O estado atual do sistema financeiro mundial

Carlos Zilio, PROSSEGUIR, 1970, caneta hidrográfica sobre papel, 50x35
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Por FRANÇOIS CHESNAIS*

Como e porque o mundo das finanças constitui um universo ultraparasitário que goza de proteção inabalável

No desenvolvimento da pandemia na Europa, o sistema financeiro recebeu pouca atenção da mídia. Apenas no final de fevereiro, início de março, que uma queda muito acentuada das bolsas de valores ocupou as manchetes principais dos jornais e emissoras de televisão. De fato, entre 20 de fevereiro e 9 de março, vimos uma queda das cotações entre 23% e 30%, de acordo com a praça financeira. Sabemos agora que foi graças à intervenção do Fed (Banco Central dos Estados Unidos). Atualmente o apoio que ele dispensa aos investidores financeiros não enfraquece. Em 12 de junho, o Fed baixou as principais taxas de juros de seus empréstimos para 0% e anunciou a compra ilimitada de títulos do tesouro[i]. Em 18 de junho, o BCE [Banco Central Europeu] anunciou na sequência que emprestaria aos bancos da zona do euro 1,31 trilhão de euros à taxa de -1%. Em abril de 2019, eu concluía assim um artigo para A l’Encontre: “a questão política que pode surgir em um ou mais países europeus, de acordo com as circunstâncias, é um novo resgate dos bancos pelo Estado e a “socialização das perdas” às custas dos assalariados, como ocorre em tais casos”[ii].

Aí estamos nós. O jornal econômico Les Echos destaca que, no que diz respeito ao BCE, o montante é recorde para um programa chamado TLTRO (Targeted Long Term Refinancing Operation [Operação de refinanciamento direcionado de longo prazo]): “a oferta é particularmente atraente. As instituições que aderiram a estes empréstimos pagarão uma taxa de juros negativa. Em outras palavras, o BCE pagará aos bancos para que emprestem a seus clientes. E o nível desta remuneração, -1%, é totalmente inédito. Para isso, os bancos devem manter seus créditos à economia nos níveis anteriores à explosão da pandemia. Uma condição que deve ser facilmente atendida graças às garantias dos governos para permitir que as empresas resistam à crise”.

O objetivo anunciado é fortalecer a capacidade de empréstimo dos bancos, especialmente às PME [Pequenas e Médias Empresas], mas “várias instituições poderiam optar por investir parte desses fundos a -1% nos títulos do governo que ofereçam um retorno positivo, incluindo os da Itália”[iii]. Em resumo, trata-se de restabelecer a rentabilidade dos bancos e sua capacidade de pagar dividendos a seus acionários.

Mas as coisas não são tão simples assim. Ao contrário, o relatório trimestral do FMI sobre a estabilidade financeira mundial, o Global Financial Stability Report [Relatório de Estabilidade Financeira Global], de abril de 2020, e o artigo publicado no blog dos economistas do FMI dão a ideia de uma situação inédita das instituições – bancos centrais e FMI – revelada pela pandemia, confrontadas por uma situação igualmente inédita de ingovernabilidade e de separação entre os mercados e a “economia real”, começando pelas bolsas de valores. As duas principais tendências sistêmicas de longo prazo, que foram discutidas nos artigos precedentes, ajudarão a compreender suas raízes.

O contexto de longo prazo: acumulação financeira sem fim e queda contínua das taxas de juros

A primeira é o movimento mundial que viu os ativos financeiros globais crescerem a um ritmo bem superior ao PIB mundial. Falei disso em vários artigos publicados por A l’Encontre. Ela resulta do mecanismo específico de acumulação do capital monetário/capital de empréstimo em oposição à “acumulação real de capital” que Marx discute nos três capítulos chamados “Capital monetário e capital real” da quinta seção do Livro III[iv]. Na época do estudo de Marx, o movimento está ligado ao ciclo econômico: parte do capital acumulado pelos capitalistas industriais na fase de expansão busca valorizar-se como capital de empréstimo no período de crise e de recessão. Ele acrescenta, um pouco laconicamente, que a acumulação de capital monetário pode ser “o resultado de fenômenos que acompanham a acumulação real, mas diferem totalmente dela”[v].

