O Ocidente contra a Rússia – hoje e sempre

Moscou / Imagem de Dmitry Trepolsky
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Por MÁRIO MAESTRI*

Ao tratar da “Guerra da Ucrânia”, o pensamento único estende sua densa obscuridade sobre o mundo dito Ocidental

Talvez jamais, como atualmente, ao tratar a “Guerra da Ucrânia”, o pensamento único tenha estendido sua densa obscuridade sobre o mundo dito Ocidental. A explicação dominante é simples – a invasão da Ucrânia foi operação imperialista de conquista territorial, dirigida por Vladimir, o neo-czar sanguinário, a serviço do eterno despotismo russo. Portanto, o “mundo livre” encontra-se na obrigação inarredável de apoiar, em forma incondicional, a nação agredida, até a derrota total da ofensiva dos invasores eslavos e a restituição do último centímetro do território ocupado.

Os governos imperialistas que apoiam a campanha contra a Rússia na Ucrânia, com o sangue na boca, prosseguem nessa narrativa, ainda que, agora, com decrescente empáfia, pois já conscientes da quase certa vitória inexorável da Federação Russa, talvez já nos próximos meses. Metamorfose no discurso acelerado pela necessidade de apoiar e construir uma idêntica narrativa em defesa do Estado e do governo de Israel, que prometem aplicar em Gaza a “Solução Final” tentada contra a população judaica europeia na II Guerra Mundial.

Na Europa, nos EUA e em boa parte do chamado Ocidente, essa leitura unilateral, martelada à exaustão, é abraçada passivamente, por enorme parte de uma população mantida há décadas na alienação política e objeto de uma já longa campanha russofóbica. Não raro, mesmo boa parte dos europeus aderiu inicialmente a essa apologia sem conhecer os rudimentos da história recente da Ucrânia e da Rússia. Mesmo votando uma ampla desconfiança e desprezo aos imigrantes ucranianos chegados antes do conflito.

Na Europa, os grandes meios de comunicação; os partidos políticos de direita, de centro e de esquerda; as instituições internacionais; a imensa maioria dos intelectuais, etc. publicitam relatos e interpretações monocórdias sobre a bondade da ofensiva da Otan-USA, na Ucrânia, demonizando a Federação Russa e o capeta-mor, Vladimir Putin. E, se “na guerra, a mentira é como terra”, na construção dessa certeza monolítica, promove-se, quotidianamente, não apenas ininterruptas distorções dos acontecimentos, como a literal invenção dos mesmos.

O fantasma de Kiev

Nos primeiro dias do confronto, a legenda do piloto ucraniano sem nome, “O fantasma de Kiev”, que, no seu MIG-29, em apenas trinta horas, teria derrubado seis aviões russos e, nos dias seguintes, 36 outros, percorreu o mundo, ilustrada … com cenas de combate aéreos de jogos virtuais. [Zero Hora, 25/02/2022.] Ele jamais existiu. Até recentemente, se anunciava em forma unânime o exército russo com a munição, tanques, mísseis, tropas, a economia, etc. esgotados, à beira da dissolução. Não há limite e pudor no esforço de manter o apoio multimilionário à Ucrânia de V. Zelensky e do imperialismo, por parte de uma população europeia que conhece ataque estrutural das suas condições de vida, sobretudo devido a uma violenta inflação, sem recuperação do valor dos salários. Ofensiva anti-social explicada como devida à guerra da qual dependeria a sorte da civilização ocidental. Na antiga Europa do bem-estar social, a pobreza, ainda relativa, se espraia em forma espantosa.

Em comportamento sancionado pelo Parlamento Europeu, de rasgos autoritários e racistas, não se atacou apenas a ação e os exércitos do “sátrapa Putin”. Todo tipo de assédio foi lançado contra a população russa, proibindo-se intercâmbios universitários, a apresentação na União Europeia de esportistas, de artistas, de peças teatrais, de música russa. Os turistas russos não podem ingressar de automóvel, com bens pessoais, etc., em países europeus que mantém relações diplomáticas com a Federação.

