Israel: que futuro?

Imagem: Isaac Weatherly
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Por CARLOS HENRIQUE VIANNA*

Não há dúvida que Israel, seus cidadãos e seus governos, consideram-se um país especial no concerto nas nações. Um Estado com mais direitos que os demais

“A meus amigos judeus, que sofrem com tanto sofrimento aqui evocado”

“No judaísmo, o “escolhimento” é a crença de que os judeus, por meio da descendência dos antigos israelitas, são o povo escolhido, ou seja, escolhidos para estar em aliança com Deus. A ideia de que os israelitas foram escolhidos por Deus é encontrada mais diretamente no Livro de Deuteronômio onde é aplicada a Israel no Monte Sinai, sob a condição de sua aceitação da aliança mosaica entre eles e o Senhor Deus”.

“As três maiores denominações judaicas – Judaísmo ortodoxo, Judaísmo conservador e Judaísmo reformista – mantêm a crença de que os judeus foram escolhidos por Deus para um propósito. Às vezes, essa escolha é vista como incumbindo o povo judeu de uma missão específica – ser uma luz para as nações e exemplificar a aliança com Deus, conforme descrito na Torá. Isso é destacado pela primeira vez em Gênesis 12:2.” (fonte: Wikipédia)

“O que vivemos não é um choque de civilizações, é um choque entre os fanáticos e o resto de nós.” (Amos Oz)

Um país especial

Não há dúvida que Israel, seus cidadãos e seus governos, consideram-se um país especial no concerto nas nações. Um Estado com mais direitos que os demais. Um Estado ao qual se deve tolerar o não cumprimento de resoluções da ONU, o desrespeito às fronteiras e à soberania de seus vizinhos, próximos ou mesmo distantes, a realização de assassinatos seletivos de seus inimigos em qualquer parte do mundo pelo famoso Mossad, e a auto-qualificação de Estado Judeu, ou seja, para seus cidadãos judeus, com a consequente discriminação legal em alguns aspectos de natureza civil ou política de seus cidadãos de origem palestina ou outra.

Um Estado que pode responder com força excessiva, com total desproporcionalidade, causando um número ilimitado de “danos colaterais”, às ações militares dos movimentos de resistência contra Israel. Um Estado que ocupa e domina a ferro e fogo a Cisjordânia, desde sua vitória na Guerra dos Seis dias em1967, anexando progressiva e de forma contínua o território reconhecido internacionalmente como pertencente aos palestinos e formalmente administrado pela Autoridade Palestina.

Um Estado, e antes de sua existência, o movimento sionista de afirmação da presença de judeus na Palestina, então protetorado inglês, que não hesitou em lutar como movimento guerrilheiro quer contra os residentes palestinos, os filisteus dos livros sagrados, quer contra a dominação inglesa. Nesta história da primeira metade do século XX forjou o Haganah (Defesa em hebraico), que “foi a principal organização paramilitar da população judaica no Mandato inglês da Palestina entre 1920 e 1948, quando se tornou o núcleo das Forças de Defesa de Israel.”

O Haganah e outros grupos mais radicais (Irgun, Lehi) realizaram, principalmente a partir de 1946, numerosas ações que podem ser qualificadas como “terroristas”, quer contra a população civil árabe, quer contra as forças militares inglesas, sendo a ação mais mediática o atentado do Irgun liderado por Menachem Begin contra o Hotel Rei David em 1946, com 91 mortos. “O atentado ao Hotel Semiramis, em abril de 1948, executado pelo Haganah (ou, de acordo com algumas fontes, Irgun) resultou na morte de 24 a 26 pessoas. O massacre de Deir Yassin realizado pelo Irgun e Lehi, matou entre 107 e 120 moradores palestinianos.” (fonte Wikipedia)

Curiosamente, Menachem Beguin foi Prêmio Nobel da Paz, juntamente com o presidente Sadat do Egito, por terem assinado os Acordos de Camp David em 1978 As voltas qiue o mundo dá…

Foram muitas as ações de intimidação violenta para expulsar os palestinos de suas vilas e propriedades, principalmente em 1948, que culminaram na Nakba (Catástrofe), quando aproximadamente 700 mil palestinianos foram expulsos para os países fronteiriços, muitos dos quais refugiados até hoje. E forjando assim a “questão palestina”, no pós 1948.

