15 anos de ajuste fiscal

Imagem: Zsófia Fehér
Whatsapp
Facebook
Twitter
Instagram
Telegram

Por GILBERTO MARINGONI*

Ajuste fiscal é sempre uma intervenção estatal na correlação de forças da sociedade, em favor dos de cima

Neste janeiro de 2025 entramos no 15º. ano de ininterrupto ajuste fiscal, iniciado a partir da posse do primeiro governo da presidenta Dilma Rousseff, em janeiro de 2011. Aquela gestão, como se sabe, tinha como métrica econômica o recuo do papel do Estado como condutor do desenvolvimento.

A economista Denise Lobato Gentil sintetizou bem os parâmetros da época: “A política fiscal de contenção do gasto (sobretudo do investimento), o pacote de desonerações tributárias e as parcerias público-privadas foram elementos indicativos da nova orientação. O traço mais característico da política fiscal do governo Dilma Rousseff, entretanto, foi, seguramente, a brusca desaceleração (e instabilidade) do investimento público”. O ajuste a partir dessa data até os dias de hoje teve nuances e impulsos variados, mas a diretriz era uma só: reduzir o gasto público.

Uma década e meia depois, o que temos? O ministro da Fazenda abre o ano de 2025, com artigo na Folha de S. Paulo, exaltando o fato de que “Em 2024, o Brasil fez o sexto maior ajuste fiscal do mundo, sendo o terceiro maior entre os países emergentes, segundo o FMI”. O que isso significa?

É possível que um governo, pressionado pela alta finança, seja obrigado em determinado momento a realizar um ajuste fiscal. É algo compreensível. Trata-se de um recuo necessário para ganhar força e tempo e avançar em outras agendas. Mas transformar um problema em virtude é algo que vai além do recuo e adentra o perigoso terreno da capitulação política e – vou escrever um palavrão! – ideológica. Ajuste fiscal é sempre uma intervenção estatal na – desculpem! – correlação de forças da sociedade, em favor dos de cima. Implica cortes, contingenciamentos e reduções orçamentárias no funcionamento do Estado, em especial sobre quem mais precisa dele, os pobres. No fundo, é um processo de concentração de renda.

Vários governos da América Latina, à esquerda e à direita, adotam ajustes fiscais como se fossem medidas neutras ou “técnicas”, para possibilitar o bom andamento da economia. É um novo consenso! Os resultados, em geral, são negativos. Os anos de ajuste, no Brasil, representaram tempos de retração no crescimento, de reformas regressivas do ponto de vista social (trabalhista e previdenciária) e de perda de direitos sociais.

A expectativa gerada pela campanha de Lula, em 2022, foi que depois dos desastres econômicos de Dilma Rousseff II, Michel Temer e Jair Bolsonaro, teríamos finalmente a quebra do mantra do ajuste fiscal – ou pelo menos sua versão draconiana do “teto de gastos” – em favor de uma dinâmica de aumento do investimento público e de uma diretriz desenvolvimentista no governo. Isso tudo, apesar de Lula ter sido eleito sem programa claro, a não ser promessas soltas, como “cerveja e picanha para todos”, “revogação da reforma trabalhista”, “fim da PPI”, “reestatização da Eletrobrás” etc. Após a posse, a conversa mudou de rumo.

A partir daí, percebemos que o único programa disponível era aprovar um novo teto de gastos, como definiu o ministro Fernando Haddad em entrevista à Monica Bergamo (Folha de S. Paulo, 14.10.2024). Chamada de Novo Arcabouço Fiscal, a medida se mostrou um teto com características mais barrocas, cujo centro é bloquear as despesas em 70% da receita corrente líquida e possibilitar uma expansão do PIB entre 0,6% e 2,5% ao ano.

O motivo da definição de tais números – 70, 0,6, 2,5 – não é explicada por nenhuma ordem cabalística. Mas a intenção é clara: impedir o crescimento da atividade estatal e abrir lugar para negócios privados. Ou seja, sequer o surrado bordão neoliberal, de só se gastar o que se arrecada, vale mais. Só se gasta 70% do que se recolhe! E mais: com os gatilhos sancionados pelo presidente Lula no último dia do ano, haverá sanções se a regra for descumprida.