E, sobretudo, para impedir qualquer fresta na construção dessa campanha, se anatematiza sem dó intelectuais, jornalistas, artistas, etc. que se afastam minimamente desse consenso construído a golpes de facão. São execrados mesmo os que apenas propõem uma discussão que leve a um melhor entendimento da complexidade dos fatos. Professores que divergem do consenso são olhados como extremistas nas escolas e nas universidades. Os poucos dissidentes convidados a se pronunciarem nos meios de comunicação são cuidadosamente assediados pelos entrevistadores e cercados por detratores.

V, o vampiro do Kremlin

Nas grandes livrarias europeias abundam estudos de divulgação e livros acadêmicos apresentando, de diversos ângulos, a enorme influência patológica de Vladimir Putin. Ele é descrito como o responsável pela dita campanha de expansão territorial e imperialista do despotismo russo que ameaça agora a Europa. E, não poucos sugerem, talvez, ela se prepara para engolir a civilização ocidental, de braços dados com a China.

Somos obrigados a peneirar a produção livresca para encontrar algumas publicações que empreendam análise minimamente desapaixonada ou informativas da atual questão “russa”. Fiz isso, em meados do presente ano, sem resultados, na Bélgica, em Portugal, na Itália, na França. Mas sempre há exceções. Entre os raros livros e opúsculos não apologéticos que encontrei publicados naqueles países, se destaca o de Aleksej Puskov, intelectual e alto funcionário russo, nos tempos da URSS e nos atuais, autor de De Gorbachev a Putin: geopolítica da Russia.

Fiquei surpreso ao me deparar com o livro. Como foi possível que uma publicação comercial, bem editada, tivesse escapado do Index Librorum Prohibitorum a que a editoria italiana também se auto-impôs? Apesar dessa última ter primado pelo pluralismo, em um passado que se distancia. Nos anos 1970 e 1980, publicavam-se na Itália obras de historiadores, economistas, etc. da Rússia e do Leste Europeu excelentes. Hoje, nem falar. Mas logo compreendi que a escolha desse trabalho informativo e sua pronta tradução e lançamento, em 2022, não fora obra do acaso.

A publicação De Gorbacev a Putin: Geopolítica da Rússia deve-se a uma iniciativa da Sandro Teti Editore, de Roma. Uma casa editorial com história singular. Em 1945, enquanto se travavam ainda os últimos combates pela libertação da Itália, o então poderoso Partido Comunista Italiano lançou uma revista mensal, para trabalhadores e populares, que sobrevive até hoje, Il Calendario del Popolo – sobretudo no mundo camponês eram muito comum o consumo de calendários, lunários, etc. O Calendário do Povo destinava-se a iluminar e afastar as sombras que haviam coberto as narrativas sobre a história, a cultura, a Itália, a Europa e o mundo durante o vintênio fascista.

Um militante fiel

Apesar do enorme sucesso de público, o PCI terminou se desinteressando pela revista e entregou-a, em 1964, a um seu militante, Nicola Teti, que fundou a editora homônima, responsável também pela publicação de importantes e cultas enciclopédias. Sob a nova administração, a revista seguiu abordando, com maior abertura, os sucessos da URSS, do mundo dito socialista, da America Latina, da cultura popular etc.

Com o passar dos anos, Nicola Teti fez das tripas, coração, para manter a revista, sob a concorrência de publicações idênticas comerciais de grandes e ricas casas editoriais. Nos anos 1980, quando trabalhava em Milão como correspondente internacional, o historiador e companheiro Tiziano Tussi me apresentou a Nicola Teti, em sua editora. Por algum tempo, publiquei alguns artigos para a revista que era já uma pálida lembrança do passado, sobre a escravidão colonial, a história do Brasil, entre outros temas. Tudo benevolamente, é claro.

