Saúde. Repito o que tenho dito há quase dez anos, desde que, em 16/5/2015, o Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu que é constitucional que recursos públicos sejam transferidos para organizações sociais de saúde (OSS).

A decisão do STF impõe aos que pensam a situação atual e o futuro do SUS que considerem a viabilidade de se criar uma organização potente, sob controle público e propriedade estatal, de abrangência nacional, capaz de se institucionalizar como alternativa às OSS, para que o SUS não sucumba frente a elas, rendendo-se definitivamente à privatização. Penso que essa alternativa corresponde, para os que se opõem à privatização do SUS, à criação de um órgão incumbido de coordenar e gerir, nacionalmente, a Carreira-SUS;

Multiprofissional – conter vários quadros de servidores, todos enquadrados segundo as diferentes categorias profissionais que atuam no sistema, considerando sua origem de graduação, desdobrando-se esses quadros por níveis de formação, dos profissionais auxiliares e técnicos ao pós-doutorado, e setores de atividades segundo as áreas de atuação do SUS, como as vigilâncias, a administração, a educação permanente em saúde, a assistência (prestação do cuidado diretamente às pessoas).

Os cargos da Carreira-SUS devem ser designados não reproduzindo as denominações das categorias, mas de modo genérico e com escalas de níveis, para que uma determinada categoria na Carreira-SUS contemple simultaneamente várias categorias profissionais, distinguindo-se tecnicamente a denominação dos cargos, das denominações das funções. Médico, por exemplo, não precisa ser cargo, mas função. Nem sanitarista precisa ser denominação de cargo, pois suas funções podem ser exercidas por profissionais com diferentes graduações.

Além de racionalizar os quadros de cargos, esse modo de organizá-los atenua as pressões corporativistas sobre a Carreira de Estado. Um elenco tão vasto quanto seja necessário de funções pode contemplar e acomodar de modo adequado, dinâmico e satisfatório, expectativas profissionais variadas;

Única – a Carreira-SUS precisa contemplar todos, em todo o país. Ser única, como é o SUS. Única em sua característica sistêmica, mas múltipla e plural, e logo se vê, bastante complexa em sua estrutura, contemplando as várias possibilidades de vínculos empregatícios previstos na legislação trabalhista brasileira. Isso, ser única, abre conflito frontal com a ideia de que devemos ter no SUS, CarreiraS, no plural, com cada Estado e Município tendo a sua “carreira”. Embora essa perspectiva tenha servido até hoje de “cenourinha” para iludir sindicalistas e viabilizar “encantadores de serpentes”, que têm se saído muito bem nesse ilusionismo, os trabalhadores do SUS não se devem deixar enganar.

É preciso trabalhar seriamente na criação da Carreira-SUS, que deve sim ser flexível e plural, de modo a ser compatível com diferentes necessidades dos serviços e modalidades administrativas públicas. O vocábulo “única” não corresponde a uma camisa-de-força a padronizar tudo e todos e engessar cargos e funções. Trata-se do oposto. “Única” porque tudo sobre cargos e funções no SUS, inclusive o provimento de cargos de direção e assessoramento deve se dar “por dentro” da Carreira-SUS, conforme estatutos democráticos transparentes, e não para se prestar a barganhas politiqueiras com vereadores e lideranças partidárias.

O caminho que muitos buscam para seguir usando as estruturas do SUS para prosseguir com seus negócios político-partidários é o oposto ao da carreira única: é o caminho das carreiras, locais, paroquiais, dessas que “prendem” o servidor do SUS “amarrando-o” aos interesses dos que o “apadrinham”, contrariando o interesse público na saúde. Sendo “única” a Carreira-SUS precisa operar, politicamente, como uma referência de estrutura de cargos, funções e salários, mesmo para municípios que a ela não adiram, por razões variadas. Por essa razão, a estratégia para a sua implantação, gradativa, deve considerar que a autonomia dos entes federativos, consagrada na Constituição de 1988, precisa ser respeitada sendo, portanto, sempre por adesão do município a sua vinculação à Carreira-SUS.

