Por HELCIO HERBERT NETO*
As duas experiências na Maré, das primeiras habitações à ocupação pelas Forças Armadas, denunciam que o país convive com diferentes temporalidades
1.
Durante a Copa do Mundo de futebol de 1950, a Rádio Nacional realizou uma façanha para a época: transmitiu o desembarque da seleção uruguaia simultaneamente para o país vizinho. A colaboração com a estação La Voz del Aire era uma das ações de um projeto grandiloquente – o porvir redentor para o Brasil passava pela irradiação da chegada dos atletas, que seriam campeões ao fim do torneio, a poucos quilômetros das moradias formariam no futuro o Complexo de favelas da Maré, na zona norte.
Para coberturas esportivas que com a digitalização reúnem diferentes canais e atingem milhões de usuários pelas plataformas, a realização parece desimportante. No entanto, a Rádio Nacional superava fronteiras e anunciava o esplendor do país. O avião da delegação posou no Aeroporto do Galeão, na Ilha do Governador, bairro vizinho a uma via recém-inaugurada para integrar a então capital da República ao Brasil como um todo – iniciativa ligada ao mesmo horizonte de promessas para o país.
Em 1946, a rodovia hoje conhecida como Avenida Brasil foi aberta aos motoristas: por cortar de oeste a norte a cidade e oferecer uma alternativa direta para chegar ao Centro, transformou política, social e culturalmente o então Distrito Federal. Das consequências da inauguração se sobressai a construção de casas à margem da estrada. Próximas à Baía de Guanabara, as residências acolhiam na maioria dos casos trabalhadores que buscavam uma opção para chegar com mais facilidade às regiões desenvolvidas.
O deslocamento para área não recebeu políticas públicas de habitação, esgotamento sanitário ou desenvolvimento social à altura da mudança imposta pela Avenida Brasil. Foi no ímpeto da população que novos laços de sociabilidade, soluções para o convívio e, no limite, formas de vida foram estabelecidos. Os territórios que formam o complexo de favelas da zona norte se construíram assim, do descompasso entre grandes anúncios institucionais e a concretude das realizações de pessoas simples.
Enquanto o sistema de comunicação estatal alcançava o objetivo de propagandear a grandeza do Brasil para o continente, a realidade precária se impunha na comunidade. A presidência do general Eurico Gaspar Dutra, militarizada e alinhada aos Estados Unidos, proclamava internacionalmente a imagem bem-sucedida do anfitrião da primeira Copa do Mundo de futebol do pós-guerra. O momento era oportuno. O proselitismo do ideal de nação se desenrolava diante de comitivas de diferentes continentes.
2.
O episódio não é uma exceção. Em 2024, a mais recente edição do Mundial realizada no Brasil completa uma década. Novamente, a Maré ilustra como realidades distintas, quase opostas, coabitam o mesmo chão. Arenas em padrão internacional foram construídas em doze cidades; no Rio de Janeiro, por exemplo, o mesmo Aeroporto do Galeão foi expandido e modernizado para receber as delegações para outra decisão do torneio – assim como em 1950. E o descompasso, inconfessável, igualmente veio à tona.
A ocupação por forças militares no Complexo da Maré foi iniciada em 2014 sob o argumento de garantir a segurança, em instante que deixava o Rio de Janeiro em evidência ao redor do planeta. Distantes das façanhas globais alardeadas pelo Brasil, os moradores passaram a conviver com fuzis bancados pelo Estado em ação que promoveu políticos, nacionalmente conhecidos após dez anos. Comandante da operação, o general Richard Nunes se tornou pouco tempo depois o secretário de segurança fluminense.
A nomeação foi publicada durante a intervenção federal, liderada por outro general: Walter Braga Netto. Ministro da Defesa no mandato do presidente Jair Bolsonaro, o oficial foi ainda candidato à vice-presidência na corrida eleitoral de 2022 com a chapa que não conseguiu a reeleição. Não é exagero reconhecer que a medida na Maré ajudou a revestir as fardas de ares políticos, em movimento inédito desde a redemocratização. Da caserna ao palanque, os militares se projetaram nacionalmente.
As duas experiências na Maré, das primeiras habitações à ocupação pelas Forças Armadas, denunciam que o país convive com diferentes temporalidades. Entre o empenho para demonstrar os planos de sucesso e a escassez no cotidiano de gente comum existe um fosso – e é lá que está, precisamente, o Brasil. Os territórios na zona norte, à beira da rodovia inaugurada em 1946, simbolizam rasuras nas promessas em torno da realização dos torneios e as ambiguidades no dia a dia de quem vive por aqui.
*Helcio Herbert Neto é pós-doutorando no Departamento de Estudos Culturais e de Mídia da UFF. Autor do livro Palavras em jogo [https://amzn.to/4aaGzfF]
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