A cultura do cancelamento na Alemanha

Foto: Anthony
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Por REINHARD HESSE*

A ciência não pode pretender ser séria, se não estiver disposta a escutar outras opiniões e examinar sem antecipação dos resultados os argumentos contidos nas outras opiniões

Durante um breve período – mais exatamente, de 20 de abril de 2021 a 8 de novembro de 2023 – a DHV [Deutscher Hochschulverband – Associação das Instituições de Ensino Superior da Alemanha, doravante citada pela sigla] abrigou a fundação “Liberdade da Ciência”. A ideia foi minha. Disponibilizei o capital inicial – um valor nada desprezível.

Na nossa época, ameaçada por uma espécie de estupidez denominada “cultura do cancelamento”, o objetivo singelo da fundação foi lembrar o postulado civilizacional fundamental expresso na velha regra latina “Audiatur et altera pars!”, mediante a concessão do prêmio da fundação a pessoas notabilizadas pela defesa pública do livre direito à expressão.

Premiados foram até agora Noam Chomsky, o cientista mais citado do mundo, intelectual renomado, reconhecido sem sombra de dúvida por amigos e adversários como campeão impertérrito da luta pelo direito de defensores de opiniões divergentes e pela livre expressão da opinião, e o Prof. Julian Nida-Rümelin, em reconhecimento da coragem, hoje necessária na Alemanha para quem se engaja em público contra a estupidez do pensamento único de viés belicista, em prol de uma visão diferenciada da relação com a ciência produzida na Rússia.

Submeti o conceito dessa fundação à DHV enquanto associação dos professores universitários alemães, pois imaginei que ela seria a instituição mais apropriada para abrigar a fundação, que se empenha pela finalidade supramencionada, já que a ciência sem liberdade de opinião simplesmente é inconcebível.

O Prof. Bernhard Kempen, então Presidente da DHV, e o Prof. Michael Hartmer, então seu Diretor Executivo, acolheram de imediato a ideia e ajudaram na sua implementação rápida e eficaz. A DHV passou a ser entidade mantenedora da fundação “Liberdade da Ciência”. Os dois prêmios supramencionados foram concedidos por sugestão de minha parte e com o apoio espontâneo e irrestrito do presidente e diretor executivo. Foram aprovados por unanimidade pelo Conselho Curador da fundação,

A “Rede Liberdade da Ciência”, formada por cerca de 700 cientistas preocupados com o crescente estreitamento do canal de manifestação de opiniões nas universidades alemãs, concedeu seu prêmio no ano corrente ao Prof. Kempen, para reconhecer dessarte seu múltiplo engajamento em prol da liberdade de espressão nas universidades. A criação da fundação faz parte desse engajamento. O tema da sua conferência solene por ocasião da outorga do prêmio na Academia Brandenburguense de Ciências em Berlim foi “O cancelamento da liberdade da ciência: como a universidade vivencia a sua própria mudança climática”.

Como já foi dito, a concessão do prêmio da “Fundação pela liberdade da ciência” ao Prof. Noam Chomsky coincidiu com os mandatos de Bernhard Kempen como presidente e Michael Hartmer como diretor executivo da DHV. É lícito afirmar que esse acontecimento marcou um início excelente do trabalho da fundação.

A nomeação do Prof. Julian Nida-Rümelin ao prêmio também coincidiu com os mandatos dos Profs. Kempen e Hartmer. Penso que essa também foi uma excelente opção.

Mas ainda antes da outorga do prêmio ocorreu uma troca completa da diretoria do DHV: Michael Hartmer aposentou-se e Bernhard Kempen não renovou sua candidatura à presidência, depois de completar vinte anos nessa função.

Eis que aconteceu em poucas semanas uma coisa fascinante, que nunca imaginara poder acontecer com a velha DHV, que nos 43 anos da minha filiação sempre se me afigurara uma instituição confiável, séria e honrada.

Se o presidente Kempen ainda dissera que a fundação era um “diamante” na DHV, a nova direção só careceu de pouco tempo para jogar esse “diamante” no ralo, jogar a fundação no lixo. Perdoe-me o leitor essas expressões, mas elas refletem em certa medida o que aconteceu e o estilo dos acontecimentos.

Como chegamos a esse ponto?

Naturalmente não recebi nenhuma informação sobre o que aconteceu nos bastidores. Imagino que as coisas tenham ocorrido da seguinte maneira:

O primeiro “ato de ofício” sob a nova presidência, que tive de realizar na minha função de mecenas e presidente do Conselho Curador, foi uma palestra por ocasião da outorga do prêmio ao Prof. Nida-Rümelin.

O público foi formado por membros da diretoria ampliada da DHV, imagino que por 20 a 25 pessoas, dentre as quais uma grande parcela de representantes das Ciências Naturais. Presente esteve também a então Secretária de Cultura do Estado Renânia do Norte-Vestfália.

O teor do discurso foi o seguinte:

Senhoras e Senhores,

A fundação “Liberdade da Ciência”, gerida pelo DHV enquanto entidade mantenedora, outorga o prêmio “Liberdade da Ciência” ao Prof. Julian Nida-Rümelin com fundamento em uma resolução unânime do seu Conselho Curador.

O Prof. Nida-Rümelin não é apenas um renomado filósofo, conhecido além da sua área de especialização, mas também conhecido do grande público na condição de pensador político e ex-Ministro de Estado.

Em nome do Conselho Curador, agradeço de coração ao senhor, caro Prof. Nida-Rümelin, por ter respondido espontânea e positivamente à nossa consulta.

Creio que o laureado anterior, o Prof. Noam Chomsky, tem um sucessor à sua altura.