O que era um fato conjuntural no século XIX tornou-se um processo sistêmico no caso do capitalismo contemporâneo, nascido, primeiro, das relações imperialistas “Norte-Sul”, depois, dos mecanismos institucionais de transformação dos salários em capital monetário através dos sistemas de aposentadoria por capitalização e nutridos, em seguida, pela emissão de títulos de dívida privada e, cada vez mais, de dívida pública nos países capitalistas centrais. Estamos diante de direitos de saques virtuais da mais-valia atual e futura, diretos, no caso de ações e obrigações emitidas pelas empresas, indiretos, no caso de títulos da dívida pública. Eles representam um capital para aqueles que os detêm e aguardam um retorno, mas são capital fictício do ponto de vista do movimento do capital como um todo[vi].

O McKinsey Global Institute calculou que as ações medidas por sua capitalização de mercado, títulos de dívida privada e pública e depósitos bancários aumentaram de 100% para 200% do PIB mundial entre 1990 e a crise econômica e financeira mundial de 2007-2009.

Figura 1. Crescimento dos ativos financeiros globais e do PIB mundial 1990-2010 (eixo esquerdo e em vermelho, ativos financeiros globais em % do PIB mundial; eixo direito, seu valor em trilhões de dólares, com taxas de câmbio de 2011) Fonte: McKinsey Global Institute, Financial Globalization, Retreat or Reset? 2013

O McKinsey Global Institute deixou de publicar suas estimativas. Por outro lado, o site Visual Capitalist publicou dados em maio mostrando que o movimento prosseguiu[vii]. As ações medidas por sua capitalização de mercado (89,5 trilhões de dólares) e os títulos da dívida pública e privada (253,0 trilhões de dólares, dos quais 27,4% são dívida estatal) atingiram um total de 342,5 trilhões de dólares, 95,5 trilhões em depósitos bancários (sem contar os 35,2 trilhões em agregados monetários estreitos), num total de 438,2 trilhões de dólares, que eram 225 trilhões de dólares em 2012, um aumento de 98%. Além disso, há também 280,6 trilhões em ativos imobiliários.

A segunda tendência de longo prazo é a queda contínua das taxas de juros.

Fonte: Federal Reserve Bank of Saint-Louis Economic Research.

As políticas (o termo “não-ortodoxas”, utilizado por muito tempo, desapareceu gradativamente das análises) de criação massiva de dinheiro e de apoio permanente aos bancos, seguidas pelo Fed e demais bancos centrais, contribuíram para esta queda. O departamento de pesquisa do grupo Natixis inclusive estimou que elas explicariam dois terços da queda das taxas a partir de 2009[viii]. Mas os economistas do Banco de Compensações Internacionais (BIS) em Basileia insistiram categoricamente que isso não era suficiente para explicar a queda, uma vez que ela havia começado em 1995. Nesta queda, dizem eles, é impossível “desvendar o que é secular e o que é cíclico, e, no que é cíclico, a respectiva importância dos fatores monetários e não monetários”[ix]. De fato, as principais causas da longa queda das taxas nos mercados de títulos de dívida encontram-se na repartição dos ganhos de produtividade controlada pela relação entre capital e trabalho, a dimensão da mudança tecnológica e o bloqueio dos mecanismos de acumulação que criam. O crescimento da mais-valia atual e futura dos direitos virtuais de saque constitutivos do capital fictício diminui. A falta de oportunidades de investimentos rentáveis resulta numa oferta de capital maior que a demanda[x]. As taxas só podem cair. Em resposta, os investidores aumentaram ano a ano o que chamamos, a partir do início dos anos 2010, de apetência ao risco, ou apetite pelo risco (risk appetite) e voltaram-se para as oportunidades de micro-lucros oferecidos pela inteligência artificial.