Em 2010, com a morte de Nicola, seu filho, Sandro assumiu a direção da editora e fundou a Sandro Teti Editore que manteve, certamente como homenagem ao passado e ao esforço de seu pai, uma edição trimestral do Calendário, renovada. A pequena casa comercial, modernizada, especializou-se na publicação de livros sobre a história, o teatro, a literatura, a fotografia e a Rússia e os países ditos pós-socialistas.

A publicação Da Gorbacev a Putin: Geopolítica da Russia, de Aleksej Puskov foi acolhida na coleção “História”, da Sandro Teti Editore, sob a responsabilidade de Luciano Canfora, conhecido e erudito historiador marxista da Antiguidade, com inúmeras obras traduzidas e publicadas no Brasil. Desculpem-me os leitores este desvio do tema a ser abordado, para lembrar e homenagear Nicola Teti que, podemos dizer, não apenas em forma metafórica, plantou as sementes que nos permitem hoje ler o oportuno livro de Aleksej Puskov, em italiano, já que, em russo, ao menos no meu caso, é totalmente impossível.

Um prefácio precioso

Comentaremos o livro de Aleksej Puskov em uma outra oportunidade. Agora, me limitarei a abordar o belíssimo prefácio de Paolo De Nardis, “A Rússia e o Ocidente”. Esse conhecido acadêmico italiano, mais do que comentar, com a ajuda da lupa analítica do sociólogo, o livro de Aleksej Puskov, serviu-se, de uma espécie de binóculo crítico, para perscrutar telegraficamente as relações históricas da Rússia com o imperialismo europeu. Um desvio mais do que oportuno.

Paolo De Nardis abre seu breve texto introdutório recordando Arnold Joseph Toynbee (1889-19975), erudito historiador britânico, autor de Um estudo da história, trabalho monumental, em doze volumes, sobre o devir civilizacional. Ainda jovem, quando da I Guerra Mundial, após estudar história e lecionar em instituições acadêmicas inglesas, Toynbee integrou o serviço de inteligência britânico, participando da conferência de Paris, em 1919, que originou o Tratado de Versaille, com imposições draconianas às nações imperialistas derrotadas, com destaque para a Alemanha.

Após o grande conflito, Toynbee voltou à atividade acadêmica, da qual se afastou para comentar a guerra greco-turca, de 1919-1922, como correspondente internacional do jornal britânico The Manchester Guardian. Aquele conflito se seguiu ao esfacelamento do Império Otomano, derrotado no conflito, que teve parte substancial de seus territórios repartidos entre a França, o Reino Unido, a Grécia e a Rússia.

A simpatia inicial, de Toynbee, para com os gregos, transferiu-se, a seguir, para os turcos, que travaram uma dura luta pela unidade e independência nacional, sob a direção de Mustafa Kemal, contra o imperialismo europeu, interessado na balcanização da Turquia. Toynbee tornou-se um grande admirador do líder turco, que dirigiu a resistência militar vitoriosa e, a seguir, a modernização da Turquia, sendo, por isso, tratado como Atatuk – “Pai da Turquia”.

Bolchevique em defesa da Turquia

Paolo De Nardis lembra que a luta pela defesa da unidade nacional turca, contra a ofensiva imperialista, foi apoiada, em 1919, em forma quase isolada, pela Rússia revolucionária, prá lá de cambaleante, quando ingressava na destrutiva Guerra Civil (1919-1923). O que, é bom lembrar, registra a preocupação do Partido Bolchevique com a solução dos processos e confrontos nacionais e internacionais, com destaque para a defesa da autonomia nacional agredida. Realidade vista como uma determinação, não imediata, da luta de classes e do choque determinante entre proletários e burgueses.

Toynbee prosseguiu sua produção historiográfica e atividades acadêmicas e públicas, como destacado e insuspeito súdito da Coroa Britânica. Em 1952, foi convidado a proferir conferências na BBC, rádio pública inglesa, escolhendo tema que entrou em forte fricção com o então “pensamento único” imperialista britânico e ocidental, ainda que, no essencial, o historiador inglês o criticava para melhor o defender.

