Identidade

Imagem: Estúdio 42 North
Whatsapp
Facebook
Twitter
Instagram
Telegram

Por RENATO ORTIZ*

Alguém sem sombra teria se livrado das tentações obscuras, a nódoa que nos corrompe, não seria mais necessário usar a máscara que nos distorce diante do olhar complacente dos outros, dissimulando aquilo que realmente somos

A primeira vez que se deu conta disso foi quando o sol estava a pino; parou imóvel no centro do jardim, sem mexer um músculo, e ao olhar para o chão, ficou extasiado em perceber que não tinha sombra. Foi tomado por um sentimento de júbilo e prazer, uma sensação cálida de completude o invadiu. Nunca havia ressentido algo assim. O sol encontrava-se no zênite e formava uma linha reta perpendicular à sua cabeça, a luz projetada em seu corpo opaco era absorvida pela grama a seus pés.

Deixou os braços colados ao corpo e girou as pernas, para um lado e para o outro, o movimento em nada alterava seu espanto, a sombra permanecia oculta. Depois disso sua vida mudou, todos os dias no mesmo horário caminhava até o jardim à espera da luz, pensava ter descoberto o alento para sua vida banal. Entretanto, de nada adiantaram seus esforços inúteis, as várias tentativas que vez de se alinhar com os raios solares foram frustrantes; a órbita do astro tinha ligeiramente se inclinado, o suficiente, porém, para iluminar no solo a penumbra de sua existência.

O zênite almejado era um ponto fugidio na esfera celeste. Um mar profundo de melancolia dele se apossou, nada preenchia o vazio de seu ser alquebrado. Passaram-se meses de tristeza e desolação sem que pudesse encontrar a si mesmo. Foi quando se deparou com algo surpreendente ao acender o abajur da mesa de trabalho. Fazia tempo queria ordenar os pedaços de papel espalhados, os livros desarrumados empilhados uns sobre os outros, e aquele dicionário imenso, incômodo, que tinha ganhado de presente e nunca havia consultado.

Ao olhar a sombra de sua mão projetada na parede percebeu que estava mutilada. Refez o gesto várias vezes; ao colocá-la diante da fonte de luz a sombra aparecia nítida, escura, mas o contorno rabiscado na tela revelava a ausência de um dos dedos. Faltava o indicador. Surpreso e contente permaneceu ali por horas a fio.

Começou então a frequentar o escritório com assiduidade, não dependia mais das infidelidades do sol. Durante o dia ansiosamente esperava pelo anoitecer; na escuridão da sala o facho de luz era intenso, impelindo para fora de si a parte amputada. Ritualmente, sem faltar um único dia, repetia a experiência que o encantava. Após vários meses algo mudou, outro dedo desapareceu. Estupefato, percebeu que aos poucos o resto de seu corpo conhecia um destino semelhante; despiu-se de suas vestimentas e nu posicionou-se entre a trajetória da luz e a parede. Tudo havia desaparecido.

Podia agora caminhar pela casa e o jardim sem o desconforto que o atormentava; mesmo de dia seu lado obscuro havia partido, nada fazia sombra à sua presença verdadeira. Entretanto, o deslumbramento veio acompanhado de uma inquietude, foi invadido por um cansaço persistente e lânguido, uma fraqueza mórbida o envolveu. Mal dava alguns passos e a exaustão o consumia, trôpego perdia o equilíbrio e sentava-se para descansar. Percebeu, porém, ao permanecer parado, que seu estado de ânimo retornava, a imobilidade lhe devolvia a energia estancada.

A partir daí movimentava-se o mínimo possível, passava o dia em repouso, distante das futilidades da vida. A inércia e a solidão tornaram-se companheiras inseparáveis. Ele sabia que os psicólogos denominam sombra a região do inconsciente na qual os desejos nefastos, não confessados, se aninham; ali escondiam-se recalcadas as emoções e sensações do Ego. Tomar consciência dessa condição de imperfeição seria o caminho da superação, da afirmação pessoal.

Alguém sem sombra teria se livrado das tentações obscuras, a nódoa que nos corrompe, não seria mais necessário usar a máscara que nos distorce diante do olhar complacente dos outros, dissimulando aquilo que realmente somos. O interno e o externo comungariam as mesmas virtudes. Satisfeito, colocou a cadeira de balanço no jardim, o sol estava a pino, e desfrutou a tranquilidade de Ser, imóvel tinha encontrado sua essência: tornou-se prisioneiro de si mesmo.

*Renato Ortiz é professor titular do Departamento de Sociologia da Unicamp. Autor, entre outros livros, de O universo do luxo (Alameda). [https://amzn.to/3XopStv]

Publicado originalmente no blog do BVPS.


A Terra é Redonda existe graças aos nossos leitores e apoiadores.
Ajude-nos a manter esta ideia.
CONTRIBUA

Veja neste link todos artigos de

10 MAIS LIDOS NOS ÚLTIMOS 7 DIAS

__________________
  • A colonização da filosofiamar estacas 14/11/2024 Por ÉRICO ANDRADE: A filosofia que não reconhece o terreno onde pisa corrobora o alcance colonial dos seus conceitos
  • A massificação do audiovisualcinema central 11/11/2024 Por MICHEL GOULART DA SILVA: O cinema é uma arte que possui uma base industrial, cujo desenvolvimento de produção e distribuição associa-se à dinâmica econômica internacional e sua expansão por meio das relações capitalistas
  • O entretenimento como religiãomóveis antigos máquina de escrever televisão 18/11/2024 Por EUGÊNIO BUCCI: Quando fala a língua do rádio, da TV ou da Internet, uma agremiação mística se converte à cosmogonia barata do rádio, da televisão e da internet
  • Ainda estou aqui — habeas corpus de Rubens Paivacultura ainda estou aqui 2 12/11/2024 Por RICARDO EVANDRO S. MARTINS: Comentário sobre o filme dirigido por Walter Salles
  • Os concursos na USPMúsica Arquitetura 17/11/2024 Por LINCOLN SECCO: A judicialização de concursos públicos de docentes na USP não é uma novidade, mas tende a crescer por uma série de razões que deveriam preocupar a comunidade universitária
  • A execução extrajudicial de Sílvio Almeidaqueima de livros 11/11/2024 Por MÁRIO MAESTRI: A denúncia foi patrocinada por uma ONG de raiz estadunidense, o que é paradoxal, devido à autoridade e status oficial e público da ministra da Igualdade Racial
  • O porto de Chancayporto de chankay 14/11/2024 Por ZHOU QING: Quanto maior o ritmo das relações econômicas e comerciais da China com a América Latina e quanto maior a escala dos projetos dessas relações, maiores as preocupações e a vigilância dos EUA
  • A falácia das “metodologias ativas”sala de aula 23/10/2024 Por MÁRCIO ALESSANDRO DE OLIVEIRA: A pedagogia moderna, que é totalitária, não questiona nada, e trata com desdém e crueldade quem a questiona. Por isso mesmo deve ser combatida
  • Ainda estou aquicultura ainda estou aqui 09/11/2024 Por ERIK CHICONELLI GOMES: Comentário sobre o filme dirigido por Walter Salles
  • Antonio Candido, anotações subliminaresantonio candido 16/11/2024 Por VINÍCIUS MADUREIRA MAIA: Comentários sobre os mais de setenta cadernos de notas feitos por Antonio Candido

PESQUISAR

Pesquisar

TEMAS

NOVAS PUBLICAÇÕES