Por MARCOS PAULO PEREIRA FILHO*
Comentário sobre o livro reécem-editado de Juan Sebastián Cárdenas
“Como se essa vida fosse governada por demônios malignos, amantes das reviravoltas e não da linha reta, por sátiros caprichosos e não por Deus e que Deus me perdoe mas às vezes acredito que Deus está na morte e não na vida porque a morte é o descanso eterno, a luz perpétua da retidão. Por outro lado, a vida, isso que chamam de natureza, é obra do diabo, que se alia às feras, às cobras, ao escorpião”
(Juan Sebastián Cárdenas, O diabo das províncias, p. 24).
Da indústria ao neoextrativismo
Um biólogo que retorna à sua cidade natal, cidade anã, nas regiões interioranas da Colômbia, após o corte da sua bolsa de pesquisa em outro continente, busca se reinventar em uma realidade diferente da de quando partiu. Sua tese de doutorado dedicada ao estudo do urso-de-óculos é considerada uma mercadoria vulgar, lhe obrigando a aceitar o emprego que sua mãe, com suas influências políticas locais, encontrou para ele: ser professor de biologia em um internato feminino imerso no fundamentalismo cristão.
A atmosfera melancólica e reflexiva diante do retorno inevitável ao passado traça um aspecto nostálgico do que foi a cidade e aquilo que se tornou. A nova realidade urbana sintetiza as transformações econômicas que a Colômbia e via de regra, a América Latina, passaram durante a transição de um regime de acumulação keynesiano-fordista para uma lógica flexível que erodiu o tecido social construído na segunda metade do século XX com o impulso industrial do ciclo desenvolvimentista que caracterizou o subcontinente.
Das lembranças, o sítio do tio com um jardim-mosaico que atraia os passarinhos, a casa na região central da cidade, a ida ao circo aos finais de semana e a possibilidade de cursar o ensino superior na cidade local, apresentam o cenário da transição de uma realidade agrário-exportadora para urbano-industrial que caracterizou os países latino-americanos entre as décadas de 1950 à 1980 com as substituições de importações, que alçaram partes do territórios ditos nacionais na lógica mundial de valorização industrial.
Alain Lipietz, em seu livro Miragens e milagres: problemas da industrialização no terceiro mundo,traça as particularidades desse processo de modernização periférica no capitalismo do pós-guerra, apontando que a construção espacial de uma lógica industrial nos ditos países do “Terceiro Mundo” se caracterizou pela formação de um mercado interno que absorvia parcialmente a população desses países nos círculos do consumo industrial. Diferentemente da construção do welfare-state nos países centrais, aqui o direito ao consumo estaria reduzido aos setores da classe média e dos operários especializados das fábricas. Apesar da delimitação de uma porcentagem modesta da população, houve a criação de um tecido social rígido, lastreado na produção industrial que organizava o sistema produtivo pelas divisões classistas próprias do sistema capitalista.
Com o colapso da experiência do ciclo desenvolvimentista que se deu a partir do endividamento externo, as crises das dívidas dos países latino-americanos durante a década de 1980 apontavam para a ruína do modelo estatista-concorrencial que configurou as estruturas produtivas até então. Sem superar sua condição periférica ao não atingir o tempo industrial médio dos países centrais, os planejadores do desenvolvimentismo enxergavam na espiral inflacionária os sintomas de uma realidade que não era possível forjar, isto é, uma acumulação capitalista nacional que transformasse a periferia em centro.
A maneira encontrada para superar a crise que os países se encontravam afundados foi um novo choque de modernização que redefiniu as trocas internacionais, solapando o setor industrial que vinha engatinhando, impulsionando o neoextrativismo[i] que geraria as divisas internacionais para o pagamento das dívidas galopantes dos seus países.
Essa passagem de uma lógica industrial para uma nova modernização, baseada em um capitalismo de acesso[ii], assusta o biólogo que retorna mais de uma década depois, com novos aspectos: uma nova modelagem arquitetônica urbana, expandindo seu tecido para além das regiões centrais; avanço da padronização agrícola monocultora moldando a paisagem; expropriação das comunidades locais para projetos de infraestrutura e das disputas fundiárias entre produtores familiares e fazendeiros; avanço das miragens fundamentalista que justificam os novos trabalhadores precarizados como os novos self-made man.
O surto de uma nova modernização?
Durante o romance, as transformações espaciais que trazem um incômodo que o biólogo não sabe como verbalizar, demonstram os avanços modernizadores de uma nova lógica de valorização imposta com a acumulação flexível na periferia do capitalismo durante o século XXI. Se entre suas recordações existe a associação entre o “arcaico” e “moderno” (sítio do tio vs casa na cidade) na cidade anã, aquilo que ele compreende nos rumos atuais do seu lugar de nascimento é um surto modernizador, consequência da exploração desenfreada dos recursos naturais durante a década de 2000, que reorganizou a estrutura produtiva nacional para uma lógica extrativista, financiando uma nova divisão social do trabalho na América Latina.
O circo que virou supermercado, a casa da família que foi vendida, os novos trabalhadores no setor de serviços e os empreendimentos habitacionais populares, representam as consequências de um processo modernizante. Apesar de seu aparente progresso, com os moradores da cidade celebrando o novo funcionamento do organismo urbano, aquilo que se enxerga são os sujeitos monetários sem dinheiros[iii], isto é, a população inserida na reprodução ampliada do sistema produtor de mercadorias, mas expropriadas das suas condições de reprodução social baseada não inteiramente pelas mediações da mercadoria. Se antes eram pequenos produtores familiares, hoje são vendedores de supermercados espalhados pela cidade, que circulam no mercado de trabalho e variam entre trabalhadores assalariados e exército de reserva, dependente do crédito para consumir.
O mistério que ronda a cidade é essa nova lógica de valorização, que distribui de maneira irregular os recursos, modificando sua paisagem e trazendo o colapso como fundamento da reprodução social dos habitantes de uma antiga vila que se transformou em um ambiente marcado pelos ditos da globalização atual. Se durante o ciclo desenvolvimentista houve tentativas de construção de uma sociedade de classes industrial, nos últimos anos o que nosso biólogo enxerga se expressa na precarização do trabalho que formaliza as ilegalidades como nova fonte de valorização.
*Marcos Paulo Pereira Filho é graduando em geografia na USP.
Referência
Juan Sebastián Cárdenas. O diabo das províncias: fábula em miniaturas. Tradução: Marina Waquil. São Paulo, DBA Editora, 2024, 130 págs. [https://amzn.to/3YyKRKs]
Notas
[i] https://piaui.folha.uol.com.br/materia/o-que-vem-depois-do-neoliberalismo/
[ii] cf. ARANTES, Paulo Eduardo. Extinção. São Paulo: Boitempo Editorial, 2007.
[iii] cf. KURZ, R. O colapso da modernização. Da derrocada do socialismo de caserna à crise da economia da economia mundial. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1993.
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