História e desenvolvimento

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Por JOSÉ RAIMUNDO TRINDADE*

Considerações sobre o livro de Caio Prado Júnior

1.

Um retorno aos clássicos sempre nos faz submergir mais irrequietos com o nosso presente e com as incertezas do futuro.  A leitura da obra de Caio Prado Júnior intitulada História e desenvolvimento reflete de forma muito forte a inquietude que nos referimos, sendo que partes consideráveis daquele texto nos fazem repensar os limites da capacidade de estabelecimento de uma história soberana da sociedade brasileira.

Ao resenhar o referido trabalho, considerando que diversas análises já foram feitas do mesmo e seu autor, a exemplo de outros importantes nomes da construção historiográfica e da economia política brasileira, que já foi bastante submetido a exegese, nosso objetivo será retornar ao texto e fazer sua interação com o atual quadro da economia política brasileira, tentando observar como o atavismo histórico brasileiro se reflete no nosso atual e incerto padrão de desenvolvimento.

O texto de Caio Prado refere-se a sua proposta de tese de livre docência para USP, infelizmente o concurso não foi feito em função da ditadura que ingressava, naquele ano de 1968, na sua fase mais autoritária com o AI-5 sendo promulgado naquele ano. A construção do texto nos possibilita antever quatro teses que serão posteriormente desenvolvidas por diferentes autores, mas que são claramente enunciadas e constituem pontos de apoio para interpretação do nosso presente, mesmo que suas possíveis reinterpretações possam e devam ser acrescidas de novas tonicidades, algo que a análise marxista do autor e a dialética materialista empregada no texto possibilitam.

2.

O primeiro ponto ou tese que consideramos relevante corresponde ao caráter historiográfico de qualquer teoria do desenvolvimento expressa no trabalho de Prado. A teoria econômica ortodoxa estabelece um padrão modelar para o desenvolvimento econômico capitalista. A proposição chave do texto que analisamos refere-se a tese oposta, a de que o capitalismo se desenvolve em diferentes tipos de capitalismo, sendo que as contradições históricas e a formação secular estabelecem a base estrutural do desenvolvimento, não sendo, portanto, possível falar em lógica de convergência, ou nos termos de Prado, uma lógica “rostowiana”.

Caio Prado (p. 35) observa que a teoria econômica não consegue apreender “a história na sua real e verdadeira especificidade (…) [constituindo meros] elementos a serem encaixados nos modelos propostos”. A crítica do autor deve ser tratada sob duas condicionalidades importantes: primeiramente,  a perspectiva dos economista, em suas diferentes escolas (neoclássica, keynesiana e shumpteriana) de que o desenvolvimento capitalista constitui um fenômeno progressivo  e tendente a um movimento de convergência econômica e social, algo que a lógica “etapista” do autor neoclássico estadunidense Rostow era tão atinente, sendo que outro autor brasileiro importante, de uma escola de pensamento diferente, mas também critica, Celso Furtado, denominou de “mito do desenvolvimento econômico”, em obra homônima.

A análise de Caio Prado Júnior se mantém atual e pouco as teorias ortodoxas acresceram as proposições anteriores criticadas pelo autor, isso pela percepção ideológica liberal que consideram as teses de convergência segundo o qual o caminho para o desenvolvimento era universal, seguindo sucessivas fases. Como observa Martins (2011, p. 224) “a pretensão formulada pela teoria da modernização de um mesmo caminho de desenvolvimento para as diversas sociedades nacionais revela-se absurda”. Entretanto o “etapismo” de Rostow tem profunda influência sobre o pensamento econômico brasileiro e, principalmente, sobre as ações “desenvolvimentistas” dos governos militares da década de 1970 e na permanência da lógica neoliberal pós-década de 1990.

A formação colonial brasileira, baseada na escravidão, no exclusivo metropolitano e na concentração agrária estabeleceram um atavismo que permanecem influenciando as condições presentes de dependência do capitalismo periférico brasileiro. Esses aspectos são o centro da formação histórica brasileira, sendo que é “na história, nos fatos concretos da formação e da evolução de nossa nacionalidade, que se encontra o material básico e essencial para compreensão da realidade brasileira atual” (p. 32).

Não há como construir modelos explicativos de realidades diferentes, não sendo, portanto, verossímil o estabelecimento de padrões aplicáveis a diferentes realidades quanto ao desenvolvimento capitalista. Como observa Caio Prado Júnior, ainda no primeiro capítulo, os economistas convencionais partem de uma visão “estática, uma abstrata sociedade tradicional, semelhante em toda parte” que, em certo momento do progresso econômico confluiriam “para o desencadeamento de um processo auto impulsionado de acumulação capitalista e inversão progressivas que condicionam o desenvolvimento” (p. 41).

