Nem vertical nem horizontal: uma teoria da organização política

Soledad Sevilha, sem título, 1977
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Por FERNANDO NOGUEIRA DA COSTA*

Considerações sobre o livro de Rodrigo Nunes

No livro Nem vertical nem horizontal: uma teoria da organização política, Rodrigo Nunes afirma: “a melhor forma de fortalecer a atividade local não é focar na construção de organizações por si só, sem um propósito claro, mas partir de apostas estratégicas concretas e deixar o trabalho envolvido na sua execução ditar as necessidades organizacionais”.

Isso coloca a ênfase mais na estratégia em vez de ser nas estruturas organizacionais, para alcançar suas metas. Promove a fidelidade a uma base social, uma análise e um plano geral de ação sobre a identidade do grupo.

O importante é o trabalho ser feito, não quem o faz. A força de um núcleo organizador não reside no tamanho dos seus membros em si, mas naquilo capaz de ele realizar.

Uma meta estratégica é parcial não no sentido de se restringir a uma pequena escala ou a uma única questão local, mas no sentido de não saber como todas as mudanças acontecem. Em parte, trata-se de processamento de informações: há um limite de assuntos ser mantidos em foco a qualquer momento.

É preciso saber por onde começar. Desenvolver uma compreensão mais apurada de partes específicas do “quebra-cabeça” social tem também a ver com a capacidade de agir: dividir o objetivo sistêmico mais amplo em intervenções específicas possíveis de planejar, organizar e desenvolver.

O leitor atento percebe a ciência da complexidade apoiar a ciência política utilizada pela análise de Rodrigo Nunes. Ela é uma abordagem transdisciplinar capaz de explorar sistemas complexos e dinâmicos e oferecer insights valiosos para a ciência política.

A ciência da complexidade permite a construção de modelos de análise, considerando a interconexão e a interdependência de diferentes elementos em sistemas políticos. Esses modelos podem capturar dinâmicas não-lineares e emergentes, melhorando a compreensão de como mudanças em uma parte do sistema afetam o todo.

Também é útil na análise de redes sociais, identificando padrões de interconexão entre atores políticos, partidos, organizações e cidadãos. Isso ajuda a compreender melhor as relações de poder, alianças e influências, as quais configuram o cenário político de maneira dinâmica, isto é, variável ao longo do tempo.

Abordagens complexas podem ser aplicadas ao estudo do comportamento eleitoral, considerando as influências mutáveis e inter-relacionadas capazes de moldar as escolhas dos eleitores. Inclui fatores como opiniões públicas, redes sociais e influências culturais.

O método da ciência da complexidade auxilia a elaborar estratégias para a resolução de conflitos, considerando a natureza dinâmica e adaptativa dos sistemas sociais e políticos. Abordagens mais flexíveis são desenvolvidas para lidar com situações complexas.

A compreensão de sistemas políticos como sistemas complexos permite desenvolver políticas mais adaptáveis e resilientes. Isso é crucial em um mundo onde as mudanças rápidas e imprevisíveis são comuns.

A ciência da complexidade oferece insights sobre como melhorar a tomada de decisão política, considerando a incerteza, a variedade de agentes e os efeitos não-lineares possíveis de surgir de diferentes cursos de ação. Ao analisar movimentos sociais e ativismo político como sistemas complexos, entende-se como as ideias se espalham, como os grupos se formam e como as mudanças políticas surgem de maneira orgânica.

Integrar os princípios da ciência da complexidade na ciência política, como está nas entrelinhas do livro de Rodrigo Nunes enriquece a compreensão dos fenômenos políticos, proporcionando uma visão mais holística e dinâmica. Essa abordagem é útil em um mundo onde as mudanças rápidas e a interconexão global desempenha um papel significativo na dinâmica política.

Ele também examina as transformações pelas quais a ideia de revolução passou, desde o século XVIII, para trazer à tona três características: contingência, composição, complexidade. Dominam a forma como a concebemos hoje.

Uma teoria da revolução é necessária para uma teoria da organização? A grande desilusão do Socialismo Realmente Existente (SOREX) deixou claro: os países ditos socialistas não estiveram, de fato, em transição para o comunismo, conforme Karl Marx.

Para alguns marxistas dogmáticos, desconhecendo a teoria de evolução sistêmica, a revolução será imediata ou jamais acontecerá. Porém, “o comunismo não será alcançado em um piscar de olhos”, logo, exige uma transição plena de toda a sociedade.

No seu sentido geral de passagem entre estados de coisas, “transição” é um conceito mais amplo diante de “revolução”. Portanto, a transição não deve ser uma parte da revolução da qual se parte, mas, ao contrário, uma revolução talvez atue na transição.