A finalidade da fundação é a liberdade de expressão nas universidades.

Imagino que o senhor agora pergunte: liberdade de expressão nas universidades? Eis uma obviedade! Pois é mesmo, no plano teórico. Infelizmente a realidade é um pouco distinta.

Sobre a realidade atual o nosso ex-presidente, Prof. Kempen, disse há algum tempo em grande e amplamente lido artigo no diário Frankfurter Allgemeine Zeitung (FAZ) o que importa dizer. O título do artigo é “A universidade como zona de risco.” O subtítulo: “A tesoura do censor na cabeça de muitos cientistas avança cada vez mais, embora eles disponham da maior liberdade imaginável.”

Vale a pena reler esse artigo!

Nosso presidente recém-eleito, Prof. Lambert Koch, também se manifestou várias vezes no mesmo sentido, mais recentemente e já na condição de novo presidente da DHV, no periódico Forschung & Lehre [Pesquisa & Ensino].

Isso é motivo de grande alegria – mas isso também é, lastimo dizê-lo, uma necessidade urgente – e amarga.

Como já Kant e, mais tarde, seu admirador Schopenhauer, infelizmente o pequeno Reinhard Hesse não consegue ignorar de todo que a maior parte da humanidade é, para formulá-lo em termos grosseiros, mas cunhados pelo próprio Kant, demasiado indolente e covarde, para fazer uso do próprio entendimento.

Preferimos pensar e dizer o que todos dizem: sobretudo o que os donos do poder dizem, mais ainda, quando somos remunerados por eles.

Pois bem, Noam Chomsky e Julian Nida-Rümelin não pertencem a essa maioria, em que pesem suas peculiaridades e seus modos inconfundíveis de divergência.

O nosso laureado de hoje acaba de demonstrar isso nos últimos dias mais uma vez de modo impressionante em seu novo livro intitulado “A cultura do cancelamento como fim do esclarecimento? Por uma defesa do pensamento autônomo”, de maneira pertinente no tocante à finalidade da nossa fundação. O livro saiu em início de agosto na editora Piper, com a etiqueta “autor de livros mais vendidos da lista do semanário Der Spiegel

Ocorre que eu indicara o Prof. Nida-Rümelin já há mais tempo como candidato ao prêmio, pois tive a impressão de que ele com efeito é o único catedrático alemão de renome e além disso também com boas conexões na esfera política, que teve a coragem – e esse termo aqui realmente cabe – de professar uma opinião um pouco diferente da atualmente prescrita, assim, por exemplo, na questão da relação entre as organizações alemãs e russas de fomento à ciência.

De resto, o Prof. Nida-Rümelin publicou um livro igualmente sumamente interessante sobre as perspectivas possíveis depois do fim da guerra na Ucrânia. Felizmente não se trata de uma reprodução em escala 1:1 do que já ouvimos mil vezes, e essa é uma razão suficiente para recomendar-lhes a leitura.

O título reproduz o conteúdo: “Perspectivas depois da guerra na Ucrânia”.

A DHV é uma associação de cientistas. Por isso do nosso ponto de vista interessa em um primeiro momento naturalmente o que diz respeito às ciências e às suas organizações.

Será correta a suspensão da cooperação das grandes organizações da ciência na Alemanha com seus parceiros russos? Ou será que isso foi errado? Será que só existem duas alternativas mutuamente excludentes? Ou será que – se exercitarmos um pouco a imaginação – não existe uma terceira alternativa, no interstício entre as duas alternativas?

No passado, o Prof. Nida-Rümelin pronunciou-se repetidas vezes em público sobre essa questão e sustentou, como já disse, uma posição diferenciada, crítica.

Gostaria muito de saber – e espero que o nosso público também gostaria de saber – o que o nosso laureado tem a dizer sobre tais questões, a partir de uma perspectiva atual. Gostaria de saber isso, até para que cada um de nós possa formar o seu juízo e testar a sua validade, usando o ponto de vista do Prof. Nida-Rümelin como termo de comparação. Suspeito que a sua avaliação será mais repassada de experiência, mas ponderada, mais informada e mais diferenciada do que a minha.

O impulso inicial para a formação da minha opinião foi uma viagem a Königsberg, que fiz em setembro do ano retrasado, em setembro de 2022, com minha companheira, para visitar o túmulo de Kant junto à catedral e nessa ocasião também os vilarejos, pátria dos meus avôs maternos.

Resultou dessa viagem um artigo intitulado “Cancelar Kant? A filosofia e a ciência como continuação da guerra com outros meios?”, publicado no semanário “Weltwoche” de Zurique, tido como de direita, no jornal “Frankfurter Rundschau”, tido como de esquerda, e no site “Nachdenkseiten”, talvez caracterizável como uma publicação não limitada por visões de mundo e empenhada no combate a preconceitos. Recorro a esse texto como orientação nas reflexões a seguir.

Por ocasião da nossa visita ao túmulo de Kant, fizemos um pequeno desvio e passamos no Instituto Kant junto à “Universidade Báltica Immanuel Kant de Kaliningrad”, no intuito de registrar-nos no quinquenal congresso internacional sobre Kant em abril de 2024, quer dizer, por ocasião do tricentenário do nascimento do filósofo. Lá fomos informados que a Alemanha cancelara a sua participação nos preparativos, em reação à invasão russa da Ucrânia. Não havia comunicação com a Alemanha.

Confesso ter ficado consternado.

Perguntei aos meus botões: o que a filosofia de Kant tem a ver com o conflito na Ucrânia?