Vejo algumas razões para Israel se considerar tão especial, merecedor de uma aura de impunidade, no concerto das nações.Os judeus foram sempre um povo perseguido, sem pátria desde a derrota para os romanos. No século XX, o Holocausto organizado e executado pelo estado nazista, culminou de uma maneira impensável, esta perseguição aos judeus. O sentimento de muitos de que não só os alemães como toda a Europa contraíram uma dívida histórica para com os judeus, majoritariamente europeus até então, justificou-se. E este sentimento de dívida e vergonha estendeu-se a muitos cidadãos e Estados europeus e também aos Estados Unidos, onde muitos judeus se refugiaram e passaram a ser um poderoso grupo de interesse, como forte influência na política e na economia.

A justificação da impunidade das ações dos governos de Israel se refletem nestas palavras: “A identidade (judaicidade), porém tem dois tempos. Há sempre o risco de ela paulatinamente se tornar um dispositivo de imunização, principalmente quando gerida por um Estado que se coloca como guardião do trauma coletivo. Pois neste caso, tudo se passa como se o Estado começasse a dizer “Fomos violentados uma vez, ninguém velou por nós, temos, pois, todo o direito de utilizar o que for necessário para garantir nossa inviolabilidade e segurança contra todos os que apareçam colocando novamente em risco nossa integridade”.[i]

No entanto o direito de defesa dos Estados não embute um direito ao massacre continuado. Cada vida humana vale uma vida humana. Quarenta mil não é o mesmo que mil.

Não menos importante é a influência da ortodoxia religiosa em Israel na justificação desta exceção. Ao contrário das outras religiões do Livro, o Judaísmo nunca se propôs a converter os goyim, os gentios, os não judeus. É judeu filho de mãe ou que tem ascendente mulher judia. Isto porque, do ponto de vista ortodoxo, os judeus são o povo escolhido e, portanto, devem preservar a sua pureza étnica ou religiosa, através da linhagem materna e respeitando as tradições seculares. Israel é uma democracia para os judeus, uma etnocracia segundo alguns intelectuais e tem um pé na teocracia, tendo em conta a existência de partidos religiosos que almejam e exercem o poder. Rabinos, sinagogas e estudantes da Torah têm privilégios civis que outros cidadãos não têm.

Como disse Amin Maalouf em O naufrágio das civilizações: “Por mais do que uma vez, terei a oportunidade de evocar o mito perverso da homogeneidade, seja religiosa, étnica, linguística, racial ou outra, pelo qual se deixaram levar tantas sociedades humanas”. Israel não é uma teocracia como o Irã, mas também não é uma democracia laica e republicana.

A nível internacional, Israel conta desde sempre com o apoio econômico, militar, político e diplomático dos Estados Unidos e também de vários países europeus. Dos Estados Unidos tem crédito ilimitado, ajuda militar privilegiada, em parte a fundo perdido, apoio financeiro direto de particulares em todo o mundo e praticamente uma cadeira no Conselho de Segurança da ONU, assumida pelos Estados Unidos e que veta qualquer resolução contra Israel no dito Conselho.

Quando falamos nas moderníssimas e populares IDF (Israel Defense Forces) estamos ao mesmo tempo falando nas forças de retaguarda norte-americanas, nos seus porta-aviões e sistemas de defesa aérea presentes no terreno, terra, mar e ar. Quem desafia Israel, como o Irã, está desafiando uma aliança poderosíssima e operacional. Isto sem falar dos serviços secretos, da “Intel” como gostam de mencionar, não só dos dois países mas também de vários outros países ocidentais que colaboram com Israel. Os assassinatos seletivos de dirigentes do Hamas e Hezbollah são a evidência disto.