Caio Prado ao estabelecer a necessária intencionalidade da história faz o que um outro marxista moderno irá fazer ao comparar tratar a análise econômica usando a metáfora de um “navio” sem bussola e desgovernado, ou nos termos próprios de Eric Hobsbawm (2002, p. 118): “divorciada da história, a economia é um navio desgovernado e os economistas sem a história não têm muita noção de para onde o navio navega”.

3.

A segunda tese inovadora e que se encontra distribuída ao longo do texto, mas inicialmente enunciada no capítulo segundo, com profunda influência nas diferentes teorias da dependência que se estabeleceram em fins dos anos 1960 e nas décadas posteriores, refere-se ao caráter dialético e reflexo das “contradições geradas pelo sistema internacional do capitalismo em que o Brasil e demais povos e países de sua categoria se enquadram como simples elementos periféricos” (p. 28) da dinâmica capitalista do referido sistema internacional.

Vale relembrar que a “teoria da dependência” surge como parte relevante das críticas que se irão desenvolver pela nova esquerda brasileira às teses “etapistas” do antigo PCB. Aqui estamos diante de um tipo de etapismo vinculado a lógica de que a sociedade brasileira ainda detinha elementos “feudais” e as alterações sociais a se fazerem ainda constituem uma etapa da revolução burguesa no país, sendo que as alianças centrais para o processo de transformação se dariam entre os trabalhadores do campo e da cidade com os setores da burguesia nacional que se dispunham a se colocar contrários aos setores da aristocracia agrária (latifundiários) e da burguesia imperialista.

Na perspectiva de Caio Prado Júnior (p. 108-109) o que se observa não é a permanência de forma feudais e sim uma profunda associação do capitalismo que aqui se estabelece, e sua burguesia centrada na lógica exportadora de produtos primários com o capitalismo internacional, assim “a ligação do capitalismo internacional com o nosso velho sistema colonial fundado na exportação de produtos primários (…) continua a mantê-la [a economia brasileira] enquadrada num sistema em que ela figura como setor e elemento periférico e dependente”.

Duas anotações a mais sobre a tese exposta: primeiramente, as condições de autonomia da economia e do Estado brasileiro não se mostram mais independentes que no período tratado pelo autor, por mais que o grau de complexidade tenha aumentado e, em alguns aspectos de sua organização política, tenha tomado decisões de um certo distanciamento ao imperialismo estadunidense, muito especificamente o caso da sua participação no BRIC’s. Porém, como mostram os últimos anos, inclusive o atual ciclo governamental de Lula sua autonomia relativa é graduada pelas relações de poder e acomodação aos interesses estadunidenses, mais frouxos nos anos 2000/2010 e mais acicatados nas últimas duas décadas.

Um segundo aspecto importante e tratado detalhadamente pelo autor corresponde a interação dialética entre o externo (imperialismo) e o interno (dependência), não sendo uma mera interação entre fatores do balanço de pagamentos e de acomodação do mercado interno e externo.

Ao longo das sete décadas do século XX que o capitalismo brasileiro se expande, tornando-se a certa altura (1950/1970) a economia periférica mais dinâmica, observa-se que “a industrialização brasileira marchará canhestramente e por impulsos descontínuos e desordenados”, sendo que a crescente presença e controle dos capitais internacionais serão preponderantes, constituindo mesmo o “núcleo dinâmico da indústria brasileira”, será desta completa simbiose e controle do capital internacional sobre a indústria brasileira que se determina a lógica dependente da economia brasileira. Assim, a “participação do capitalismo internacional na economia brasileira constitui (…) embaraço crescente à transformação da mesma economia e à libertação dela do seu passado colonial” (p. 108).

4.

Esses elementos nos levam a uma terceira tese fundamental, referente ao modo como a indústria brasileira se estabelecerá, para além da presença do capital internacional, cuja característica central será a baixa coordenação e os condicionantes cíclicos cuja consequência será “uma indústria desordenadamente implantada, sem outro critério que as excepcionais e tão artificiais facilidades oferecidas e o estímulo imediatista de um lucro fácil e rápido” (p. 100). Temos aqui colocados dois problemas que serão também trados por autores como Chico de Oliveira, Conceição Tavares e Theotônio dos Santos.

A ausência de um sistema de planejamento que fosse além do uso de ferramentas keynesianas básicas, como o uso do câmbio e de estímulos ao subsídio, via financiamentos com taxas de juros subsidiadas, marcou a lógica desenvolvimentista brasileira, mesmo tendo nos PND’s (Plano Nacional de Desenvolvimento) da ditadura alguma tentativa de organizar setorialmente a economia, mas como demonstram estudos recentes como o de Rodrigues (2023), o qual apresentamos em artigo no site A Terra é Redonda, fundamentalmente a intervenção estratégica do Estado condicionava os setores de acumulação através de subsídios e organização da infraestrutura necessária, porém favoreciam uma lógica liberal que não organizava a matriz reprodutiva da economia. A soberania restringida que marca a condição periférica brasileira explica os modos diferenciados da relação entre o capital internacional e o sistema de desenvolvimento brasileiro, vis-à-vis outras sociedades, como a chinesa ou coreana, por exemplo.