Uma mudança sistêmica exige uma combinação de lógicas reformistas, de construção alternativa intersticial e de revolucionárias ou disruptivas, ou seja, é um processo de “transição”. Diferentemente da tradição marxista, ela é não linear, desigual e conflituosa, em vez de ser contínua, homogênea e gerida a partir de cima por um único partido.

O reformismo gradualista modifica o sistema capitalista mais apropriadamente, em lugar de enfrentar uma reação negativa, provocada por um choque revolucionário. As iniciativas intersticiais produzem uma alternativa funcional aos circuitos existentes de produção e reprodução. Uma onda de ruptura institui formas sociais totalmente novas em vez de uma ruptura da vida cotidiana se tornar insuportável.

A alternativa, proposta por Nunes, é conceber um processo no qual a destruição, a construção e o reaproveitamento aconteçam em paralelo. A ruptura, bem como a mediação, ocorram em diferentes escalas ao mesmo tempo.

Uma “sociedade transitória” é entendida como uma formação social instituída na sequência de um grande evento perturbador para mediar entre a formação social a ser destruída e aquela a ser criada pela combinação de características de ambas.

Se o desafio da transição é essencialmente o de gerir a velocidade da transformação – não tão lenta sem escapar da mera reprodução das formas sociais existentes, nem tão rápida a ponto de a reprodução social ser completamente destruída – a questão chave é coordenar múltiplas temporalidades de ritmos de mudança em velocidades variáveis. Exige um esforço constante e deliberado para jogar continuidades e descontinuidades em apoio a (para reforçar) e contra (para corrigir o curso de) o outro.

Portanto, Rodrigo Nunes propõe a noção de “diversidade de estratégias”. É difícil imaginar, a partir da situação atual, qualquer tática ou estratégia única poder, por si só, evitar alterações climáticas catastróficas e criar um sistema global igualitário no processo.

Em vez de multiplicar incessantemente a ação em inúmeras decisões individualizadas e iniciativas apenas locais, a aposta mais razoável parece ser maximizar o impacto estrutural das limitadas capacidades de ação. Buscar a combinação de ação direta, intervenção estatal e construção de infraestruturas autônomas.

Já há algum tempo a esquerda reduziu artificialmente as suas próprias opções, insistindo em tratar novos problemas empíricos como existissem a priori e rejeitando impensadamente possibilidades não com base em avaliações situadas do possível de funcionar, mas por razões meramente identitárias. Rodrigo Nunes sugere este ser um sintoma melancólico, associado às derrotas do século XX, as quais dividiu a esquerda em dois amplos campos incapazes de aprender alguma coisa com o fracasso, exceto a confirmação interminável das falhas inerentes à abordagem do outro campo.

Em última análise, não importa se algum dia conseguiremos realmente acabar com essa melancolia antirrevolucionária. Bastará termos feito o suficiente para continuar com o trabalho de investir recursos finitos para dar aos projetos importantes para nós a melhor oportunidade possível de vencer.

Em síntese de minha leitura do citado livro, organizar politicamente movimentos sociais com manifestações de certas ideias requer estratégia, comunicação eficaz e engajamento da comunidade. Exige: (i) estabelecer metas e objetivos específicos para o movimento; (ii) ter clareza sobre o que se quer alcançar para orientar ações e mobilizar o apoio; (iii) desenvolver uma mensagem clara e acessível para transmitir os objetivos do movimento; (iv) aproveitar as redes sociais e outras plataformas online para mobilizar apoiadores, compartilhar informações e criar conscientização sobre as questões em pauta; (v) colaborar com organizações afins, grupos comunitários e outros movimentos sociais; (vi) engajar a comunidade através de reuniões, fóruns, workshops e outros eventos; (vii) ter líderes capacitados pode fortalecer a capacidade do movimento de articular suas ideias de maneira eficaz; (viii) o movimento deve ser inclusivo e representativo da diversidade da comunidade para fortalecer sua legitimidade e sua representatividade; (ix) planejar manifestações e protestos pacíficos porque a presença física em eventos públicos atrai a atenção da mídia e da opinião pública; (x) dialogar com partes interessadas, incluindo representantes governamentais.

*Fernando Nogueira da Costa é professor titular do Instituto de Economia da Unicamp. Autor, entre outros livros, de Brasil dos bancos (EDUSP).

Referência


Rodrigo Nunes. Nem vertical nem horizontal: uma teoria da organização política. Tradução: Raquel Azevedo. São Paulo, Ubu, 2023, 384 págs. [https://amzn.to/3Uupo3R]


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