Mas, ainda que sua dimensão tenha pouca expressão nos primeiros anos, a Carreira-SUS pode ter importante impacto, no médio prazo, em áreas como a saúde indígena, cujo subsistema é de gestão direta do governo federal, além de servir como modelo para todos os entes federativos. Essa característica de modelo para os municípios, é uma referência institucional de enorme importância para o SUS e seus profissionais;

Nacional – A abrangência precisa ser para todo o território brasileiro, pois, reitero, não bastam carreiras municipais ou estaduais. A abrangência nacional é indispensável numa Carreira-SUS, pois seu delineamento deve prever a possibilidade de exercício profissional no SUS em qualquer um dos 5.570 municípios brasileiros, sem que as transferências impliquem perdas de vínculos funcionais e direitos trabalhistas. O local de trabalho, de importância laboral, não pode implicar perdas de direitos assegurados pela legislação trabalhista brasileira.

Nesse sentido, a Carreira-SUS deve reafirmar o princípio ético da preponderância do trabalho sobre o capital e a sua abrangência nacional contribui para isso. A Carreira-SUS deverá realizar periodicamente concursos públicos para ingresso no SUS e organizar um “banco nacional de claros”. Tudo isso precisa ser planejado, organizado e executado, de modo rotineiro, tendo em vista essa dimensão nacional brasileira.

Além de assegurar a necessária mobilidade em âmbito nacional para os que a integram, é indispensável definir regras para ingresso na Carreira-SUS, ascenso aos diferentes níveis, nos diversos quadros de cargos, definição de jornadas de trabalho, prêmios à dedicação exclusiva, garantias de direitos e fixação de deveres, bem como as condições para o efetivo controle público por conselhos locais de saúde, cuja existência em todas as unidades de saúde do SUS vem sendo enfaticamente recomendada pelo Conselho Nacional de Saúde.

A Carreira-SUS precisa fixar regras para exoneração/demissão a serem consideradas nos processos administrativos, em regime de cogestão por colegiados de gestão regional da Carreira-SUS. Tais colegiados, nos marcos da gestão participativa, que caracteriza a luta travada historicamente pelos construtores do nosso sistema universal de saúde, precisam ser compostos por representantes dos municípios de cada Região de Saúde do SUS, dos trabalhadores, por meio de seus sindicatos, e de usuários dos serviços públicos de saúde do SUS, por meio dos conselhos municipais de saúde da respectiva região. Salvo decisão em contrário dos próprios trabalhadores em nível municipal, o governo federal deve assumir a responsabilidade pela administração das aposentadorias e pensões da Carreira-SUS e assegurará uma base salarial e isonomia em nível nacional.

É nessa perspectiva que a referida carreira é de Estado e busca qualificar servidores públicos, viabilizando que seu trabalho seja protegido, e não precarizado, nos termos da Organização Internacional do Trabalho. A essa base nacional, estados e municípios vincularão seus aportes financeiros diretos, por meio de mecanismos variados de incentivos e adicionais por local de exercício e outros. Além dos aspectos previdenciários que justificam a coordenação federal da gestão da Carreira-SUS, não há nenhum motivo razoável que justifique que recursos financeiros destinados ao pagamento de salários e encargos sociais sejam repassados, como “transferências da União”, para estados e municípios.

E desses, sejam transferidos – e muitas vezes de modo bastante obscuro – para empresas privadas, de propriedade de particulares, as quais, depois de cobradas taxas administrativas, fazem recolhimentos à previdência. Isso, quando não há calote de empregadores inescrupulosos. Esse “passeio de dinheiro” público é atualmente, na era da informação, desnecessário – e acaba custando muito caro aos cofres públicos. Não há qualquer justificativa técnica razoável para isso, além do que, esse modelo de financiamento da força de trabalho do SUS claramente, não interessa aos trabalhadores do sistema. Assim, a base federal da Carreira-SUS possibilita assegurar uma base salarial nacional e, sobretudo, isonomia em nível nacional, uma antiga aspiração dos trabalhadores do SUS.

