Caetano

Marco Butti (Jornal de Resenhas)
image_pdf

Por FLORA SÜSSEKIND*

Comentário sobre o disco de 1987 de Caetano Veloso

A audição do disco Caetano [Philips, 832 988-1, 1987], de Caetano Veloso sugere um desajuste entre letra e música – como se o texto às vezes não coubesse na canção (e a primeira faixa, “José”, nesse sentido, é exemplar) –, que se, a princípio, pode até parecer defeito, talvez seja um dos traços de maior interesse reiterados nessas novas canções.

Porque nelas o texto não rola. Alguma coisa trava, arranha. E quando rola é numa cantilena que foge conscientemente ao canto. É canto falado, como “Eu sou neguinha?”, ou quase discurso, como “Vamo comer”, canção da linhagem de “Podres poderes”, de Velô (1984), ou das mais antigas “É proibido proibir” ou “Eles”, incluída no seu primeiro disco solo, de 1967.

E é tão forte a presença desta trava na melodia que mesmo as canções de amor do disco parecem perseguir sua configuração dando a ela ora a forma de uma garganta ferida pela flecha do ciúme (em “O ciúme”), ora de cicatrizes que falam (em “Fera ferida”, de Roberto & Erasmo Carlos), ora de um simples “não sei o que dizer a essa mulher” (“Noite de hotel”).

Daí do canto se dizer que é grito áspero (que “lixa o céu seco”), papo de pelicano romântico. Algo que se nomeia sem menção à música, apenas à fala de todo dia (papo) ou à sua exasperação (grito). Como se aguda percepção da dificuldade do canto e de uma voz lírica que não lixe possíveis ajustes melódicos, combinada a uma sensação de fundo do poço (fim do túnel, beco sem saída, estar a zero), marcasse decisivamente não só a recepção, mas a própria estruturação e as composições do disco Caetano.

Mas essa tensão entre fala e canto não é exatamente novidade em se tratando de Caetano Veloso. Basta lembrar o clima de samba falado de Tropicália (1967) ou a justaposição de vozes, textos e silêncios que dominam Araçá azul (1972). Há diferenças, no entanto, entre tensão e trava que, acompanhada de canções discursivas como “Ele me deu um beijo na boca” (1982), “Língua”, “Podres poderes” (1984) ou “Vamo comer”, vem se tornando traço marcante na produção de Caetano nesta década. Não que não se indiquem possíveis ajustes.

“E eu era a saída, melodia meio-dia / dia dia dia”; ouve-se num dos trechos mais bonitos de “Eu sou neguinha?”. Mas o terreno da subjetividade, em Caetano, não foge à trava. Pelo contrário, parece multiplicá-la. Pois é como tensão (“só comigo e mal comigo”), dualidade (“tinjo-me romântico mas sou vadio computador”), movimento (“Eu vou”) que nele se desenha o “eu” das canções. Movimento que, nos últimos discos, tem enveredado com frequência por uma dicção épica. Lembre-se, nessa linha, a referência direta a Camões em “Língua”: “Gosto de sentir a minha língua roçar / A língua de Luís de Camões”. E é esse “eu épico” que discute as noções de pátria, nação e cidadania em “Língua”, “Vamo comer” e “Podres poderes”. E envereda por um canto falado, rap irado, uma poesia quase prosa, dirigidos a um “nós” meio abstrato, que, às vezes, singulariza num nome: João, Maria, Egito.

O desdobramento do eu lírico em voz épica não se opera, porém, sem deixar rastro. Seria mesmo difícil, diante das identidades problemáticas com que Caetano costuma trabalhar, imaginar o recurso a um sujeito coletivo homogêneo e coeso. Lembre-se, por exemplo, a separação entre “os homens” que “exercem seus podres poderes” e os “índios e padres e bichas, negros e mulheres e adolescentes” em “Podres poderes”. E, na verdade, é como se, dentro deste nós-que-discursa, a fragmentação do “eu” e as divisões no espaço social servissem de trava crítica nesse movimento de redimensionamento do sujeito das canções.

Por isso, ao invés de um tom afirmativo, são repetidas interrogações sobre o alcance e os limites do que se diz que pontuam esse canto falado. “O que quer / O que pode / Esta língua?” é a indagação que se repete a todo momento em “Língua”. Já em “Vamo comer” é a oposição entre um “se tiver” e um “se não tiver então” a marca de hesitação da letra. E, às vezes, é o próprio sujeito que, ensaiando uma autodefinição, interroga sempre sem resposta: “eu sou neguinha? / eu sou neguinha? / eu sou neguinha?”.

Não é de estranhar, então, que ao Camões-personagem de “Língua” suceda o Sá de Miranda das “Trovas à maneira antiga”, em especial do “Comigo me desavim, / sou posto em todo perigo, / não posso viver comigo / nem posso fugir de mim”, que no belo texto de “José” (referência ao personagem de Thomas Mann), reaparece resumido num único verso: “Só comigo e mal comigo”.