Mais ainda: como sentir-se-ão os filósofos russos, que rejeitam a atual política do seu país? Por que cortamos o contato com eles?

O encontro com as pessoas afetadas mostrou-me com clareza o significado dessa interrupção do contato.

Os contatos filosóficos com outros países também foram interrompidos, quando seus governos violaram o Direito Internacional Público?

Houve um boicote das universidades de Harvard e Yale, porque os EUA atacaram, contrariamente aos mandamentos do Direito Internacional Público, a Iugoslávia ou o Iraque (e vários outros países), vitimando centenas de milhares de civis?

Não seria mais razoável fazer logo agora o contrário – intensificar o contato, ampliar o intercâmbio, aprofundar o diálogo?

Será que a ciência é – para variar a conhecida frase de Clausewitz – uma espécie de continuação da guerra com outros meios?

A ciência desconhece “o lado adversário”, o “inimigo”. Conhece apenas parceiros de discussões. Estes podem ter opiniões divergentes e argumentar contra seus parceiros, mas quando argumentam uns contra os outros, reconhecem necessariamente seus interlocutores como iguais.

Não deveríamos opor essa “lógica da paz” à “lógica da guerra”?

Será que existe algo mais importante do que o diálogo, a busca conjunta da verdade e da via correta, que dá ouvidos aos argumentos contrários? E será que isso não vale justamente em tempos de guerra? Como pode invocar Kant quem se esquece disso?

Mas não apenas a Sociedade Kant alemã, também as grandes organizações da ciência na Alemanha consideraram acertado suspender o intercâmbio com seus parceiros russos. Seguiram assim a orientação das esferas política e midiática. Mudaram de opinião conforme o vento. Não saberia dizer se esses além disso agiram assim também por convicção.

Essa interrupção do contato acontece simplesmente, é simplesmente proclamada. Ponto final.

Depois não acontece… nada. A resistência articulada praticamente inexiste.

Como isso pôde acontecer?

Ora, não pode ser irrelevante, quando se desconsidera – e quero aqui ao menos externar essa convicção – o princípio mais elementar, não apenas da ciência, mas o princípio fundamental universalmente humano de toda e qualquer a vida civilizada, que consiste em FALAR COM AS OUTRAS PESSOAS.

Não estamos diante de uma miudeza, quando as pessoas são abertamente conclamadas a desconsiderar tal princípio!

Pois quando nos deixamos arrastar a essa suprema baixeza moral, a única consequência final acaba sendo a violência, a guerra. A interrupção do contato é então o primeiro passo nessa direção.

Explicaram ao meu avô socialdemocrata Heinrich Hesse que seria impróprio para um alemão cultivar relações com franceses. Quem faria isso, seria um francesinho degenerado [Französling]. Dito isso, enviaram-no contra a sua vontade ao front, para matar o maior número possível dessas pessoas, com os quais não fazia sentido falar.

O morticínio foi orquestrado de várias maneiras nos discursos altissonantes de intelectuais alemães de primeira grandeza (entre outros, Max Weber e Thomas Mann). A palavra de ordem era: nós alemães somos detentores da “cultura”, profunda por natureza; os franceses tem apenas a “civilização”

Explicaram ao meu pai Heinz Hesse, também socialdemocrata, que seria impróprio para um alemão cultivar relações com judeus. Quem faria isso, seria um judaizante [Jüdling]. Judeus seriam animais daninhos, parasitas, ratazanas. Depois enviaram-no contra a sua vontade a uma guerra de dimensões ainda maiores, nas quais um objetivo, e não o menos importante, foi matar o maior número possível dessas pessoas, com as quais não fazia sentido falar.

Também esse morticínio foi orquestrado de várias maneiras nos discursos altissonantes de intelectuais alemães de primeira grandeza (entre outros, Martin Heidegger e Carl Schmitt).

Agora dizem ao seu neto resp. filho – que, porém, já não mais é um socialdemocrata – que é impróprio para ele, um cientista alemão, manter contato com russos. Caso faça isso, seria um “Russlandversteher”[i] ou coisa parecida. Não se deve falar com essa gente.

Incrédulo, o neto de Heinrich e o filho de Heinz Hesse assiste à outorga do Prêmio em prol da Paz do Comércio Livreiro Alemão a uma pessoa, aplaudida de pé durante vários minutos no Salão de Festas da Associação do Comércio Livreiro Alemão – a uma pessoa, que entretém os leitores de seus textos com descobertas do tipo: os russos são animais, bárbaros, baratas, uma horda, criminosos, porcos, que deveriam assar no inferno; seu poeta nacional Alexander Puchkin (falecido em 1837 – nota minha, RH) seria culpado pelo nascimento de criminosos de guerra no seu país. “Sim, naturalmente ele é culpado. Todos são culpados”, escreve esse autor. (Fonte: semanário DIE ZEIT).

Suponhamos ou ao menos esperemos que esse indivíduo não recebeu o Prêmio em prol da Paz do Comércio Livreiro Alemão por sustentar tais opiniões. Repito e sublinho: o Prêmio em prol da paz!

Ocorre que ele recebeu o prêmio. E as pessoas aplaudem-no de pé.

Se eu, na condição de jovem – infelizmente russo – quiser estudar na Universidade de Constança, não poderei fazê-lo.

Por que não? Por que sou russo! No passado, isso era chamado Sippenhaft[ii], não é? No entanto, concedem-me a graça de ir à reitoria e pleitear, com sorte, uma licença excepcional, embora seja russo. A reitoria decide. Os critérios estão no âmbito da sua discricionariedade. No passado, isso não era chamado arbítrio? (Fonte: Resolução do Senado da Universidade de Constança de 3 de março de 2022).