Israel forjou um exército já antes de 1948 e tornou-se um Estado em simbiose com as suas forças armadas. Todos os cidadãos, à exceção dos de origem palestina ou não judia, são parte das IDF dos 18 aos 50 anos. Israel venceu as guerras iniciadas por seus vizinhos em 1948, 1967 e 1973. Fustigou e continua fustigando com êxito os braços armados e as direções políticas dos movimentos de resistência, ditos terroristas, desde os anos 1920.

Atualmente, desde o 7 de outubro, passou a uma fase de guerra de aniquilação contra estes movimentos, o que foi também tentado sem êxito no Líbano em 1982 contra a Al-Fatah. Sem falar do recrudecer nas hostilidades mútuas com o Irã, uma “briga de cachorro grande”, mas desejada pelo menos por parte dos dirigentes israelistas, um risco enorme para a região e para o mundo.

Israel e a maioria de seus cidadãos têm diversas razões, quer históricas, quer religiosas, quer até de empatia ou falta desta, para se sentirem superiores e detentores de mais direitos, em relação aos palestinianos. Não só a extrema direita política e religiosa, mas uma boa parte dos cidadãos de Israel gostariam que os palestinos desaparecessem da Cisjordânia e de Gaza, emigrassem, fossem expulsos ou morressem. E já vão mais de 42.000 neste particular, desde o 7 de outubro, numa matança quotidiana, sistemática, de diversas formas, inclusive por fome e falta de cuidados médicos e de higiene, por simples falta de água potável.

Os mortos e feridos são uma minoria de ativistas da Hamas e uma maioria de civis indefesos, os cinicamente chamados “danos colaterais”. A história de Israel é uma história de ocupação progressiva das terras não adscritas ao Estado de Israel pela ONU em novembro de 1947. É só ver a evolução dos mapas. Do mar a Galileia, de Gaza aos montes Golã, estes sírios desde tempos imemoriais. Uma Cisjordânia ocupada por colonatos e estrada militares. Os países árabes e autoridades palestinas desprezaram a possibilidade do Estado palestino ter nascido em 1948. Cometeram um grave erro. Tentaram a sorte em guerras que e foram humilhados pela superioridade israelita.

E assim a ideia dos dois Estados vem morrendo há muito tempo. Se algumas lideranças israelitas a toleraram ou a aceitaram em tempos (como Isaac Rabin, assassinado por um terrorista judeu de extrema direita), já há muito ela está descartada pelas lideranças e mesmo pela maioria dos cidadãos judeus de Israel. As grandes e médias potências reiteram o apoio a esta solução, de resto existente desde o fim da Segunda Guerra Mundial, mas o fazem sem convicção, com muita hipocrisia e sem dar qualquer passo efetivo para concretizá-la, como por exemplo promover o corte de relações diplomáticas com Israel.

Assim Amos Oz se pronunciou sobre a solução dos dois Estados em 2017: “O que posso dizer é que não vejo alternativa melhor do que a solução de dois Estados, simplesmente porque árabes palestinos e judeus israelenses não vão a lugar algum, não têm para onde ir. Esse conflito não vai ter final feliz. Ou vai acabar com um doloroso acordo ou com um banho de sangue eterno. A solução de dois Estados envolve uma série de concessões dolorosas para israelenses e palestinos. Os dois lados vão ter que abdicar de um pouco de seu passado e de suas aspirações”.

A hipótese mais pessimista deste pacifista nascido em Jerusalém, o mais difundido escritor e intelectual israelita, parece ter prevalecido.

O 7 de outubro

Os acontecimentos do 7 de outubro foram a justificativa que faltava para Netanyahu e Israel passar a uma nova etapa na construção do grande sonho sionista, o domínio do Estado de Israel sobre o território bíblico dos reinos de Judá e Israel. Muito ainda há de se falar sobre o que se passou exatamente neste dia, que começou com uma rápida vitória militar de um exército guerrilheiro sobre a defesa fronteiriça israelita, tida como inexpugnável. Neste confronto inicial terão morrido ou sido feitos prisioneiros centenas de militares israelitas e um número não conhecido dos atacantes.