O que possibilitou maior dinamismo econômico nesses anos de governo Lula III, para além da PEC da Transição (cerca de R$ 160 bi a mais no orçamento) e dos precatórios (mais R$ 90 bi)? Por pressão do presidente Lula, os gastos constitucionais (Saúde e Educação) não foram cortados e direitos como o BPC, a lei do salário mínimo (e suas vinculações previdenciárias) e o abono salarial vigoraram plenamente ao longo do ano que passou. Ou seja, houve crescimento porque o arcabouço não entrou em vigor em sua totalidade.

O gasto público se expandiu. A carta de Conjuntura do IPEA, de dezembro, informa que “A despesa primária do governo central no acumulado até novembro registrou R$ 2.029,2 bilhões a preços desse mês, com aumento real de 4,6% em relação ao mesmo período de 2023”. A atividade econômica – PIB, renda e emprego -, aumentou. A Faria Lima literalmente surtou, detonando um efeito manada no câmbio, em dezembro. E o que faz o governo? Recuou ainda mais.

Fernando Haddad foi à TV apresentar um pacote de cortes, depois de mais de um mês de intensas reuniões com o presidente. A apresentação foi pura marquetagem de improviso, na qual foi apresentado um complemento fictício sobre isenção no IRPF até ganhos de R$ 5 mil mensais e taxação de rendas mais altas, certamente tentando aplacar uma base social confundida por tantas idas e vindas. Ato contínuo, Lula grava uma live dirigida ao “mercado”, na qual faz juras de amor à independência do BC, diante do novo presidente Gabrial Galípolo, numa versão hype da Carta aos Brasileiros, de 2002.

Às pressas, o Planalto envia para o Congresso um pacote de cortes, votado em rito sumário – pressa não observada quando os temas são de interesse dos de baixo -, que logo deixa a nu as intenções do Ministério da Fazenda. As tesouradas foram direcionadas aos direitos dos pobres e miseráveis. Pegou tão mal e abriu tamanho flanco diante da extrema direita, que o presidente Lula teve de recuar e vetar cortes mais fundos no BPC. O salário mínimo crescerá menos do que na regra anterior. Saímos da fórmula INPC+variação do PIB para INPC+2,5% (mesmo que o PIB seja maior, como é o caso de 2024).

Neoliberais dentro e fora do governo valem-se da relação dívida/PIB como métrica de boa gestão fiscal. Trata-se de ficção neoliberal de quinta categoria. Qual o problema desse indicador chegar a 80%, como em breve teremos por aqui? Países centrais, em geral, têm dívidas ao redor ou acima de 100% do PIB, como Japão (214,27%), Estados Unidos (110,15%), Espanha (102,25%), Itália (140,57%) e França (92,15%), entre outros. De outra parte, Estados pobres têm débitos abaixo de 40%, a exemplo de Azerbaijão (20,68%), Bangladesh (39,9%), Bulgária (31,5%), Botsuana (20,35%), Estônia (18,83%) e Haiti (25%).

Os dados estão na página do FMI. Apesar dessas proporções se constituírem em uma mitologia mercadista, existe a possibilidade virtuosa de se reduzir a relação dívida/PIB através do aumento do denominador, com o crescimento da produção e do emprego.

O que importa é o custo da dívida, ou qual a taxa básica de juros que os Bancos Centrais têm de fixar para que seus papéis se tornem atraentes para agentes financeiros e para regular a liquidez da economia. As taxas nos EUA e na zona do euro em geral não são altas quando comparadas às da periferia. Já o baixo endividamento pode indicar desinteresse de investidores e ausência de um mercado de capitais com alguma robustez. Apesar disso, esse é o indicador que baliza as ações da Fazenda.

Por fim, é preciso perguntar porque diabos precisamos dar continuidade a um infindável ajuste se não há sequer sombra de crise fiscal no horizonte. Não estamos em perigo de default ou de qualquer tipo de suspensão de pagamento da dívida pública.