O título escolhido para as conferências foi preciso e sintético: “O Mundo e o Ocidente”. E, nesse caso, a ordem dos fatores alterava, sim, e muito, o produto. Toynbee defendeu que o mundo fora golpeado e conformado duramente pelo Ocidente, e não este por aquele. E isso, através de uma ação-pressão militar incessante, sem intenções civilizadoras, como propunha a visão apologética do imperialismo. “Não é o Ocidente que tem sido atacado pelo mundo, é o mundo que tem sido atacado — e atacado com violência — pelo Ocidente.” [TOYNBEE, 1955: 10]

Segundo ele, escassas regiões da terra haviam escapado a esse processo avassalador, que, quando muito, introduziu-as, aos trancos e barrancos, a uma “modernidade” perneta. A América Latina, a África, a Índia, a China e por aí sofreram as sequelas desse assalto mundial, por parte de um expansionismo europeu consciente de seu poderio, sedento de mercados, matérias-primas, mão de obra dos países não civilizados a serem escorchados. [TOYNBEE, 1955: 11 e 12.]

O pai da Turquia moderna

A intelectualidade britânica e imperialista torceram o nariz quando Toynbee propôs que a Turquia teria mantido sua independência nacional sobretudo devido à obra de Mustafá Kermal Ataturk. Ele teria iniciado uma modernização-ocidentalização radical do país, realizando, de certa forma, parcialmente, a revolução democrático-burguesa turca, de cima para baixo, para fazer frente à expansão avassaladora do imperialismo. A Turquia de Mustafá Ataturk tornou-se uma República, adotou uma Constituição [1921], promoveu a “emancipação das mulheres, a desoficialização da religião islâmica, e a substituição do alfabeto arábico pelo latino […].” [TOYNBEE, 1955: p. 42-43.]

A leitura de Toynbee certamente ilumina algumas das raízes da má vontade atual dos senhores da União Europeia para com a Turquia, que sempre foi vista como espaço a ser colonizado, e não como nação com o direito de sentar-se à mesa das grandes nações europeias colonizadoras. Isso, apesar de já ter força para respaldar essa reivindicação, sobretudo na atual recomposição da ordem mundial das nações.

Muito mais grave foi a leitura do intelectual inglês sobre a história da Rússia, proferida nas conferências de 1952, quando enfurecia a agressão imperialista contra a guerra de libertação da República Popular da Coreia, apoiada pela Rússia e pela China. Ela motivou fortes ataques dos intelectuais de plantão a serviço do imperialismo inglês e seus associados.

Toynbee apresentou a conformação político-institucional russa como o resultado da resistência vitoriosa a sucessivos ataques europeus, com destaque para as grandes invasões polonesas, em 1610; sueca, em 1709; francesa, em 1812; alemã, em 1914 e, sobretudo, nazista, em 1941. [TOYNBEE, 1955: 16 et passim]. O acadêmico inglês propôs que, sob tamanha pressão, para defender sua autonomia nacional, a Rússia teria sido obrigada a assumir uma conformação estatal centralista-autocrática.

Autocracia ocidentalizante

Sobretudo, a ameaça à existência nacional da Rússia nascia de sua incapacidade inicial de sua organização feudal de ceder lugar à modernidade, realizando sua revolução burguesa, sobre a qual se construía a hegemonia mundial da Europa Ocidental. Pedro, o Grande, sem realizar transformações radicais, empreendera a reforma autocrática ocidentalizante mínima que teria garantido à Rússia não explodir sob as agressões do expansionismo europeu. [TOYNBEE, 1955: 19]

Toynbee via no comunismo uma doutrina ocidental, da qual se serviram os bolcheviques contra o Ocidente. A URSS se sucedera ao Império Tzarista como poderosa barreira ao expansionismo do imperialismo europeu para o Oriente. Centrando fortemente sua análise na visão do papel histórico de líderes providenciais, propôs J. Stalin como promotor de uma modernização acelerada da União Soviética, em vista de um confronto militar próximo.