Caio Prado Júnior (p. 99-100) observa que por mais que tenhamos tido um rápido crescimento industrial, porém seus fundamentos foram precários, sendo rapidamente esgotados sua dinamicidade com os entraves da “substituição de importações” e as condições cíclicas do capitalismo internacional. Observamos que a capacidade de geração do Departamento I da economia brasileira nunca passou de uma certa replicação de indústrias da segunda revolução industrial, sendo que a complementação entre departamentos produtivos e especialmente os segmentos de produção de “máquinas que produzem máquinas” não tiveram desenvolvimento na matriz industrial nacional, reforçando a tese do autor de “uma indústria desordenadamente implantada”. Uma das consequências desse padrão desordenado será a prematura desindustrialização do país nas décadas recentes.

5.

Uma quarta tese importante refere-se à composição das classes trabalhadoras brasileiras e, muito especificamente, a constituição daquilo que um outro autor marxista Ruy Mauro Marini irá denominar de “superexploração do trabalho”. Caio Prado Júnior (p. 105) observa que a “industrialização não logrou suscitar uma atividade econômica capaz de absorver e ir incorporando em nível adequado o crescimento demográfico verificado no país, em particular os excedentes expelidos e deslocados do setor agrário”.

A conformação de uma superpopulação relativa cujo um dos elementos característicos refere-se aos seus elevados componentes de “população estagnada” e “depauperada”. A primeira constitui uma parcela da população relativa que não estão alocados em funções dentro do mercado capitalista, porém com ocupações irregulares e que parte deles não estão submetidos ao processo de valorização do capital, isto é, não são trabalhadores assalariados.

Esse contingente populacional é central para o processo de valorização do capital pois proporciona um depósito inesgotável de força de trabalho disponível. O segundo segmento constitui o sedimento mais baixo da superpopulação reativa, sendo expresso em uma parcela expressiva de indivíduos que não são “servíveis” a exploração capitalista, aspectos anotados teoricamente por Marx (1867).

6.

O estabelecimento de uma economia capitalista periférica com estas características de superexploração e conformação mercadológica restringida e de mercado de trabalho de baixa organicidade, produz uma sociedade não somente com limites sociológicos estabelecidos pelas grotescas desigualdades de renda, mas também com limites econômicos que não superam “outros horizontes” e que evoluem “através de sucessivos ciclos estritamente subordinados à conjuntura do mercado externo para um ou outro gênero primário”, ciclos econômicos  “que se repetem no tempo e no espaço ao longo de toda a nossa evolução econômica” (p. 69), marcadamente “evoluindo com intermitências e por uma descontínua sucessão de arrancos bruscos, paradas e mesmo, eventualmente, recuos momentâneos”, algo bastante visível no atual ciclo conjuntural brasileiro.

A leitura de História e desenvolvimento no reaviva o quanto os construtores do pensamento crítico brasileiro já muito nos alertam quanto a necessidade de construção de instrumentos sociais que rompam com o “atavismo colonial” brasileiro, ou o que Florestan Fernandes identificou como contribuição do autor na identificação do “nexo colonial” que aprisiona o presente da nossa sociedade a repetição eterna de um “círculo vicioso” de dependência periférica ao imperialismo estadunidense ou outro que se afirme.

*José Raimundo Trindade é professor do Instituto de Ciências Sociais Aplicadas da UFPA. Autor, entre outros livros, de Agenda de debates e desafios teóricos: a trajetória da dependência e os limites do capitalismo periférico brasileiro e seus condicionantes regionais (Paka-Tatu).

Referência


Caio Prado Júnior. História e Desenvolvimento: a contribuição da historiografia para a teoria e prática do desenvolvimento brasileiro. São Paulo: Boitempo, 2021, 144 págs. [https://amzn.to/3CcSMFd]

Bibliografia


Carlos Eduardo Martins. Globalização, dependência e neoliberalismo na América Latina. São Paulo: Boitempo, 2011.

Celso Furtado. O mito do desenvolvimento econômico. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1983.

Florestan Fernandes. Os enigmas do círculo vicioso. Prefácio de História e Desenvolvimento. São Paulo: Boitempo, 2021.

José Raimundo Trindade. Agenda de debates e desafios teóricos: a trajetória da dependência e os limites do capitalismo periférico brasileiro e seus condicionantes regionais. Belém: Paka-Tatu, 2020.

Karl Marx. O Capital: crítica da economia política. Livro I [1867]. São Paulo: Boitempo, 2013.

RODRIGUES, Carlos Henrique Lopes. Imperialismo e Empresa Estatal no Capitalismo Dependente Brasileiro (1956-1998). São Paulo: Alameda, 2023.

Ruy Mauro Marini. Dialética da Dependência (1973). SADER, Emir (orgs). Dialética da Dependência uma antologia da obra de Rui Mauro Marini. Rio de Janeiro: Vozes, 2000.


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