As objeções

Muita gente que é contra uma Carreira-SUS, interfederativa, multiprofissional, única e nacional alega que isso não seria possível por ser: “ilegal”, “violar o pacto federativo”, não ter “viabilidade política no federalismo brasileiro”, e não ser “factível, dadas as características da administração pública”, dentre outras dificuldades.

São todas ponderações sensatas, que vêm de especialistas, de pesquisadores, de profissionais que não têm apenas uma opinião sobre o assunto, mas que se dedicam ao estudo do tema. Esses especialistas argumentam que não é que não tenhamos, ainda hoje, uma Carreira-SUS apenas porque não se quer tê-la ou por falta de “vontade política”.

Reconhecem que a reivindicação é justa, mas que isso não seria exequível, no contexto federativo brasileiro, e num país-continente como é o Brasil. É possível que tenham razão. Mas, nesse caso, o que propõem para barrar a precarização e a desvalorização dos profissionais de saúde do SUS?

Os argumentos apresentados em contraposição à Carreira-SUS repetem o “problema” do tipo de federalismo e o pacto federativo derivado da Constituição de 1988 e a determinação de que o SUS tenha “comando único em cada esfera de governo”. Dizem ainda que há diferenças marcantes entre os entes federativos, cuja “autonomia” também é reconhecida pela Carta Magna de 1988. Falam de contrastes culturais e de organização da administração pública. Além disso, pelo fato de o SUS ser um sistema de saúde e não um “serviço nacional”, ou seja, uma megaorganização de âmbito nacional e administrado apenas pelo governo federal, uma carreira única e nacional não seria viável politicamente, nem factível em termos técnicos. A governança do SUS seria incompatível com essa concepção de megaorganização centralizada em Brasília.

São todos argumentos consistentes, que devem ser levados em conta em qualquer debate sobre uma Carreira de Estado do SUS. O problema, no entanto, é que essas constatações são vistas como uma espécie de “ponto de chegada”. E que, sendo assim, não haveria o que fazer, salvo tentar melhorar o que se tem hoje. Mas o que se tem hoje é a terceirização, crescente, avassaladora, dos serviços assistenciais do SUS.

Salvo gestores incompetentes ou preguiçosos, e políticos e empresários (e, em alguns casos, bandidos mesmo…), que ganham muito mantendo tudo como está, ninguém quer a terceirização. Muitos gestores querem se livrar do ônus de administrar pessoal. Políticos, com exceções que justificam a regra, querem usar as terceirizações para fazer negócios políticos. Empresários querem ganhar dinheiro, pondo a mão no orçamento público do SUS, já subfinanciado e claramente insuficiente.

Os trabalhadores, porém, não querem a terceirização, porque aspiram a ter algum controle sobre o próprio trabalho e, em certas situações, querem fazer cogestão da produção dos cuidados de saúde. Para a perspectiva da gestão participativa, condição sine qua non para administração adequada de serviços de saúde, a terceirização é um desastre. Do ponto de vista epidemiológico, há evidência científica de que, na saúde, terceirizações agregam problemas e dificuldades aos sistemas de saúde e não o contrário. A tal “maior eficiência” do setor privado é apenas ideologia. Nada há, no plano científico, que comprove isso. Trata-se do oposto.

Um desafio relevante, agregado à criação de uma Carreira-SUS, é o que rejeita a centralização da sua gestão no Ministério da Saúde, o qual precisa seguir com a importante função de coordenação nacional do sistema de saúde brasileiro. Sua gestão deve ser regional, com base em cada território em que há uma unidade de saúde do SUS. Os reformistas que criaram o SUS sempre propuseram que “em saúde, quanto mais próximas dos usuários, melhores e mais apropriadas são as decisões administrativas relacionadas com a realização de ações e serviços”.

Mas, e esse alerta vem desde os anos 1980, não basta municipalizar. Não há mágica nisso. Ninguém acredita, e hoje há evidências sobre isso, que com a municipalização, e com decisões tomadas no nível local “todos os nossos problemas desaparecerão”. O professor Paulo Eduardo Elias, da USP, uma das vozes mais críticas a esse respeito, e um dos primeiros a se opor à municipalização como mera “prefeiturização” da saúde, sempre alertou que “não basta municipalizar, é preciso democratizar e publicizar o SUS”, pois muitas lideranças locais poderiam ser tão ou mais nocivas à democracia do que alguns generais-ditadores.