A visão de mundo de Toynbee impedia-lhe de compreender a revolução econômica e tecnológica da URSS como produto da nacionalização e do planejamento da economia e do esforço das classes trabalhadoras soviéticas. Avanços realizados apesar dos desmandos terríveis ensejados pela burocracia stalinista e pós-stalinistas, que haviam expropriado os trabalhadores da direção do Estado Soviético.

As conferência foram editadas, em 1953, no livro The Word and the West, traduzido prontamente ao português e lançado pela Companhia Editora Nacional, em 1955. [TOYNBEE, 1955.] Quatro anos após as conferência, Nikita Kruschev denunciaria os crimes de Stalin, na tentativa de reconstruir uma nova virgindade para a burocracia da URSS, que participara ativamente do descalabro da chamada Era Stalinista, tendo como bode expiatório único o “Pai dos Pobres”. Uma situação denunciada, havia muitos anos, pela esquerda não stalinista.

Espaço vital

A defesa-pastiche de Domenico Losurdo da ação deletéria de J. Stalin na URSS, para pretensamente prepará-la para a Guerra Mundial apoiou-se fortemente na visão de Toynbee, setenta anos após sua apresentação, sem registrar a dimensão de sua dependência a ela. “O curso tirânico de ocidentalização tecnológica empreendido por Stalin foi, finalmente, justificado, como o de Pedro, em prova a que foi submetido no campo de batalha.” [TOYNBEE, 1955: 21]

Em 22 de junho de 1941, a invasão da URSS pelos exércitos alemães, como parte da construção do “espaço vital” de que a Alemanha imperialista necessitaria, a ser construído através do arrasamento das populações e ocupação territorial da Eurásia, não foi uma invenção de Hitler e do nazismo. Foi o esforço de consecução do antigo projeto do imperialismo europeu, pelo capital monopólico alemão vestindo a farda nazista.

As razões do programa histórico do imperialismo europeu de colonização e balcanização da Rússia, relançado nos séculos 20 e 21, devem-se à sua riqueza de recursos naturais que faltavam e faltam a Europa, pesando duramente sobre a economia e, portanto, minando os esforços do Velho Mundo de manter seu anterior status hegemônico. No passado, na Eurásia, a Europa imperialista cobiçava as premissas das terras fertilíssimas e das multitudinárias populações daquelas regiões.

Mais recentemente, assumem destaque sobretudo as reservas de petróleo, de gás, de minérios de todo tipo, etc. Com a guerra na Ucrânia, os USA procuraram consolidar sua dominação sobre a União Europeia, em geral, e sobre a Alemanha, em especial, obrigando-as a romper com o fornecimento incessante sobretudo do gás e do petróleo chegados da Federação Russa a baixo preço. Sob a promessa de que, após a derrota na Ucrânia, a Rússia voltaria a se transformar, como durante a Era Yeltsin [1991-99], em um “negócio da China”.

Balcanização da Rússia

Foi proposta geral que a derrota militar da Rússia pusesse fim ao governo-regime de V. Putin, a origem e o fim de todos os males. Alguns analistas, com destaque para os ucranianos, verbalizaram impudicamente a verdadeira aposta do bloco imperialista USA-União Européia, ao anunciar as diversas nações em que a Federação Russa seria fatiada, após sua derrota militar. [PETRONI, 2020; KARAGANOV, 2020.] Não é, portanto, possível, tergiversar sobre os objetivos últimos da campanha atual contra a independência nacional russa.

Uma operação, que vem de longe, prevista em três etapas. A primeira foi concluída quanto da destruição da URSS, em 1991. A segunda, mais recente, se deu através do cerco da Federação Russa pelas tropas da OTAN, desde 1994, conheceu um salto de qualidade com o golpe de Estado pró-imperialista na Ucrânia de 2014. [MAESTRI, 19 abr. 2022; 17/07/2022.] A terceira etapa, já iniciada, previa igualmente três grandes movimentos, a serem realizados já no contexto do confronto indireto com a Rússia.