Estudei nessa universidade e nela obtive o doutorado. Não me é nada fácil reportar esse fato.

O Reinhard Hesse, que lhes fala, já não mais pode ser enviado contra a sua vontade ao front por pessoas que defendem tais ideias, por ser velho demais e porque a Alemanha por enquanto dá preferência aos soldados ucranianos.

Mas naturalmente sou constrangido a ouvir a nova discurseira altissonante da nata da intelectualidade alemã.

Como ainda podemos levar-nos a sério enquanto cientistas, mais ainda, como seres humanos, se deixamos passar isso em brancas nuvens? Não sei como isso seria possível.

No meu entender, a interrupção do diálogo – não importa com quem – não é pouca coisa. Trata-se de uma questão de central importância, do cerne da nossa pretensão de sermos levados a sério, como cientistas bem como pessoas.

Não tenho conhecimento de outros países, que imitariam a Alemanha nesse terreno da interrupção das relações científicas. Quem de qualquer modo se recusa a aceitar a política de sanções provavelmente também não terá imposto sanções no campo da ciência. E essa é a maioria dos países do mundo, nos quais vive ao mesmo tempo a maioria avassaladora da população mundial.

Será que os outros Estados-membros da União Europeia, será que os outros países da OTAN também colocaram as suas relações científicas na geladeira?

Dificilmente consigo imaginar isso. De qualquer modo, os EUA estão continuando com toda a naturalidade a sua cooperação com a Rússia no âmbito do megaprojeto científico da pesquisa espacial.

Será que a Alemanha ao menos pode reclamar em seu benefício que as sanções científicas impostas resultam de modo mais ou menos cogente das sanções genéricas impostas pela União Europeia? Presumo que esse não é o caso. Presumo que os alemães uma vez mais estão agindo em conformidade com a palavra de ordem tão ingênua quanto arrogante: “Quem fará, se não nós?”

Criei em 2021 a nossa “Fundação pela Liberdade da Ciência”, uma entidade de utilidade pública, que fixou-se o objetivo de defender a liberdade da ciência contra, entre outras ameaças, a cultura do cancelamento, que hoje está ganhando cada vez mais adeptos.

E agora estão cancelando os cientistas de um país inteiro? O que nos ocorre a esse respeito? Vamos simplesmente mudar de assunto?

O primeiro laureado da fundação foi o Prof. Noam Chomsky, um linguista conhecido, crítico da política dominante – justamente também da cultura do cancelamento – e o cientista mais citado do mundo. A seu pedido, relatei-lhe sobre a minha viagem à Rússia, também sobre as minhas impressões das condições gerais do país e sobre como minha companheira (antes mais tendente ao medo) e eu fomos tratados pelos russos, mais especificamente e sem exceção, com cortesia, amabilidade e amiúde calor humano. E isso apesar da nossa Ministra das Relações Exteriores ter declarado como objetivo da política externa alemã “arruinar” a Rússia, tendo se queixado nesse contexto do que na sua opinião seria um sentimento incipiente de “cansaço diante da guerra”. O Prof. Chomsky leu a narrativa das minhas experiências na Rússia com interesse e viu nela a confirmação da sua própria avaliação: “Quite fascinating, and very different from the dominant hysterical Russophobia.”

De qualquer modo deverá ser realizada em uma universidade alemã uma jornada sobre a dimensão do conflito da Ucrânia e da sua pré-história, atinente ao Direito Internacional Público, para a qual também deverão ser convidados especialistas russos. Ao menos o Sr. Kempen anunciou isso. Com isso, os promotores do evento fariam o que é óbvio no nível da banalidade – não obstante a conversa fiada altissonante dos defensores da interrupção do diálogo.

“Audiatur et altera pars”, eis um ditado já cunhado pelos romanos na Antiguidade.

Um juiz, que não pergunta ao réu diante dele pelo que ele tem a dizer em sua própria defesa, não compreendeu o significado da justiça. Um catedrático, que quer excluir argumentos, não compreendeu o significado da ciência.

Segundo a minha impressão, o nosso presidente recém-eleito, o Prof. Lambert Koch, tem uma visão mais diferenciada das coisas do que a visão de muitos belicistas da ciência. No quinto fascículo da revista “Forschung & Lehre” do corrente ano ele afirma que a ciência remanesce autônoma, mas não pode subtrair-se às implicações políticas da sua prática, conforme se pode ser no distanciamento crescente de democracias ocidentais de autocracias como a Rússia ou a China. Matéria sobremaneira delicada seriam as cooperações científicas, que restringem a soberania tecnológica ou capacitam autocracias à perseguição de minorias, bem como os projetos dual use, que poderiam ter finalidades tanto civis quanto militares.

Por conseguinte, os cientistas deveriam, no tocante à pergunta pela defensabilidade de cooperações, recorrer a ofertas de consultoria política e científica, esta última fornecida pela comunidade científica.

O Prof. Koch defende a criação de “barreiras de segurança para acordos de cooperação, que possibilitam a cooperação, mas podem também afastar o risco de monopolizações e dependências indesejadas.”

Diferenças deveriam ser verbalizadas, violações da liberdade da ciência deveriam ser identificadas e condenadas. Onde a liberdade da ciência fosse pisoteada, cooperações deveriam ser encerradas. Nesse caso, a cooperação só poderia, quando muito, ser continuada no plano individual e pontualmente. Contatos pessoais poderiam levar à cegueira, mas conhecimentos aprofundados do interlocutor também criariam um clima de compreensão e confiança. Uma ciência livre poderia irradiar de modo positivo a sociedades fechadas, eis o argumento de Lambert Koch, que termina as suas explanações com a seguinte frase: “

Por isso uma ‘diplomacia da ciência’ [science diplomacy] adaptada a realidades da política externa remanesce importante e correta.”