A irrupção do big data e dos algoritmos

As negociações de alta frequência (NAF) (em inglês, High-frequency trading, HFT) foram a primeira modalidade de “negociação automática” baseada em decisão estatística que gerencia os big data financeiros. Estes operadores virtuais de mercado utilizam algoritmos complexos para analisar simultaneamente vários mercados e executar as ordens em função de sua condição. Embora a velocidade de transação do NAF fosse ainda de 20 milissegundos no início da década de 2010, ela passou a 113 microssegundos em 2011.

Os não-especialistas em mercados financeiros descobriram o NAF em 6 de maio de 2010. Enquanto os mercados europeus abriram com um leve recuo devido a preocupações provenientes da Grécia, em Wall Street, sem sinal de alerta nem razão aparente, o índice Dow Jones perdeu quase 10% em poucos minutos[xi]. Após investigação, as autoridades americanas de regulação (SEC [Securities and Exchange Commission] e CFTC [Commodity Futures Trading Commission]) questionaram a técnica de compra e venda de ativos baseada em algoritmos. Estudando os contratos chamados “e-mini” do S&P 500 [Standard & Poor’s 500], os pesquisadores constataram que os negociadores NAF obtiveram um lucro médio de 1,92 dólar por transação realizada pelos grandes investidores institucionais, e uma média de 3,49 dólares por aquelas realizadas por investidores de varejo[xii].

Os NAF foram seguidos pelo que chamamos “robo-investing” [“robô de investimento”], que representava, em 2019, segundo o The Economist[xiii], 35% da capitalização de mercado em Wall Street, 60% dos ativos dos investidores institucionais e 60% das compras e vendas de títulos nos mercados estadunidenses. Esta gestão assume diferentes formas. Nos mercados de ações, a mais comum é aquela do ETF (Exchange-traded fund [em português, “fundo de índice”,  um tipo de de fundo de investimento negociado em bolsa que acompanha um determinado índice de referência]). Como são programados para seguir as flutuações de um índice de referência, sem procurar obter uma performance melhor que a média do mercado, são ditos de “gestão passiva”. Em particular, é na gestão das carteiras privadas que encontramos as plataformas de investimento on-line completamente automatizadas, denominadas “robôs-conselheiros”. Os fundos de índice negociados na bolsa (exchange-traded funds) rastreiam automaticamente os índices de ações e títulos. Em outubro de 2019, estes dispositivos administravam 4,3 trilhões de dólares em ações estadunidenses, ultrapassando, pela primeira vez, as somas administradas pelos seres humanos. Um software chamado smart-beta isola uma característica estatística – a volatilidade, por exemplo – e concentra-se nos títulos que a apresentam. Como os algoritmos comprovaram sua eficácia para ações e derivativos, estão desenvolvendo-se também nos mercados de dívida.

Os gestores de fundos leem relatórios e reúnem-se com empresas de acordo com leis rígidas de informação privilegiada e de divulgação de informação, destinadas a controlar o que é de domínio público e garantir que todos tenham igual acesso. No presente, uma quantidade quase infinita de dados novos e o constante aumento do poder dos algoritmos criam novas maneiras de avaliar os investimentos. Eles possuem informações mais atualizadas sobre as empresas do que as que estão disponíveis para seus conselhos de administração. Até aqui, o crescimento da capacidade dos computadores democratizou as finanças, reduzindo os custos. Um Fundo Negociado em Bolsa (FNB) típico fatura 0,1% ao ano, em comparação com talvez 1% para um fundo ativo. Podemos comprar ETFs por telefone. Uma guerra de preços em curso significa que os custos das transações colapsaram e que os mercados em seu conjunto estão mais líquidos do que nunca[xiv].