Uma voz épica que se deixa habitar por um solo social cheio de divisões e por subjetividades fragmentadas: é nesta justaposição que se constrói o “eu” das canções. Um eu que não “flui” em direção ao coletivo, mas se configura como tensão entre uma dimensão particular e um desejo épico. Uma vela ao Sá de Miranda das desavenças do eu, uma vela ao Camões de Os Lusíadas. Uma vela à “beleza pura” (“ah, Giulietta Masina / ah, vídeo de uma outra luz”), outra aos videoclipes & diluições de que se fala em “Noite de hotel”.

Em meio a um irônico convite que explicita para o ouvinte, sem complacência, o seu papel, menos de cúmplice ou de parcela do “nós” épico que aí se ensaia e mais de consumidor compulsivo. Daí o “Vamo comer / Vamo comer canção / Vamo comer / Vamo comer poesia / se tiver / se não tiver então / ô ô ô ô”. Convite que se faz acompanhar ainda da definição, à maneira de Godard, do caráter de mercadoria das próprias canções. O que não é pouco. Mas também é trava. E trava que se converte em inteligente princípio básico de composição.

*Flora Süssekind é professora de literatura brasileira na UniRio e pesquisadora da Casa de Rui Barbosa. Autora, entre outros livros, de Papéis colados (Editora UFRJ).

Publicado originalmente em Leia, em janeiro de 1988.

Veja todos artigos de

MAIS LIDOS NOS ÚLTIMOS 7 DIAS

1
O segundo choque global da China
06 Dec 2025 Por RENILDO SOUZA: Quando a fábrica do mundo também se torna seu laboratório mais avançado, uma nova hierarquia global começa a se desenhar, deixando nações inteiras diante de um futuro colonial repaginado
2
Energia nuclear brasileira
06 Dec 2025 Por ANA LUIZA ROCHA PORTO & FERNANDO MARTINI: Em um momento decisivo, a soberania energética e o destino nacional se encontram na encruzilhada da tecnologia nuclear
3
Simulacros de universidade
09 Dec 2025 Por ALIPIO DESOUSA FILHO: A falsa dicotomia que assola o ensino superior: de um lado, a transformação em empresa; de outro, a descolonização que vira culto à ignorância seletiva
4
A guerra da Ucrânia em seu epílogo
11 Dec 2025 Por RICARDO CAVALCANTI-SCHIEL: A arrogância ocidental, que acreditou poder derrotar a Rússia, esbarra agora na realidade geopolítica: a OTAN assiste ao colapso cumulativo da frente ucraniana
5
Asad Haider
08 Dec 2025 Por ALEXANDRE LINARES: A militância de Asad Haider estava no gesto que entrelaça a dor do corpo racializado com a análise implacável das estruturas
6
O filho de mil homens
26 Nov 2025 Por DANIEL BRAZIL: Considerações sobre o filme de Daniel Rezende, em exibição nos cinemas
7
Uma nova revista marxista
11 Dec 2025 Por MICHAE LÖWY: A “Inprecor” chega ao Brasil como herdeira da Quarta Internacional de Trotsky, trazendo uma voz marxista internacionalista em meio a um cenário de revistas acadêmicas
8
Raymond Williams & educação
10 Dec 2025 Por DÉBORA MAZZA: Comentário sobre o livro recém-lançado de Alexandro Henrique Paixão
9
Considerações sobre o marxismo ocidental
07 Dec 2025 Por RICARDO MUSSE: Breves considerações sobre o livro de Perry Anderson
10
O agente secreto
07 Dec 2025 Por LINDBERG CAMPOS: Considerações sobre o filme de Kleber Mendonça Filho, em exibição nos cinemas
11
Impactos sociais da pílula anticoncepcional
08 Dec 2025 Por FERNANDO NOGUEIRA DA COSTA: A pílula anticoncepcional não foi apenas um medicamento, mas a chave que redefiniu a demografia, a economia e o próprio lugar da mulher na sociedade brasileira
12
Insurreições negras no Brasil
08 Dec 2025 Por MÁRIO MAESTRI: Um pequeno clássico esquecido da historiografia marxista brasileira
13
As lágrimas amargas de Michelle Bolsonaro
07 Dec 2025 Por CAIO VASCONCELLOS: Estetização da política e melodrama: A performance política de Michelle como contraponto emocional e religioso ao estilo agressivo de Jair Bolsonaro
14
A armadilha da austeridade permanente
10 Dec 2025 Por PEDRO PAULO ZAHLUTH BASTOS: Enquanto o Brasil se debate nos limites do arcabouço fiscal, a rivalidade sino-americana abre uma janela histórica para a reindustrialização – que não poderemos atravessar sem reformar as amarras da austeridade
15
O empreendedorismo e a economia solidária – parte 2
08 Dec 2025 Por RENATO DAGNINO: Quando a lógica do empreendedorismo contamina a Economia Solidária, o projeto que prometia um futuro pós-capitalista pode estar reproduzindo os mesmos circuitos que deseja superar
Veja todos artigos de

PESQUISAR

Pesquisar

TEMAS

NOVAS PUBLICAÇÕES