Talvez a maior vitória ideológica do neoliberalismo na gestão do Estado tenha sido a de criminalizar o gasto público e ganhar expressivos setores da esquerda nessa cruzada. Corte, contingenciamento, bloqueio e demais sinônimos virou sinônimo de virtude!

Temos uma equipe econômica que não se pauta pelo desenvolvimento e para a qual os bons resultados de expansão do PIB, emprego e renda de 2024 são problemas que podem superaquecer a economia e provocar – a partir da discutível teoria do PIB potencial – inflação. É também a visão do capital financeiro e da grande mídia. É palavrório vazio.

O Arcabouço representa uma derrota política, econômica e sobretudo ideológica para quem esperava, após sete anos e três governos de puro arrocho fiscal, finalmente a possibilidade de crescer e promover desenvolvimento real. O que temos contratado para 2025 pode ser mais um voo de galinha, a se concretizarem as duas novas altas de 1% na Selic prometidas na ata do BC, agora sob hegemonia de diretores indicados pelo lulismo. O arcabouço nos impõe uma lógica de Peter Pan, o menino que não queria crescer. Não precisamos desse pó de pirlimpimpim.

*Gilberto Maringoni é jornalista, professor de Relações Internacionais na Universidade Federal do ABC (UFABC).


A Terra é Redonda existe graças aos nossos leitores e apoiadores.
Ajude-nos a manter esta ideia.
CONTRIBUA

Veja todos artigos de

10 MAIS LIDOS NOS ÚLTIMOS 7 DIAS

O forró na construção do Brasil
Por FERNANDA CANAVÊZ: A despeito de todo preconceito, o forró foi reconhecido como manifestação nacional cultural do Brasil, em lei sancionada pelo presidente Lula no ano de 2010
O complexo de Arcádia da literatura brasileira
Por LUIS EUSTÁQUIO SOARES: Introdução do autor ao livro recém-publicado
Incel – corpo e capitalismo virtual
Por FÁTIMA VICENTE e TALES AB´SÁBER: Palestra de Fátima Vicente comentada por Tales Ab´Sáber
O consenso neoliberal
Por GILBERTO MARINGONI: Há chances mínimas do governo Lula assumir bandeiras claramente de esquerda no que lhe resta de mandato, depois de quase 30 meses de opção neoliberal na economia
Mudança de regime no Ocidente?
Por PERRY ANDERSON: Qual é a posição do neoliberalismo no meio do atual turbilhão? Em condições de emergência, foi forçado a tomar medidas – intervencionistas, estatistas e protecionistas – que são anátemas para sua doutrina
O capitalismo é mais industrial do que nunca
Por HENRIQUE AMORIM & GUILHERME HENRIQUE GUILHERME: A indicação de um capitalismo industrial de plataforma, em vez de ser uma tentativa de introduzir um novo conceito ou noção, visa, na prática, apontar o que está sendo reproduzido, mesmo que de forma renovada
O marxismo neoliberal da USP
Por LUIZ CARLOS BRESSER-PEREIRA: Fábio Mascaro Querido acaba de dar uma notável contribuição à história intelectual do Brasil ao publicar “Lugar periférico, ideias modernas”, no qual estuda o que ele denomina “marxismo acadêmico da USP
O humanismo de Edward Said
Por HOMERO SANTIAGO: Said sintetiza uma contradição fecunda que foi capaz de motivar a parte mais notável, mais combativa e mais atual de seu trabalho dentro e fora da academia
Gilmar Mendes e a “pejotização”
Por JORGE LUIZ SOUTO MAIOR: O STF vai, efetivamente, determinar o fim do Direito do Trabalho e, por consequência, da Justiça do Trabalho?
O novo mundo do trabalho e a organização dos trabalhadores
Por FRANCISCO ALANO: Os trabalhadores estão chegando no seu limite de tolerância. Por isso não surpreende a grande repercussão e engajamento, principalmente dos trabalhadores jovens, ao projeto e campanha pelo fim da escala de trabalho de 6 x 1
Veja todos artigos de

PESQUISAR

Pesquisar

TEMAS

NOVAS PUBLICAÇÕES