Falso dilema

Foto: Jenna Hamra
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Por FERNANDO NETTO SAFATLE*

Está na Constituição: auditar a dívida para identificar ilegalidades e ilegitimidade na dívida, promovendo ações para rever o processo de endividamento

Já faz mais de três semanas que o governo Lula se debruça para saber onde cortar e quanto cortar em cada área dos ministérios. Até hoje não chegou a um consenso. Agora a decisão é incluir também os militares para tentar minimizar as críticas especialmente dentro do PT para que não passe a ideia de que são os pobres que estão pagando a conta. Na verdade, o governo Lula foi emparedado pela Faria Lima em um falso dilema: ou fica e o bicho come, ou corre e o bicho pega. Caiu na armadilha, não deixaram nenhuma saída. Ou corta os gastos, sobretudo, das áreas sociais, ou não, provocando o descalabro financeiro e o caos. A pressão da mídia é enorme.

A grande mídia bate insistentemente na mesma tecla, uma orquestração de um só maestro, como se não existisse saída, fosse uma estrada de mão única. Os economistas chamados a depor são todos ligados aos bancos, nenhum divergente, para dar a impressão de que não existe nenhuma discordância sobre essa matéria. Assim, sem nenhuma opinião ao contrário, vão encurralando o governo. Lula, o único que externou opinião contrária afirmou estar estupefato ao saber que mais de 550 bilhões de reais são gastos com subsídios aos empresários rurais e industriais, enquanto o governo se esfacela para cortar 20 a 30 bilhões dos pobres. Isso sem nenhuma contrapartida.

A dívida pública

Por exemplo, nenhuma garantia de manutenção do emprego. Estava se referindo à desoneração fiscal aprovada pelo governo. Infelizmente, isso fica apenas em um choro de lamentações, sem nenhuma ação prática. É a eterna ilusão que essas coisas podem ser resolvidas intra muros, a nível institucional. Ora, são questões candentes, uma verdadeira luta de classes. Agora, se trava uma batalha por recursos também entre classes, o corte de gastos. Não existe aqui uma saída única, ao contrário, há várias saídas. Só que, são intocáveis. Por exemplo, a discussão sobre a dívida pública. Por quê não se discuti como uma das alternativas do corte de gasto? Porque ela está fora do teto de gasto e do arcabouço fiscal?

Pode se cortar os gastos sociais menos os gastos com serviços da dívida? Isso é intocável! O país gasta hoje 1 trilhão só com o pagamento dos juros da dívida. São 47% do orçamento público. Enquanto, o rombo fiscal atinge até setembro deste ano, 105 bilhões. Ou seja, o país tem recursos, não é falta, mas só que gasta quase a metade com o pagamento do serviço da dívida. Quando Getúlio Vargas assumiu em 1930 o governo se deparou com uma dívida enorme, convocou seu ministro Osvaldo Aranha e mandou fazer uma auditagem da dívida interna e externa. Levantou se que o primeiro contrato da dívida foi feito em 1824, especialmente com os bancos ingleses, depois vieram uma sucessão deles.

Essa dívida era herdada ainda de Portugal e transferida para o Brasil. A maioria das despesas era oriunda do próprio sistema da dívida, com juros exorbitantes, contratos fraudulentos, dívidas inexistentes, cláusulas abusivas, corrupção, etc. Essa auditoria foi dividida em seis fases. A primeira delas, realizada em 1932 foi a suspensão do pagamento da dívida. A sexta, nos inícios de 1940, foi a redução significativa de 60% da dívida. Com esse corte foi possível fomentar o processo de industrialização, como Petrobras, Vale, a siderurgia e reestruturação do aparelho estatal. A grande diferença dos investimentos ocorridos na época de Vargas e diferentemente da era de JK e do regime militar.

Foi que enquanto Getúlio Vargas obteve recursos de origem interna os dos outros eram de origem externa. Esse abismal endividamento externo levou o Brasil a um estrangulamento provocando uma estagnação econômica na década de 80. Os governos de Fernando Collor, Itamar Franco e FHC tiveram que entregar ao capital estrangeiro recursos naturais para pagamento de parte da dívida. Getúlio Vargas foi o único governo a realizar auditoria da nossa dívida pública. Tivemos outras experiências, mas inacreditavelmente vetadas recentemente. Outra tentativa de auditar a dívida pública foi realizada durante o governo de Dilma Rousseff. Acreditem, vetada pela Dilma Rousseff, por incrível que pareça.

A proposta foi feita pelo deputado do PSOL, Edmilson Rodrigues. O projeto foi aprovado pelo Congresso Nacional com a participação de entidades da sociedade civil. O veto foi publicado no Diário Oficial da União que prevê o planejamento das contas federais. A justificativa era de que a auditoria já era feita pelo Banco Central e TCU. Justificativa mais esfarrapada!

O motivo real, é claro, não foi esse. Pior de tudo que a Constituição Federal de 1988 prevê sua realização através do artigo 26 do Ato das Disposições Transitórias. Define com muito clareza seus objetivos, tais como: analisar o processo de endividamento do país; identificar ilegalidades e ilegitimidade na dívida; promover ações para rever o processo de endividamento.

Ou seja, estamos com 30 anos descumprindo a nossa Constituição! Em seu segundo mandato Lula anunciou que tinha pago a dívida com o FMI. Maria Lúcia Fattorelli, que faz parte da Auditoria Cidadão da Dívida, desmistifica afirmando que a dívida com o FMI apenas foi transferida para outros credores. Enquanto lá fora remunerava a 4%, aqui, na época remunera a 19%. Trocou se, a dívida externa pela dívida interna.

Se fizermos Auditoria hoje da dívida pública certamente iríamos encontrar a mesma situação que Getúlio Vargas encontrou na década de 1930, cerca de 60% de nossa dívida inexistente. E porque não cumpre com a legislação constitucional e realiza a auditoria da dívida pública?

Está lá na Constituição! Convoca-se um Plebiscito e joga a discussão para população decidir, com isso, ganha o seu apoio. Ora, não adianta ficar perplexo e querer resolver essa briga intramuros, com negociações em nível institucional. São questões de disputa de recursos entre classes que se deixar para resolver na mesa de negociação vamos perder sempre.

É uma ilusão achar que as coisas vão ser decididas, pura e simplesmente, assim. A alteração na correlação de forças só vai ser modificada se for para as ruas. Politiza essa questão e convoca um Plebiscito para ganhar apoio e convocar o Congresso para definir uma convocação de auditagem da dívida pública. Os recursos para cobrir o rombo tem que vir da auditagem da dívida pública. Afinal, a Constituição assim o exige!

*Fernando Netto Safatle é economista. Foi secretário do Planejamento de Goiás, no governo de Henrique Santillo (1986-1990). Autor, entre outros livros, de A economia política do etanol (Alameda).


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