O primeiro movimento se daria com o isolamento diplomático e econômico internacional da Rússia, exigido, promovido e imposto pelo bloco imperialista ianque, ao igual do que se fez com o Iraque e a Iugoslávia. O segundo, lançaria a economia e a sociedade russa encurraladas em crise profunda, devido sobretudo às duríssimas sanções radicalizadas depois de fevereiros de 2022, com o início do conflito. A conclusão dessa ofensiva geral daria-se com a uma derrota militar cabal, em solo ucraniano, de um país dilacerado pelo isolamento e crise econômica. Derrotado e mergulhado na confusão, promoveria-se a explosão da Federação e a redução da Rússia a uma pequena nação súcubo do imperialismo. Tratava-se de campanha cuidadosamente planejada nos seus mínimos detalhes pelo Estados Unidos, pela Inglaterra, pela OTAN.

Não raro, na prática, a teoria entorta. O “mundo” não abandonou a Rússia, com destaque para a China, a Índia, a Turquia, a África e a América Latina. As sanções não atingiram como se esperava a Rússia e golpearam duramente a União Europeia, mais do que era previsto. A economia russa mostrou inesperada resiliência. Os exércitos ucranianos sustentados a peso de ouro pelo Ocidente patinaram e encontram-se, atualmente, exangues, à espera do inverno, o sempre temido general Russo.

E, piorando tudo, abriu-se grave e inesperado conflito na Palestina que, no mínimo, interrompe e fragiliza, até onde é difícil de prever, a reorganização do Oriente Médio pelo imperialismo estadunidense, em aliança com Israel. Uma operação avançada com sucesso relativo, nos últimos anos, pelo imperialismo, à exceção do Irã, da Síria e do Líbano. E, ao contrário do previsto e planejado, depois de mais de dois anos de guerra, manteve-se e cresceu o apoio popular a Putin na Federação Russa. O que não se pode dizer dos líderes belicistas ocidentais.

Joe Biden segue de tropeços em tropeços, abraçado agora em duas guerras eleitoralmente tóxicas. Os conservadores ingleses amargam um descrédito popular que se avoluma. Olaf Scholz espera resignado a guilhotina eleitoral enquanto a direita populista anti-globalização e contra a guerra se avoluma. Se as eleições fossem hoje, na França, Marine Le Pen estaria eleita. A política anti-Otan e contra a guerra da Hungria, de direita, ganhou um novo aliado, de esquerda, com o governo eslovaco recém-eleito. O novo presidente do parlamento desse país tem um Guevara em sua sala. O partido polonês Lei e Justiça, ponta de lança ianque no Leste europeu, saiu esfolado das eleições e terminará possivelmente na oposição.

Defesa da independência nacional

O fato de que V. Putin tenha tomado a direção da defesa da independência nacional russa explica o largo apoio que goza entre a população de seu país. O que lhe permite, igualmente, consolidar e avançar, na medida do possível, a orientação de seu governo pró-capitalista, anti-operário e tendencialmente grão-russo. Entretanto, é ainda difícil prever as modificações na estrutura social e produtiva russa que nascerão do conflito.

O prestígio popular de Putin como direção da defesa do Estado nacional russo certamente dificultará a constituição, na terra dos bolcheviques, de um partido ou de uma direção do mundo do trabalho que expressem as suas necessidades, não apenas nacionais. Ainda mais quando não poucas organizações marxistas desavisadas defendem políticas “derrotistas” diante da ação imperialista dos EUA e da OTAN. Derrotismo de consequências catastróficas para os trabalhadores e as classes populares, não apenas da Federação Russa, no caso da vitória EUA-OTAN, ao igual do que ocorreu quando da destruição do Estado nacional iugoslavo, líbico, etc.