O The Economist se pergunta se os ETFs são uma ameaça para a estabilidade financeira[xv]. “Os computadores podem distorcer os preços dos ativos, pois muitos algoritmos são utilizados simultaneamente em títulos com uma determinada característica, e, em seguida, os abandonam repentinamente. Os reguladores temem que a liquidez se evapore à medida que os mercados desabam. Mas isso é esquecer que os humanos são perfeitamente capazes de causar eles mesmos os danos e que os computadores podem ajudar a gerir os riscos. Entretanto, uma série de “flash-crashs”  [quebras repentinas e profundas] e de incidentes estranhos ocorreram, incluindo a quebra da libra esterlina em outubro de 2016 e uma queda dos preços da dívida em dezembro de 2018. Estes incidentes poderiam ser mais sérios e frequentes à medida que os computadores se tornam mais potentes”.

O estado atual do sistema financeiro mundial

Em Abril, o FMI publicou seu primeiro relatório trimestral de 2020, o Global Financial Stability Report [Relatório de Estabilidade Financeira Global]. O diretor do Departamento de mercados monetários e de capitais publicou o esboço geral do relatório de junho em primeira mão em seu blog[xvi]. Ele lembra que, se o sistema financeiro chamou a atenção do grande público apenas no início de março, a situação esteve muito tensa durante semanas. Assim: “em meados de fevereiro, quando os investidores começaram a temer que a epidemia estava se transformando numa pandemia mundial, os preços das ações caíram fortemente em relação aos níveis excessivos que haviam atingido. Nos mercados de crédito, os spreads de crédito dispararam, especialmente nos segmentos de risco, como as obrigações de alto rendimento, os empréstimos alavancados e a dívida privada, cujas emissões praticamente pararam. Os preços do petróleo caíram devido ao enfraquecimento da demanda mundial e da falta de acordo entre os países da OPEP+ sobre cortes na produção, o que reduziu ainda mais o apetite pelo risco. Esta volatilidade do mercado levou a uma fuga para ativos de qualidade e os rendimentos dos títulos de refúgio caíram abruptamente”[xvii]. Os países emergentes sofreram uma terrível fuga de capitais.

Fonte: Financial Times https://www.ft.com/content/e3634816-66bd-4355-bc71-156016761dab

Trata-se principalmente de países africanos muito vulneráveis, que sofreram a maior inversão de fluxo de investimentos de carteira já registrada pelos países emergentes, tanto em valores em dólares quanto em porcentagem de seu PIB. A velocidade com a qual se move o capital especulativo    reflete o medo dos fundos especulativos diante da situação.

O FMI alegra-se porque “os bancos centrais, em seu conjunto, se mobilizaram para evitar que a crise sanitária se convertesse em furacão financeiro. Seja pela queda de suas taxas de juros, pelo aumento de seu programa de compras de ativos financeiros, pela implementação de linhas de swap de divisas entre eles ou concedendo facilidades de crédito e de liquidez”. A configuração que os economistas mainstream chamam, num termo contra-intuitivo, de risco moral (moral hazard), “quando uma entidade (neste caso um banco ou um fundo de pensão) é incentivada a aumentar sua exposição ao risco porque sabe que não suportará todos os custos”, remonta à doutrina do “too big to fail” [“grande demais para quebrar”], como o resgate do Continental Illinois National Bank em 1983[xviii], e não parou de expandir-se desde então, sendo o Lehmann Brothers, em setembro de 2008, a única exceção. O FMI reconhece que, em 2020, o risco moral desempenhou plenamente seu papel e fez a seguinte advertência: “a  utilização sem precedentes de ferramentas não convencionais amorteceu sem dúvida o golpe da pandemia para a economia mundial e reduziu o perigo imediato para o sistema financeiro mundial, que era o seu objetivo previsto. Entretanto, os responsáveis políticos devem estar atentos às possíveis consequências imprevistas, tal como o aumento contínuo das vulnerabilidades financeiras num ambiente de condições financeiras fáceis. A expectativa de apoio contínuo dos bancos centrais poderia transformar as já extensas valorizações de ativos em vulnerabilidades, sobretudo num contexto em que os sistemas financeiros e os setores privados esgotaram as suas reservas durante a pandemia”.