Ao que se seguiu uma operação de ocupação violenta de alguns kibutzim próximos e de sequestro de civis israelitas, o que foi facilitado pela concentração de jovens num festival musical a escassos quilômetros da fronteira. O sequestro de civis e militares israelitas foi o segundo objetivo prioritário do Hamas, para ter moeda de troca na libertação negociada de palestinianos nas prisões israelitas, 9500 recenseados no dia 17 de abril de 2024. O Hamas usou de enorme violência na ocupação dos kibutzim, alguns dos quais ripostaram ao ataque, com ou sem êxito.

Os kibutzim têm o seu esquema de segurança com várias pessoas armadas, treinadas para a hipótese de ataque inimigo. As IDF não acorreram a tempo de defender vários kibutzim e os jovens no festival, uma reclamação generalizada entre os sobreviventes. O que ficou nas versões oficiais e jornalísticas do 7 de outubro centrou-se na violência indiscriminada contra os cidadãos israelitas, em particular sobre as mulheres, algumas violadas segundo denunciaram. Os atacantes receberam o carimbo de “bárbaros” e “não humanos”.

Ainda está por vir a público o inquérito militar sobre estes acontecimentos, mas o julgamento moral e o apoio político do mundo ocidental a Israel foi rápido, acrítico e de respaldo ao discurso inflamado de seu governo e forças armadas. A justificar a enorme operação de vingança coletiva que se seguiu.

Várias dúvidas persistem sobre o 7 de outubro. Por que as IDF desprezaram os informes preocupantes quanto à preparação aberta e visível do Hamas para uma possível invasão ou ação mais musculada contra os militares fronteiriços? Como pôde o Hamas ser tão eficaz e invadir com tanta facilidade o território de Israel? Terá havido alguma facilitismo por parte das IDF e de Netanyahu para promover um acidente fronteiriço que viesse a ser uma desculpa para a invasão de Gaza? Por que os militares demoraram tanto em socorrer os kibutzim e os jovens no festival? Quantos civis israelitas morreram , excluindo-se desta conta os militares e para-militares? Houve “fogo amigo” na fuga desordenada dos “festivaleiros”, vindo de helicópteros que buscavam atingir os invasores, como foi noticiado na imprensa israelita?

A operação militar de Israel em Gaza, que se seguiu ao 7 de outubro, de uma violência extrema, e que continua, parece ser bem mais que uma ação de vingança contra o conjunto dos palestinianos de Gaza. Passado um ano, fica evidente a estratégia de Israel de tornar quase impossível a sobrevivência dos mesmos e promover uma limpeza étnica para além da fronteira com o Egito, o que este refuta, naturalmente. O governo de Israel já deixou claro que Gaza será outra coisa muito diferente, ocupada militarmente em permanência e ainda muito mais cercada que antes, se é que isto é possível.

“Coabitar não é uma escolha mas uma condição da vida política. Os eventos posteriores ao 7 de outubro indicam que Israel quer decidir qual população não deve lhe fazer fronteira, e já está em curso um movimento que reivindica a remoção a população de Gaza (…) Isso nada tem a ver com defesa, mas com despossessão.”[ii]

A proporção de cidadãos israelitas mortos para palestinianos mortos, sejam estes uma minoria de soldados do Hamas, sejam uma maioria de civis, mulheres e crianças principalmente, é de 1 para 40. De feridos será maior. Isto só desde o 7 de outubro, mas se contarmos desde 1948, desde a Nakba, os números serão mais assustadores.