O mundo do trabalho e a esquerda marxista devem apoiar a resistência de uma nação agredida pelo imperialismo, seja qual for o seu governo. Em 1938, Trotsky hipotizava apoio a um Brasil sob a guia, que definia como semi-fascista, de Getúlio Vargas, caso fosse atacado pela Inglaterra democrática. [TROTSKY, 1938.] Comunistas italianos da III Internacional foram defender o governo teocrático, feudal e escravista de Halié Salasié, quando do ataque da Etiópia pelo imperialismo italiano. [SCIORTINO, 2012.] Pouco importa a ideologia do Hamas, do Hezbolah, dos movimentos palestinos que lutam contra o ataque nazi-fascista israelense e do imperialismo ianque. A resistência palestina deve ter nosso apoio total, enquanto se defende dos ataques do sionismo e do imperialismo.

Entretanto, a resistência nacional alcança apenas sua conclusão plena sob a direção do mundo do trabalho, como ocorreu, no passado, na URSS, na China, na Iugoslávia, em Cuba, etc. Sem ela, mesmo quando obtém uma vitória, comumente ela é seguida de regressão de fato do conquistado, conhecendo a população e o mundo social duras sequelas. A vitória dos EUA-OTAN resultaria em um desastre de dimensões difíceis de prever. Entretanto, a derrota do bloco imperialista estadunidense e a vitória da Federação Russa, apoiada pela China, não abrirá, como se propõe e se sugere, anos de paz e um novo e benigno equilíbrio para as nações. Ela permitirá, apenas, um suspiro momentâneo capaz de eventualmente propiciar mais tempo e melhores condições para a reorganização do mundo do trabalho em todo o mundo. Apenas ele pode construir uma era de paz e progresso para todos os povos.

*Mário Maestri é historiador. Autor, entre outros livros, de O despertar do dragão: nascimento e consolidação do imperialismo chinês (1949-2021) (FCM Editora).

Referências


CARDEN, James W. Bush padre aveva ragione: giù le mani dall´Ucraina. LIMES. Rivista Italiana di Geopolitica. Roma, n. 4, apr. 2020. [CARDEN, 2020.]

KARAGANOV, Sergej. “Se perdessimo, la Russia rischierebbe di spaccarsi”. LIMES. Rivista italiana di Geopolitica. Roma, n. 4, mag. 2020.

MAESTRI, Mário. O direito à defesa. A Terra é Redonda. 13/04/2022. https://aterraeredonda.com.br/russia-o-direito-a-defesa/

MAESTRI, Mário. A esquerda e a quarta guerra mundial. A Terra é Redonda. 17/07/2022. https://aterraeredonda.com.br/a-esquerda-e-a-quarta-guerra-mundial/

MAESTRI, Mário, Domenico Losurdo, um farsante na terra dos papagaios – ensaios sobre o estalinismo e o neo-estalinismo no Brasil. Porto Alegre: FCM Editora, 2021.https://clubedeautores.com.br/livro/domenico-losurdo-um-farsante-na-terra-dos-papagaios

PETRONI, Federico. Sconfiggere la Russia sì, ma fin dove? LIMES. Rivista Italiana di Geopolitica. Roma, n. 5, mag. 2020.

PUSKOV, Aleksej. De Gorbacev a Putin: GeopolItica dalla Russia. Prefazione di Paolo de Nardis. Roma: Sandro Tetti Editore, 2022.

SCIORTINO, Gaspare. Comunisti e i guerriglieri del Negus. Un episodio della resistenza antifascista in Etiopia, 1938-39. Apr. 2012. Disponível em: <https://www.resistenze.org/sito/te/cu/st/custce15-011045.htm>

TOYNBEE, Arnold. J. O Mundo e o Ocidente. São Paulo: CEN, 1955.

TOYNBEE, Arnold. J. The Word and the West. Oxford: Oxford University Press, 1953.

TROTSKY, Leon. Mateo Fossa. Entrevista: 23 set. 1938. Disponível em: <https://www.marxists.org/portugues/trotsky/1938/09/23.htm>      .


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