‘Diplomacia da ciência’: a mim me parece que isso é bem diferente da interrupção do diálogo e da guerra. Não a interrupção do diálogo, mas, pelo contrário, a sua intensificação é o caminho, pelo qual pessoas civilizadas devem optar em situações de conflito, caso não queiram destruir a sua própria credibilidade.

Ocorre que de momento não se percebe nada disso no plano da assim chamada grande política.

“Quo vadis, Germania, para onde caminhas, Alemanha, na tua luta pelo bem?” Eis a pergunta do observador intimidado.

Uma resposta parece insinuar-se aqui: ela está contida na lógica dos defensores da interrupção do diálogo. Em vários jornais já se perguntou: “A Alemanha necessita de armas nucleares?” Recentissimamente li um outro artigo sobre esse tema no diário Frankfurter Allgemeine Zeitung.

Ao lê-lo, lembrei-me da conhecida caracterização dos alemães por Schopenhauer, que falou da “burrice exaltada dos alemães” [“überschwängliche Dummheit der Deutschen”].

Meu pai gostava de citar a velha sabedoria popular, segundo a qual os próprios deuses lutam debalde contra a burrice.

Tal afirmação provavelmente é correta.

Não obstante, devemos lutar – não apenas, por termos essa obrigação diante da nossa dignidade enquanto seres humanos, para expressar isso em linguagem kantiana, mas também para sustar na situação histórica concreta evoluções, que podem resultar em catástrofes.

Termino com uma evocação melancólica de tempos mais civilizados:

Qualquer russo culto conhece as “Cartas de um viajante russo” de Nikolai Karamsin. Karamsin viajou em 1789 e 1790 pela Alemanha, Suíça, França e Inglaterra, começando em Königsberg com uma visita a Kant e encerrando a viagem em Londres, de onde relata por ocasião da sua visita a Real Sociedade de Ciências o seguinte episódio:

“Fomos [Karamsin – RH] introduzidos na Sociedade por um dos seus membros ingleses. Estávamos na companhia de um jovem barão sueco, um rapaz com muitos talentos e boas maneiras. Quando entramos na sala de reuniões, ele me deu a mão e disse com um sorriso: “Meu senhor, aqui somos amigos [a Rússia e a Suécia estavam então em guerra – RH]. O templo das ciências é um templo da paz.” Sorri e nos abraçamos fraternalmente. Meu acompanhante inglês exclamou: “Bravo! Bravo!”

Os outros ingleses fitaram-nos com espanto, pois na Inglaterra homens não costumam abraçar-se…

Eles não nos compreenderam. Não suspeitaram que demos um bom exemplo a duas nações inimigas, que talvez em breve será seguido por eles, por força de um efeito secreto da simpatia.”

“O templo da ciência é o templo da paz. Aqui somos amigos. Sorri e nos abraçamos fraternalmente”: essas frases deveriam ser bem lembradas pelos atuais amigos da continuação da guerra com os meios da ciência!

Caro Prof. Nida-Rümelin: fico feliz por ter aceito o nosso prêmio! Ele foi concebido como encorajamento de uma pessoa, que não nada conforme a correnteza e não deseja continuar nenhuma guerra com quaisquer meios.

Kant disse: “A paz é uma obra-prima da razão.”

Mas a razão se concretiza em nada menos do que no diálogo argumentativo.

E a ciência não pode pretender ser séria, se não estiver disposta a escutar outras opiniões e examinar sem antecipação dos resultados os argumentos contidos nas outras opiniões.

Fico contente – e espero que fiquemos contentes – ao constatar que o senhor, caro Prof. Nida-Rümelin, sempre nos deu no passado novas oportunidades para testar em um exame de consciência se essa nossa pretensão de sermos pessoas sérias corresponde à verdade.

E espero que o senhor continue fazendo isso no futuro!

Senhoras e senhores, muito obrigado pela sua atenção e paciência!

Nunca imaginei que uma alocução como esta, que conclama ao diálogo, à diferenciação, à razão e ao equilíbrio, poderia motivar um escândalo, o fim de um contato, uma discórdia! Muito menos ainda entre pessoas com experiência na discussão, experiência de vida, pessoas adultas, que além disso atuam juntas em uma fundação criada para defender o postulado “Audiatur et altera pars”.

E não obstante tudo indica que esse foi o caso.

Presumo que houve entre os membros da diretoria ampliada da DHV algumas pessoas, para as quais as reflexões apresentadas foram demasiado diferenciadas, demasiado ponderadas, demasiado pouco pertinentes em uma situação, que aos seus olhos era inteiramente clara, na qual, aos seus olhos, a divisão entre bons (nós) e maus (os russos) era inteiramente clara.

Acresce talvez a presença da Secretária de Educação e Cultura do Estado Renânia-Vestfália, que talvez tenha aumentado ainda mais a sensibilidade e o nervosismo dos mencionados membros da DHV.

Além disso o presidente ainda estava muito pouco tempo no seu cargo, ainda não era suficientemente experiente e calejado; talvez tenha temido que o seu DHV fosse colocado num canto politicamente malquisto.

De qualquer modo, poucos dias depois da outorga do prêmio ocorreu uma reunião do Conselho Curador da fundação, na qual fiquei chocado ao ver o presidente iniciar a sessão sem palavras introdutórias com a acusação de que eu teria proferido uma alocução pró-russa e que ele teria constatado um dano à confiança como fundamento da cooperação com a fundação.