Projeto institucional e região de saúde

Atualmente, salta aos olhos que se impõe à gestão do SUS, em todos os níveis, avançar na institucionalização das redes regionais de atenção à saúde, não reduzindo a descentralização do sistema à “prefeiturização”.

Por essa razão, para os que se opõem à privatização do SUS e seguem no campo que defende um SUS estatal e 100% público, a oposição à privatização é inseparável da luta por uma Carreira de Estado do SUS. Advogam que o cenário atual, em que desponta o mencionado conjunto de objeções à Carreira-SUS, deve ser visto como um “ponto de partida” e não o “fim da estrada”.

Propõem que, tendo em vista esse cenário, o SUS precisa urgentemente de um “projeto institucional” que enfrente e apresente soluções para esse conjunto de objeções, para superá-las e avançar, compatibilizando a criação da Carreira-SUS com o federalismo brasileiro. O pior cenário, para essas lideranças, é o atual. Não basta “tentar melhorar o que se tem”, pois no que se tem prevalecem a precarização laboral, a fragilidade dos vínculos empregatícios, a falta de perspectiva profissional e de identificação dos servidores do SUS com o próprio SUS.

Passadas quase quatro décadas desde que a 8ª Conferência Nacional de Saúde propôs a criação de uma Carreira de Estado para o SUS, enunciada como a necessidade do “estabelecimento urgente e imediato de plano de cargos e salários (…) com remuneração condigna e isonomia salarial entre as mesmas categoriais profissionais nos níveis federal, estadual e municipal”, não se deve mais aceitar postergações e adiamentos. É preciso reafirmar com todas as letras que, sem a Carreira-SUS, seguiremos andando em círculos na defesa do SUS, promovendo a precarização do trabalho em saúde, mantendo o amadorismo na gestão dos profissionais, e o SUS seguirá sendo engolido por organizações “sociais” “de saúde” até ser finalmente abocanhado completamente pelo capital e o rentismo.

Em artigo que publiquei em 2015 mencionei o constrangimento que é constatar que o próprio Ministério da Saúde não conta com o quadro de pessoal de que necessita para exercer sua função de comando do SUS em nível nacional. Vale-se de artifícios de gestão, via organismos supranacionais, para contratar. Surgem, assim, figuras administrativas exóticas no SUS, como “Consultor da UNESCO”, dentre outras esquisitices. Aliás, é suficientemente clara a esse respeito, a modalidade de contratação (uma “bolsa-formação”) utilizada para viabilizar o programa “Mais Médicos”, uma prioridade governamental e um dos mais bem-sucedidos, junto à opinião pública, “programas” de saúde do Brasil, conforme comprovam pesquisas com credibilidade.

Decerto que a urgência do provimento de médicos é compreensível, mas é um problema que o vínculo trabalhista se dê desse modo. Tivéssemos uma Carreira-SUS, e muitas dessas dificuldades seriam evitadas, do quadro de pessoal do ministério da Saúde ao “Mais Médicos”. Reitero que sem a Carreira-SUS, vinculada a uma forte instituição estatal de abrangência nacional, o SUS tende a evoluir para algo que nunca quisemos: transformar-se num sistema apenas de serviços de saúde, pobre, subfinanciado, para pobres. O Movimento da Reforma Sanitária sempre propôs o oposto disso: um sistema de saúde universal, integral, equitativo, com gestão participativa e programas de qualidade excelente.

Reduzir o SUS a serviços precários, produzidos por trabalhadores sem direitos e desprotegidos, equivale a transformá-lo em uma péssima caricatura de si mesmo. Quem está no SUS rejeita frontalmente esse destino e quer ter “orgulho de ser SUS”. Mas, lembremo-nos: a situação do SUS esteve muito pior, ainda recentemente. Nos governos Temer-Bolsonaro o que se dizia era que “agoniza”, ou que “já morreu”. “Só falta enterrar”, ironizavam outros. Mas o SUS, por sua base estadual e municipal, resistiu, sobreviveu e seguiu, como pôde, cuidando e protegendo nossa população e cumprindo a missão que a Constituição de 1988 lhe deu.