Os bancos centrais fizeram tão bem seu trabalho de resgate dos bancos, fundos de pensão e outros investidores que, desde a queda no final de fevereiro, os preços dos ativos de risco se recuperaram, começando pelo das ações. Os mercados financeiros experimentam uma dissociação sem precedentes entre o movimento de preços e a realidade da atividade econômica, marcada pela queda do PIB e pelo rápido crescimento do desemprego. E isso é demonstrado pelo forte aumento dos índices das bolsas estadunidenses e a queda na confiança dos consumidores, dois indicadores que historicamente se desenvolveram em conjunto, “levantando questões sobre a sustentabilidade da recuperação, não fosse pelo empurrão do banco central”[xix].

Fonte: Bloomberg Finance L.P.; e IMF staff calculations

A dissociação entre a situação econômica e o nível das ações é válida para outros países. Na França, por exemplo, enquanto o PIB já caiu 8% e o desemprego atingiu seu nível mais alto desde 1996, com a destruição de 500 mil empregos em maio, o CAC 40 [principal índice da Bolsa de Paris] passou de 3.755 pontos em 18 de março para 5.198 pontos em 6 de junho, uma recuperação de 864 pontos em comparação com 20 de fevereiro.

O tratamento da mudança climática pelo FMI

Há um capítulo do relatório de abril que não tem nada a ver com a pandemia. Ele é dedicado à mudança climática[xx]. Encomendado pelo Network for Greening the Financial System[xxi], mostra de modo contundente a preocupação do FMI com os investidores. Por isso, vou citá-lo mais extensamente. O FMI observa que, em vista “das tendências climáticas, as autoridades de estabilidade financeira temem que o sistema financeiro não esteja preparado para enfrentar este aumento potencialmente grande do risco físico, assim como o risco de transição devido às mudanças políticas, tecnológicas, legais e de mercado que ocorrerão durante a transição para uma economia de baixo carbono”. E continua, “primeiro, um risco climático pode se transformar em desastre se ocorrer numa área de grande exposição e alta vulnerabilidade. Tal desastre afetaria as famílias, as empresas não financeiras e o setor público pela perda de capital físico e humano, causando transtornos econômicos que podem ser significativos. As empresas do setor financeiro estão expostas a estes choques através de suas atividades de subscrição (seguradoras), de sua atividade de crédito (principalmente bancos) e das carteiras de títulos afetadas (todas as sociedades financeiras).

Por sua vez, as instituições financeiras podem estar igualmente expostas a riscos operacionais (nos casos em que suas estruturas, sistemas e pessoal são diretamente afetados por um evento) ou a um risco de liquidez (se um desastre desencadeia uma grande retirada de depósitos dos clientes). As seguradoras desempenham um papel particular na absorção de choques. A oferta de seguros concentra o impacto da perturbação neste setor e o reduz nos outros agentes econômicos. Os governos geralmente desempenham um importante papel de amortecimento, fornecendo certas formas de seguro, assim como assistência e apoio na sequência de uma catástrofe. A pressão sobre os balanços do governo após um desastre poderia ter implicações para a estabilidade financeira, dada a estreita ligação entre os governos e os bancos em várias economias. (…) Grandes desastres poderiam expor as instituições financeiras ao risco do mercado se resultam em forte queda nos preços das ações, em razão da destruição generalizada dos ativos e da capacidade de produção das empresas ou de uma queda na demanda por seus produtos”.