De qualquer modo tive a presença de espírito de interrompê-lo e dizer: “Não, de nenhum modo proferi uma alocução pró-russa, mas defendi a diferenciação e o diálogo, isso é algo bem diferente.”

Depois desse sinal inicial a sessão transcorreu em uma atmosfera tensa e não levou a nenhum resultado concreto.

Só algum tempo depois recebi a comunicação por escrito, em palavras secas e estilo lacônico, da nova gerente, Dra. Yvonne Dorf: término da condição de entidade mantenedora de parte da DHV, desligamento do site (pago por mim!). Fim da fundação. Ponto final. E tudo isso sem a alegação de razões.

Reagindo a esse acontecimento, aos meus olhos simplesmente inacreditável, escrevi ao presidente da DHV a carta reproduzida infra. (Não reproduzi as seções da carta, que dizem respeito aos trâmites jurídico-organizacionais necessários para a retirada da fundação, bem como uma digressão sobre os meus engajamentos políticos anteriores.)

Prezado Prof. Koch.

Em 8 de novembro recebi da Sra. Dorf uma carta por e-mail, que suponho tenha sido enviada à V. Sa. em cópia e na qual ela me informa surpreendentemente o término da hospedagem da fundação “Liberdade da Ciência” no DHV na condição de entidade mantenedora da fundação.

Não quero esconder-lhe que teria preferido receber essa carta de V. Sa. – do presidente eleito – também porque a correspondência inicial, que preparou a criação da fundação junto ao DHV, foi feita entre o criador da fundação e o presidente do DHV.

Tomei conhecimento da carta com sentimentos mistos. Por um lado, com desgosto. Por outro, com alívio. O motivo do desgosto é a constatação de que a grande esperança, por mim depositada na DHV, revelou ser ilusória.

Bem, a vida continua e confio que depois do recuo informado pela Sra. Dorf – sobre cujas razões ela silenciou, misteriosamente – conseguirei expressar, em público, de maneira adequada e em caráter permanente o interesse e objetivo da fundação, que me parecem remanescer irrenunciáveis.

Tudo indica que os professores retirantes Kempen e Hartmer colocaram uma bomba na DHV – embora se trate, bem-vistas as coisas, ao mesmo tempo de uma bombinha muito inofensiva!

Afinal de contas, o interesse central da fundação resume-se apenas a lembrar a obviedade em qualquer civilização, que mereça esse nome, do velho princípio jurídico da Roma republicana: “Audiatur et altera pars”. A rigor, nada mais do que isso.

Para os Profs. Kempen e Hartmer tal obviedade era indubitável e sua defesa contra essa espécie de recusa da argumentação e do diálogo, hoje denominada “cultura do cancelamento”, um imperativo da hora.

Conforme o Prof. Kempen registrou ocasionalmente em F&L, reagindo a casos concretos, ele obviamente estaria disposto a discutir com a “altera pars”, mesmo se esta fosse, por exemplo, formada por deputados federais do partido AfD [Alternativa para a Alemanha].

Como o AfD é tratado na maioria dos meios de comunicação como a encarnação real do deus-nos-acuda, tal declaração foi um sinal de grande coragem da parte dele, que me fez admirá-lo.

Na noite da sua despedida da DGV, o Sr. Kempen me disse que via a “Fundação liberdade da ciência” como um diamante na DHV.

Isso foi há poucos meses apenas. Mais uma vez vemos quão rapidamente tudo pode mudar! Os novos funcionários jogam o “diamante” no ralo.

Escrevi acima que tomei conhecimento do fim da condição da DHV como entidade mantenedora da fundação não apenas com desgosto, mas também com alívio.

Com alívio sobretudo, porque vi-me forçado a admitir que, no tocante a um aspecto de central importância para a fundação – para dizê-lo em termos mais precisos, no tocante ao aspecto central para o sucesso do trabalho da fundação –, a entidade mantenedora de qualquer modo não se atém nem à letra nem ao espírito dos estatutos da fundação!

No meu entendimento, conseguir que um personagem mundialmente conhecido e reconhecido pela sua luta em prol da liberdade da expressão, como Noam Chomsky, o cientista mais citado do mundo, aceitasse o prêmio, é expressão de um êxito grandioso – um êxito difícil de ser superado. Os Profs. Kempen e Hartmer também partilharam essa visão.

Julian Nida-Rümelin, o segundo laureado, por mim proposto e convencido a aceitar o prêmio, sem dúvida é uma personalidade de destaque.

Em F&L não há uma linha sequer sobre as duas premiações!

Isso não contradiz apenas o espírito, mas, repito, a letra dos estatutos, para cuja observância a entidade mantenedora comprometeu-se em 20 de abril de 2021 por meio de uma assinatura reconhecida em cartório!

Pois bem, o que dizer disso?

Ao que tudo indica, a DHV não leva tão a sério os antigos romanos e seus adágios esquisitos. Não liga para “pacta sunt servanda”, tampouco para “audiatur et altera pars”!

Num quartinho dos fundos da casa decide-se encerrar o status de entidade mantenedora da fundação, dedicada a essa ideia orientadora, “audiatur et altera pars”. Simples assim!

A acusação é feita; a sessão, iniciada; a sentença, proferida. Depois o delinquente é citado. Simples assim!

O site (por mim pago) da fundação na internet é extinto. Simples assim! Razões não são mencionadas.

Uma consulta, uma informação, uma oitiva do instituidor da fundação não ocorrem.

O instituidor da fundação contra a cultura do cancelamento é cancelado!