O mais puro ódio perpassa quotidiamente os corações e mentes de judeus e palestinianos, dentro e fora de Israel.A lei do mais forte predomina na história sangrenta destes 76 anos, desde 1948. Sequer vige a Lei de Talião, que exige reações proporcionais a uma atitude violenta. A utopia de uma Palestina/Israel laica e democrática, com judeus e palestinianos a conviver num só espaço, democraticamente, esbarra em tanto sofrimento, em tanto desprezo, em tanta violência acumuladas. Bem como a resolução de 1947 das Nações Unidas, de criação de dois estados, já apontada antes com pouca convicção pelos ingleses, foi enterrada por muitas pás, israelitas e árabes, palestinianos, sírios, libaneses, egípcios e ocidentais…

Uma palavra sobre o mundo árabe

A questão palestina não é uma “pedra no sapato” somente para Israel. Para muitos países árabes, os palestinianos e suas lideranças são, no mínimo, um incômodo. Em setembro de 1970, o rei Hussein da Jordânia promoveu um massacre de 3000 refugiados palestinianos, muitos ligados à organização Al-Fatah de Yasser Arafat. Foi o Setembro Negro, que obrigou os palestinianos lá refugiados depois da Guerra dos 6 Dias de 1967 a fugirem para o Líbano. De registrar que os jordanos são os mais próximos etnicamente dos palestinianos. Jordânia e Israel têm relações diplomáticas, econômicas e até militares. É o país árabe mais próximo de Israel, juntamente com o Egito.

As massas árabes são ativas no apoio à causa palestina, mas muitos países preferem a convivência e o restabelecimento das relações com Israel, como o Bahrein e os Emiratos Árabes Unidos, que assinaram em setembro de 2020 os Acordos de Abrahão, agora congelados. O Egito tem relações diplomáticas com Israel há muitos anos, patrocinado com generosa ajuda militar dos Estados Unidos. A derrota militar do Egito de Nasser em 1967 calou fundo nas lideranças e em especial nas suas Forças Armadas. A Arábia Saudita também caminhava no mesmo sentido dos países do Golfo, mas o 7 de outubro congelou esta ofensiva diplomática israelita.

A verdade é que os países árabes são profundamente desunidos e são os não árabes de religião islamista, como a Turquia e o Irã, a terem uma atitude mais dura diplomaticamente (Turquia e Indonésia, esta timidamente) ou mesmo beligerante (Irã). A enfraquecida Síria engole calada as múltiplas violações violentas de seu espaço aéreo por Israel para bombardeios específicos, até em Damasco. O Líbano, pobre Líbano, onde ainda lá vivem muitos refugiados palestinianos e divide o poder com o Hezbollah, amarga duramente ser vizinho tão próximo do carrasco Israel, que viola suas fronteiras a seu bel prazer.

Em 1948, na sequência da declaração de independência de Israel, Egito, Síria, Iraque, Líbano e a então Transjordânia invadiram o recém-criado Estado de Israel, por não concordarem com a partição decretada pelas Nações Unidas. Foram derrotados e humilhados. Israel saiu vitorioso e anexou, no âmbito da Declaração de Armistício em 1949, algum território anteriormente adscrito aos palestinianos na partição estabelecida pela Resolução 181 da ONU de novembro de 1947. A ideia de um “Estado Unido da Palestina”, com judeus e árabes num só país, defendida pelos países invasores, acabou aí.

A história recente demonstrou que os palestinos de Gaza e da Cisjordânia, bem como os refugiados em países vizinhos podem contar com alguma ajuda humanitária e diplomática dos países árabes, mas estes temem Israel e prefeririam algum tipo de relacionamento com este vizinho não desejado, mas tão forte. Os braços armados do Hezbollah e do Hamas, já bastante debilitados, contam com o apoio muito ativo do Irão. São qualificados despectivamente pela imprensa ocidental de “proxys”, ou seja, marionetes.