Ingovernabilidade de parte do sistema financeiro global e mercados “descorrelacionados”

O artigo publicado no blog do FMI admite, surpreendentemente por sua franqueza, um “sistema de governança enredado em suas contradições”. De fato, se “aos bancos foram impostas, pelo acordo internacional de índices de liquidez conhecido como Basileia III, exigências de capital próprio e até mesmo o início do controle de seus empréstimos alavancados, isso deslocou o mercado de crédito alavancado para o setor não regulamentado, permitiu que prosperassem as CLOs (Collateralized Loan Obligations [Obrigações de empréstimos com garantias]: títulos de dívida emitidos por um veículo de securitização) e aumentou o volume de negócios dos fundos de investimento altamente especulativos. Os limites do sistema financeiro paralelo (aquele do shadow banking) são ainda mais difíceis de traçar do que em 2008”.

O Capítulo 2 do Global Financial Report descreve, na medida de suas possibilidades, “o ecossistema financeiro dos mercados de crédito empresarial de alto risco, em que o papel das instituições financeiras não bancárias cresceu e o sistema se tornou mais complexo e opaco”. Para dar-lhes uma amostra disso, deixo em inglês o primeiro subtítulo, Rapid Growth of Risky Credit Has Raised Red Flags [O rápido crescimento do crédito de risco levantou bandeiras vermelhas]. As potenciais vulnerabilidades incluem “menor qualidade do crédito aos mutuários, normas de subscrição mais flexíveis, riscos de liquidez nos fundos de investimento e maior interconexão. Embora os bancos tornaram-se mais seguros, não conhecemos os vínculos que os investidores institucionais mantêm com o setor bancário e que poderiam causar-lhes prejuízos em caso de perturbações do mercado”. Os bancos centrais dispõem de “poucos instrumentos para lidar com os riscos de crédito e de liquidez nos mercados globais de capitais”, enquanto “o apetite pelo risco alastrou-se até os mercados emergentes”. As consolidações de carteira estabilizaram-se e alguns países voltaram a registar entradas modestas”.

A conclusão está nas Perspectivas da Economia Mundial (PEM) publicadas no início de julho. Afirma-se ali que “de acordo com as novas projeções, o PIB mundial deverá contrair 4,9% em 2020, ou seja, 1,9 ponto percentual a mais do que o previsto nas PEM de abril de 2020. A pandemia de Covid-19 teve um impacto negativo maior do que o previsto para a atividade no primeiro semestre de 2020, e a recuperação deverá ser mais lenta do que se esperava. Em 2021, o crescimento mundial deverá atingir 5,4%. Globalmente, portanto, espera-se que o PIB de 2021 esteja cerca de 6,5 pontos percentuais abaixo do nível projetado em janeiro de 2020, antes da pandemia de Covid-19. O impacto negativo nas famílias de baixa renda é particularmente grave, e pode comprometer o progresso considerável que tem sido feito na redução da pobreza extrema no mundo desde os anos 90”. E para insistir uma vez mais: “a extensão da recente melhoria dos mercados financeiros parece estar descorrelacionada com a mudança das perspectivas econômicas, como indicado na atualização do Relatório de Estabilidade Financeira Global (GFSR)”[xxii].

*François Chesnais é professor da Universidade de Paris XIII. Autor, entre outros livros, de A mundialização financeira (Xamã).

Tradução: Fernando Lima das Neves

Publicado originalmente em Cahiers & revue La Brèche

 

Notas


[i]              https://www.imf.org/en/Publications/GFSR/Issues/2020/04/14/global-financial-stability-report-april-2020.  

[ii]            Network for Greening the Financial System é um grupo de bancos centrais e autoridades de supervisão. Consultando a internet, percebemos que o Bundesbank e o Banco da França o apresentam de formas muito diferentes. Para o primeiro, o grupo demonstrou preocupação porque os riscos financeiros associados às alterações climáticas não se refletem totalmente na avaliação dos ativos e apelou para que estes riscos fossem integrados no controle de estabilidade financeira (https://www.bundesbank.de/en/bundesbank/green-finance/network-for-greening-the-financial-system-808978 ). Para o segundo, o objetivo do grupo é ajudar a reforçar a resposta global necessária para alcançar os objetivos do Acordo de Paris e reforçar o papel do sistema financeiro na gestão do risco e na mobilização de capital para investimentos verdes e com baixo teor de carbono no contexto mais amplo do desenvolvimento ecologicamente sustentável (https://www.banque-france.fr/en/financial-stability/international-role/network-greening-financial-system ).