E de cambulhada, o status da DHV como entidade mantenedora (da fundação)!

Que maravilha!

Isso é escandaloso e triste.

Mas é também muito engraçado! Podemos imaginar um modo mais grotesco de alguém se levar ad absurdum?

Quando Karl-Otto Apel, meu mestre em filosofia, recusou-se na condição de soldado do exército nazista a participar do fuzilamento de desertores soviéticos, foi ouvido pelo oficial responsável (e depois deixado em paz).

Chegou a ser ouvido! Isso causa espanto.

Será que algum dia me concederão a gentileza de enviar uma fundamentação por escrito?

O que é tão misterioso nessa fundamentação? Por que ela deve temer a luz da esfera pública?

Uma fundamentação transparente, enviada por escrito, é, ao menos deveríamos pensar assim, uma questão de civilidade, de boas maneiras, de justiça e decência.

Mas é claro que tais convenções também podem ser ignoradas. E daí?

(Obs.: Entrementes recebi uma minuta da DHV para o texto do contrato, datada de 19 de dezembro de 2023. A finalidade desse contrato é dar uma forma jurídica à dissolução forçada da fundação. E essa minuta prevê com efeito um “acordo de silêncio recíproco sobre o ocorrido”:

“As partes obrigam-se reciprocamente a guardar silêncio sobre as razões da celebração desse acordo de dissolução, nenhuma das partes se manifestando sobre a outra parte em público de modo a lhe causar danos à imagem ou externando quaisquer outras opiniões desabonadoras.”)

Será que a minha argumentação em Düsseldorf perante a diretoria ampliada da DHV, contra o cancelamento generalizado da ciência russa, será que esse meu apelo à diferenciação se coaduna tão pouco com o clima belicista intencionalmente criado nos dias atuais, que, na falta de argumentos contrários, a única reação que vem à mente acaba sendo o defenestramento sem discussão e comentários prévios, o chute na bunda?

Isso seria duplamente grotesco, pois também o senhor, prezado Prof. Koch, defendeu em F&L a mesma posição, se é que eu ainda entendo bem a língua alemã. No meu discurso em Düsseldorf, reportei-me ao senhor, citei-o extensamente!

Mas se em Düsseldorf eu me reportei com razão ao senhor, coloca-se a pergunta pelo valor, que a sua palavra ainda tem na DHV.

Será que me concederá a gentileza de ouvir uma manifestação sua a esse respeito?

Apesar do despacho burocrático vertiginoso, do qual fui objeto e que considero triste no tocante à política do ensino superior, vergonhoso no tocante à dimensão jurídica e simplesmente muito ruim no tocante ao trato com seres humanos, não quero me posicionar nessa carta de despedida em termos apenas críticos e tampouco apenas a partir da minha perspectiva.

Mesmo o senhor, mesmo os membros da entidade mantenedora, decerto tiveram alguma ideia, que se lhes afigurou razão suficiente para o tratamento dispensado a minha fundação.

Faço votos que o senhor reconheça, como proferidas com seriedade e empenhadas em compreender, algumas reflexões, que se me impuseram nos últimos dois anos. Elas dizem respeito à discrepância estrutural entre o objetivo da fundação e o objetivo da DHV.

O objetivo da fundação é de natureza política – decerto não à primeira vista, mas com certeza depois de um olhar mais detido e sobretudo, quando, de modo coerente, levamos esse objetivo a sério. Em correspondência a esse fato os dois primeiros laureados foram homens políticos: isso vale de modo inequivocamente pronunciado para Noam Chomsky, visto por muitas pessoas nos EUA como uma espécie de inimigo público, e também para Julian Nida-Rümelin, que, à guisa de exemplo, não concorda acriticamente com a política científica alemã diante da Rússia e manifestou reservas no tocante ao cancelamento generalizado dos contatos com a ciência russa – o que foi a razão principal de eu tê-lo proposto como segundo laureado da fundação.

A  DHV, porém, em última instância não se concebe como uma associação com fins políticos (esse foi mais o caso durante os mandatos de presidentes anteriores, como, por exemplo, Hartmut Schiedermair), mas como um “órgão representante da classe profissional” dos cientistas   – o que, por exemplo, deve significar que ela ajude seus membros, diante de transformações das condições do quadro geral jurídico, a avançar melhor na carreira profissional. Isso certamente é correto, mas não necessariamente é também uma postura política.

Se a DHV começasse a se perceber como associação política e se engajar correspondentemente, expor-se-ia às forças centrífugas do conflito entre as opiniões políticas divergentes e do entrechoque dos interesses políticos   – o que lhe descortinaria com efeito a perspectiva de uma ameaça potencial da sua sobrevivência.

Capacidades altamente desenvolvidas de liderança, uma faculdade sutil de ajuizamento da situação política e muita coragem seriam necessárias, para que a frágil nau da DHV pudesse contornar as rochas à flor das águas revoltas, conservando a bordo a tripulação e os passageiros.

Personalidades do calibre de Franz Josef Strauss, Helmut Kohl ou Helmut Schmidt quiçá teriam solucionado esse problema com o dedo mindinho da mão esquerda. Hartmut Schiedermair viu nisso algo comparável com uma tarefa da vida inteira. E Bernhard Kempen logrou juntamente com Michael Hartmer durante vinte anos manter a nau em condições de navegar e com as bandeiras no topo dos mastros – eis um feito digno de consideração!

De qualquer modo, não posso levar a mal a ninguém no plano pessoal, se ele não quer seguir esse caminho, e digo isso a partir da minha simples perspectiva de observador e membro (sou membro da DHV desde o dia 8 de fevereiro de 1980, quando Werner Pöls foi o presidente e Gerth Dorff o diretor executivo).