A guerra regional

O outro objetivo estratégico do Israel de Netanyahu é enfraquecer ou mesmo derrotar militarmente o Irão, que apoia os braços armados do Hezbollah, Hamas e outros menores na sua luta anti-Israel. Para atingir este objetivo também o 7 de outubro e o que se seguiu possibilitaram a evolução das tensões e atos bélicos para um conflito regional em larga escala, ainda contido, mas que apontam o risco de uma guerra entre o Irão e Israel/Estados Unidos e outras potências ocidentais, de imprevisíveis consequências. É bom lembrar que a França também apoia ativamente Israel na defesa aérea. A OTAN chegará a envolver-se neste vespeiro?

Até que ponto a escalada militar prosseguirá com a ocupação do sul do Líbano, com o bombardeamento sistemático de Beirute e outros alvos, não só no Líbano, não sabemos. Mas está claro que Israel prosseguirá sua ofensiva, sem que ela neutralize o Hezbollah. Isto porque este partido político, movimento social e religioso e seu braço armado, está solidamente implantado na sociedade libanesa como representante dos xiitas. Mas estes não são uma comunidade isolada, convivem com a manta de retalhos étnica e religiosa libanesa. Tem representação no Estado libanês, ministros, deputados. São libaneses, queira Israel ou não. Mesmo sofrendo duros golpes, os disparos de mísseis do Hezbollah sobre Israel provavelmente continuarão nas próximas semanas, meses, anos.

Da mesma maneira o Hamas ressurgirá, pois é o movimento político-assistencial-militar mais popular entre os palestinianos. Os sobreviventes em Gaza, que viram suas famílias e vizinhos serem mortos e feridos, que viram a destruição de suas moradias, hospitais e escolas, que vivem num território com uma qualidade de vida das piores senão a pior em todo o mundo, continuarão a gerar militantes dispostos a tudo. E o problema do “terrorismo” continuará para Israel. E sua população continuará a viver sob tensão. Não há solução militar para a “guerra de Israel contra o terrorismo”.

A cobertura dos meios de comunicação ocidentais

Creio que muitos concordarão que a cobertura do conflitos no Médio Oriente, por parte da mídia ocidental, é de um parcialismo revoltante, em especial a seguir ao 7 de outubro. Em particular por parte de “comentadores convidados”, ex-militares com pretensões de estrategistas, professores universitários arrogantes, em geral a repetir de várias formas a narrativa muito bem trabalhada pela mídia pró-Israel. Falo pela minha experiência em Portugal, onde vivo, mas desconfio que um pouco por todo o Ocidente alargado, o caso é o mesmo.

Apesar dos manuais de redação indicarem a necessidade de dar a palavra às várias partes em conflito, tem sido raro o espaço dado a notícias e comentários provenientes da Al-Jazeera, por exemplo. A proporção entre a reprodução das mensagens governamentais israelitas e as declarações de seus oponentes, quer da Hamas, quer da Autoridade Palestiniana e de outros países árabes, é, perdoem a redundância, completamente desproporcional. Como se sabe, a guerra também é de informação e neste sentido, o governo de Israel ganha de goleada de seus inimigos.

É tamanha a carga informativa da narrativa pró Israel que vai-se criando na opinião pública a crença nesta versão da realidade. Só quando o número de mortos e a extensão da destruição em Gaza atingiu proporções enormes é que se começou a ver entrevistas com os palestinianos residentes, com os médicos dos hospitais destruídos, com os funcionários da ONU não vitimados pelo fogo das IDF.

O que se viu e se vê na cobertura da invasão e destruição de Gaza por parte de Israel, com escassa resistência por parte das Brigadas Al-Khassam, merece um estudo aprofundado por jornalistas isentos e até pela academia.

Israel: que futuro

Neste século XXI as extremas direitas, em suas várias matizes, cresceram enormemente e continuam a marcar a agenda política de tantos países. No Ocidente e no Oriente, no Sul Global e no Norte poderoso. E com elas, o ódio aos diferentes, sejam eles imigrantes nos países ricos, refugiados em todos os quadrantes, muçulmanos na Índia, minorias em tantos outros. O antissemitismo, a islamofobia, o racismo e outras fobias várias marcam a atualidade. O populismo e o autoritarismo do Estado sobre os cidadãos generalizaram-se, e Israel não é exceção.