[iii]           https://www.imf.org/en/Publications/WEO/Issues/2020/06/24/WEOUpdateJune2020?utm_medium=email&utm_source=govdelivery.

[iv]              https://en.wikipedia.org/wiki/Too_big_to_fail#Moral_hazard.

[v]            https://blogs.imf.org/2020/06/25/financial-conditions-have-eased-but-insolvencies-loom-large/%20?utm_medium=email&utm_source=govdelivery.

[vi]              http://www.capital.fr/economie-politique/taux-d-interet-les-dessous-d-une-baisse-a-haut-risque-1142877.

[vii]            Peter Hördahl, Jhuvesh Sobrun and Philip Turner, Low longterm interest rates as a global phenomenon, BIS Working paper n° 574 August 2016.

[viii]           Este uso da oferta e da demanda é teoricamente legítimo. No capítulo XXII do Livro III, que trata da determinação do nível da taxa de juros, Marx escreve que “o capital que produz juros, mesmo que seja uma categoria econômica absolutamente diferente da mercadoria, se torna, como vimos, uma mercadoria sui generis; por isso, o juro converte-se em seu preço, o qual, como o preço de mercado de uma mercadoria comum, é fixado, em cada caso, pela oferta e demanda. (…) A taxa geral de lucro extrai sua determinação de causas diferentes e bem mais complexas do que aquelas que fixam a taxa de juros do mercado, que é estabelecida direta e imediatamente pela relação entre oferta e demanda”. Le Capital, livre III, Editions Sociales, tome 7, page 33

[ix]           https://en.wikipedia.org/wiki/High-frequency_trading#May_6,_2010_Flash_Crash

[x]             https://sevenpillarsinstitute.org/high-frequency-trading-1-empirical-assessment/. 13 mars 2020.

[xi]           https://www.economist.com/leaders/2019/10/03/the-rise-of-the-financial-machines.

[xii]          Ver https://investorjunkie.com/41363/robo-advisors-vs-financial-advisors/ e a lista dos mais bem classificados em https://www.investopedia.com/best-robo-advisors-4693125.

[xiii]         https://www.economist.com/leaders/2019/10/03/the-rise-of-the-financial-machines.

[xiv]           https://blogs.imf.org/2020/06/25/financial-conditions-have-eased-but-insolvencies-loom-large/%20?utm_medium=email&utm_source=govdelivery.

[xv]             Resumo executivo: https://www.imf.org/en/Publications/GFSR/Issues/2020/04/14/global-financial-stability-report-april-2020.

[xvi]              https://www.visualcapitalist.com/all-of-the-worlds-money-and-markets-in-one-visualization-2020/.

[xvii]              https://www.federalreserve.gov/monetarypolicy/2020-06-mpr-part2.htm.

[xviii]            http://alencontre.org/economie/la-theorie-du-capital-de-placement-financier-et-les-points-du-systeme-financier-mondial-ou-se-prepare-la-crise-a-venir.html.

[xix]           https://www.lesechos.fr/finance-marches/marches-financiers/les-banques-empruntent-1300-milliards-a-taux-negatifs-aupres-de-la-bce-1216239.

[xx]           Marx, Le Capital, livre III, Editions Sociales t.8, page 139.

[xxi]             Ibid., page 168.

[xxii]           Para uma apresentação mais longa, ver meu artigo de 26 de abril de 2019: http://alencontre.org/economie/la-theorie-du-capital-de-placement-financier-et-les-points-du-systeme-financier-mondial-ou-se-prepare-la-crise-a-venir.html.

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