Apesar disso, é uma pena que seja assim, e isso não é um bom sinal para a cultura política nesse país.

[…]

Saudações atenciosas

Reinhard Hesse

Infelizmente a reação do presidente a essa carta não é motivo para supor que ele agora finalmente esteja disposto a prestar o devido respeito à máxima da Roma republicana, “audiatur et altera pars”.

Eis o que escreve: “Nessa minha resposta, não desejo entrar no mérito de alguns dos seus argumentos individuais e no mérito de acusações em parte claramente não-pertinentes. Não obstante, estou interessado em constatar de modo inequívoco que a DHV continuará sendo política, e isso sobretudo sempre em situações, nas quais isso se afigure necessário no interesse da defesa de valores liberais da constituição da nossa sociedade.”

De qualquer modo, tudo indica que, aos olhos do presidente da DHV, a máxima mencionada   – ao mesmo tempo premissa fundamental de toda e qualquer ciência   – não integra esses “valores fundamentais liberais”, invocados no plano da retórica, pois ele nem quer entrar no mérito dos argumentos apresentados.

Felizmente o presidente da DHV também não mais precisa ocupar-se com a acusação de violação contratual, já que de qualquer modo decidiu não escutar e também não entrar no mérito de nenhum argumento contrário. Basta qualificar em termos genéricos e da posição presumidamente mais elevada essas acusações como “não-pertinentes”.

Mas o que resta, quando a gente não quer entrar no mérito de nenhum argumento da parte contrária? Resta a fórmula passepartout, de que “as expectativas no tocante a assuntos essenciais de administração e organização [teriam] divergido cada vez mais”   – uma fórmula, que dá margem à suspeita de querer esconder a verdadeira motivação, uma vez que nem é mencionada explicitamente como razão do encerramento do status de entidade mantenedora. Se a intenção foi essa remanesce em aberto.

Remanesce igualmente em aberto o que isso quer dizer concretamente.

Se a “expectativa no tocante à administração” se refere à minha expectativa de que despesas, com as quais devo arcar mais tarde, sejam discutidas antes comigo, até por uma questão de justiça, então a formulação é correta, mas provavelmente não se presta seriamente como razão do encerramento do status de entidade mantenedora.

Se a “expectativa no tocante à organização” se refere à minha confiança em que a DHV cumpriria a sua obrigação contratual, definida com clareza em vários parágrafos dos estatutos da fundação e autenticada em escritura pública, mais especificamente, a obrigação de relatar, com a eficácia possível na esfera pública, em Forschung & Lehre sobre as respectivas outorgas do prêmio ou conceder a palavra aos próprios premiados em artigos de sua autoria… bem, nesse caso a formulação também é correta, mas volta-se (enquanto acusação de violação contratual) contra a própria DHV.

Até aqui sobre o triste fim de uma empreitada iniciada com muita esperança.

Qual é a lição, que podemos extrair de tudo isso?

Quero deixar a decisão ao próprio leitor.

De minha parte, aprendi o seguinte: só Deus sabe se “audiatur et altera pars” vale ou não; e só Deus sabe se “pacta sunt servanda” vale ou não.

Para mim as experiências descritas não têm relevância apenas com vistas à pergunta pela verdadeira identidade da (atual) DHV; elas também me parecem significar um pouco mais, pois inserem-se em experiências com o afundamento semelhante de padrões de qualidade em outras áreas da vida social e política dos nossos dias.

Se fosse apenas a DHV, que em caso de necessidade não dá a mínima atenção a tais regras fundamentais, talvez pudéssemos, como se costuma dizer, “passar à ordem do dia”.

Mas não é apenas a DHV que em caso de necessidade não liga minimamente a tais regras. O mesmo vale para as grandes instituições políticas, o próprio governo alemão, a União Europeia, o Banco Central Europeu e outras instituições, que sempre ignoram regras jurídicas e obrigações contratuais, quando estas não lhes agradam.

Autores sérios como Hans Herbert von Arnim, Andreas von Bülow, Karl Albrecht Schachtschneider e outros já mostraram isso com base em numerosos exemplos.

No fim remanesce a pergunta inquietante: como explicar isso, se não como sinal de uma decadência cultural?

Nesse mosaico geral, as circunstâncias do fim da fundação “Liberdade da Ciência” são apenas uma pedrinha.

P.S. Será que não avalio a situação em termos demasiado pessimistas?

Afinal de contas, entrementes ocorreu algo muito bom: ciente do supradescrito destino da minha empreitada, uma grande fundação, dirigida por cientistas de renome internacional, declarou-se espontaneamente disposta a ocupar o lugar da DHV e assumir a função desta, para que a causa em jogo (i. é, a defesa do direito de pessoas divergentes à expressão e fundamentação públicas da sua opinião) continue presente na consciência pública e lembrada por essa via enquanto obviedade, que ela é.

*Reinhard Hesse é professor de filosofia na University of Education de Freiburg.

Tradução: Peter Naumann.

Nota


[i]Literalmente: uma pessoa que compreende a Rússia. O qualificativo idiota, monstruoso também do ponto de vista estilístico, é amplamente usado na Alemanha atual e passou a integrar o vocabulário da comunicação cotidiana, como a palavra “Putinversteher” (= uma pessoa que compreende Vladimir Putin). [Nota do Tradutor]

[ii]Termo do direito germânico antigo, designativo da responsabilidade da família ou dos parentes pela conduta de um membro perseguido. A prática, inadmissível em um Estado de Direito, foi usada durante o nazismo. [Nota do Tradutor]


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