A quem interessa a manutenção das tensões bélicas mundiais, entre as quais a situação do Médio Oriente está no topo há muitos decênios? Estados Unidos, (38,8%), Rússia e França somam 67% das exportações de armas em todo o mundo. Um mundo mais pacífico interessa a estas empresas, altamente representadas nos respectivos governos?

Israel tem o direito de existir, mas as bases de sua existência basearam-se em grande parte no desrespeito aos direitos inalienáveis dos palestinianos, que lá viviam há tantos séculos. Há um pecado original, cujas consequências foram negativamente potencializadas e atualmente estão ao rubro, em matéria de impossibilidade de convivência. Mas pode um país, uma nação, um Estado sobreviver e evoluir cercado de inimigos ou pelo menos de países não amigos. Tendo que gerir autoritariamente territórios ocupados com populações hostis? Um Estado que se permite declarar como “persona non grata” o secretário-geral da ONU? Por quanto tempo e a que preço para sua população, para sua economia?

Desejo um futuro de paz para Israel, um país extraordinário sob vários aspectos. Mas que necessita de, no imediato, se livrar de Netanyahu e de sua governação da extrema-direita belicista. E mudar radicalmente de atitude em relação aos palestinianos e a seus vizinhos e com quase todo o mundo. De abdicar da arrogância e da estratégia de assentar sua existência num Estado militarizado e numa guerra mais ou menos permanente contra seus “inimigos”.

Infelizmente esta mudança é pouco provável a curto e médio prazo, a não ser que na sequência de tragédias advindas do recrudescer do conflito com o Irã. Esperemos que sejam evitadas.[iii]

*Carlos Henrique Vianna é engenheiro. Foi diretor da Casa do Brasil em Lisboa. É autor, entre outros livros, de Uma questão de justiça.

Notas


[i] In “Considerações sobre o livro de Bentzi Laor e Peter Pal Pelbart”, artigo de Vladimir Safatle na Folha de S. Paulo, setembro 2024.

[ii] In “O judeu pós-judeu” de Bentzi Laor e Peter Pal Pelbart, citado por Vladimir Saflate em artigo na Folha de S. Paulo.

[iii] Antes que algum leitor mais exaltado me condene pelo tom crítico deste artigo para com Israel, especialmente com seus dirigentes, devo dizer o seguinte: Tenho enorme admiração pelos judeus com tantos nomes admiráveis que marcaram a História da Humanidade. Serão um povo ou etnia ou pessoas que compartilham uma judaicidade, como queiram, amantes e cultivadores do Conhecimento, com pensadores, cientistas e intelectuais da craveira de Marx, Freud, Eistein, Spinoza, Walter Benjamin, Hannah Arendt e o contemporâneo Amos Oz. Uma lista interminável. Eu estudei, nos anos 1960, no Colégio de Aplicação da UFRJ, onde talvez uns 30% dos alunos eram judeus. A excelência do ensino do CAp atraia a opção dos pais pelo melhor para seus filhos. Minha mulher, meus filhos e netas têm o nome Bibas, vindo do bisavô emigrado do Marrocos para ser rabino em Belém do Pará em finais do séc. XIX. Infelizmente o nome de família Bibas ficou conhecido após o 7 de outubro, pois um bebê de meses, Kfir Bibas, foi sequestrado de um kibutz junto com seu irmão e sua mãe. Segundo comunicado das brigadas Al-Khassam, braço armado do Hamas, terão morrido semanas depois, no início de novembro, sob escombros, na sequência de um bombardeamento do IDF. Pode ser verdade, pode não ser. Uma tragédia. Os Bibas são de origem ibérica, emigrados para o Marrocos e o Egito , que os recebeu, após a expulsão de judeus e árabes da Espanha e Portugal. Há Bibas em diversos países e até, ainda, no Marrocos.


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