Criar uma carreira de Estado para o SUS é, portanto, a decisão mais relevante, em termos estratégicos que diz respeito, atualmente, ao nosso sistema universal de saúde. Não adiantará “mais recursos para a saúde” se esse dinheiro não for destinado aos trabalhadores da saúde, mas utilizado para viabilizar terceirizações e negócios obscuros envolvendo o SUS. Mas há pressa nessa decisão de importância estratégica. Para muitos trabalhadores da saúde, mais do que pressa há mesmo muita urgência, dadas as péssimas condições de trabalho, desvalorização profissional e aviltamento salarial a que estão expostos. Vale reiterar que sem trabalhadores da saúde não há SUS.

No entanto, conforme escrevi no site A Terra é Redonda, “sem uma carreira de Estado que os valorize, não há, propriamente, trabalhadores, mas um conjunto amorfo, difuso e confuso de semiprofissionais, amadores, biqueiros, horistas, uberistas, empreendedores, precários”. Elo frágil na cadeia de aplicação dos recursos do SUS, os trabalhadores pagam a conta. Não têm carreira, predominam baixos salários e condições de trabalho inadequadas, viceja a precarização. Não há, propriamente, trabalho decente em muitos serviços próprios e contratados pelo SUS.

Portanto, para esse projeto institucional, sob liderança do Ministério da Saúde, devem ser partícipes o CNS, o CONASS e o CONASEMS e, decerto, as representações profissionais da saúde, em âmbito nacional.

É preciso começar. E o começo, nesse caso, depende de uma decisão política que segue pendente na Esplanada dos Ministérios e na Praça dos Três Poderes.

A 4ª Conferência Nacional de Gestão do Trabalho e da Educação na Saúde tem neste momento a oportunidade de delinear uma Carreira-SUS e proporcionar elementos ao governo federal para que institua um Grupo de Trabalho, composto por especialistas no assunto, com a missão de elaborar um Projeto de Lei que o Executivo deve encaminhar ao Congresso Nacional.

A “Comissão para Discussão e Elaboração de Proposta de Carreira no Âmbito do Sistema Único de Saúde”, instituída pela Portaria GM/SM nº 3.100/2024, pode assumir essa função. Esse é o caminho para aprovar uma Lei da Carreira de Estado do SUS e, 26 anos após a edição da Norma Operacional Básica de Recursos Humanos para o SUS, finalmente “encaminhar projeto de lei de criação” da Carreira-SUS ao Poder Legislativo.

Pode-se questionar se há mesmo necessidade de uma lei para isso. Minha resposta tem sido sim, pois qualquer proposta séria, responsável, não demagógica e que leve em conta o federalismo brasileiro, implica a participação do Congresso Nacional. Não é viável por meio de um decreto presidencial ou portaria, ainda que interministerial, por exemplo, ou, pior ainda, por meio de acordos e pactuações em mesas de negociação de matriz sindical. Essas, todas elas, são estratégias que os trabalhadores do SUS não devem aceitar, pois são caminhos que levarão à derrota. Mais uma.

O presidente Lula vem reafirmando que não quer “fazer mais do mesmo” e que seu governo precisa “ir além”. Seremos, finalmente, capazes de sair da mesmice e ir além. Conseguiremos dar esse passo adiante na Carreira-SUS?

Ninguém espere facilidades. Basta ver a composição do Congresso Nacional. Mas sobre dificuldades, prefiro considerar o alerta na camiseta de uma mulher jovem que outro dia vi vendendo salgadinhos num ônibus: “Não ficará mais fácil. Você que fique forte”.

*Paulo Capel Narvai é professor titular sênior de Saúde Pública na USP. Autor, entre outros livros, de SUS: uma reforma revolucionária (Autêntica). [https://amzn.to/46jNCjR]


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