As duas faces de Lênin

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Por JOSÉ RAIMUNDO BARRETO TRINDADE

Lênin, talvez seja o mais completo nome representativo das condições do mar histórico agitado que nos falou Maiakóvski ao se referir ao século passado

Neste mês completa um século de falecimento de um dos principais edificadores do século XX. Vladímir Ilitch Ulianov, conhecido como Lênin, talvez seja o mais completo nome representativo das condições do mar histórico agitado que nos falou Maiakóvski ao se referir ao século passado.[i] O rebelde do Volga nasceu em 10 de abril de 1870, numa tarde costumeira daquela região da Rússia czarista que naquela época do ano faz temperaturas agradáveis em torno de 5° Celsius, algo que denota o início da primavera. Lênin faleceu em janeiro de 1924, no gélido frio moscovita, mas desde então seu pensamento e ação marcam a história.

Passados 100 anos e há muito pretensamente enterrada a epopeia revolucionária que marcou o século XX e estabeleceu durante 70 anos um modelo econômico e social que pareou com o capitalismo e derrotou a ofensiva fascista na segunda Guerra mundial na forma da antiga União Soviética, porém com a retomada do protagonismo russo na geopolítica mundial e abertas novas e crescentes frentes de crises internacionais, o revolucionário russo retorna com toda força ao quadro dos olhares de incertezas que se afirmam.

Este breve artigo retoma Lênin não por seus aspectos históricos e sua importância passada, mesmo que isso já o valesse. Nosso interesse em Lênin está pela importância que suas ideias e sua trajetória impactam o tempo presente e pelas formas como as relações históricas podem nos ensinar, a partir do conhecimento de teóricos e da construção cotidiana passada, métodos de superação dos limites presentes e de uma possível contribuição sobre as incertezas do momento presente.

Nosso homem em particular teve a dupla face, foi um teórico esplêndido da análise do capitalismo e da filosofia humanista do materialismo histórico e de superação deste modo de produção, como também foi um autor da construção prática da superação deste sistema de opressão, algo que lembra a famosa décima primeira “Teses sobre Feuerbach” de Marx (1845)[ii] no qual este assinalava que os “filósofos não fizeram mais que interpretar o mundo de forma diferente; trata-se, porém, de modificá-lo”.

Desta forma duas guias nos conduzirão neste breve retorno a Lênin: (i) que aspectos teóricos e como sua literatura contribui ainda hoje para interpretar e construir uma proposta anticapitalista; (ii) que contradições acesas a partir da ação militante deste revolucionário devem ser denotadas, e como sua percepção e obstinação na construção de uma sociedade alternativa ao capitalismo ainda nos coloca questões a serem absolvidas e discutidas. Não nos interessa uma percepção de superestimação do autor e revolucionário, mas tampouco a forma ruidosa e detratora que um conjunto de biógrafos e intérpretes têm tratado o legado de Lênin.[iii]

Lênin foi autor de uma obra densa, significativa em muitos aspectos, mas nesta breve resenha analítica nos centraremos em dois aspectos centrais: a análise econômica do capitalismo em formação e a análise do Estado capitalista.

A interpretação do desenvolvimento econômico do capitalismo, não somente em torno do seu clássico O desenvolvimento do capitalismo na Rússia,[iv] obra que entre outros aspectos fundamentais, nos traz pela primeira vez o debate chave entre a expansão autóctone do capitalismo, seja na formação da grande indústria, e o estabelecimento de uma formação industrial transplantada, porém já condicionada em uma base monopolizada e com forte presença do componente financeiro. Nesta mesma obra, deve-se ressaltar ainda o debate da expansão do capitalismo no campo e como isso influencia as condições de manutenção ou desaparecimento das formas campesinas, como também se coloca o debate da formação dos mercados internos.

A análise de Lênin em O desenvolvimento do capitalismo na Rússia estabelece algumas teses importantes no debate sobre a chamada “forma campesina”, sua manutenção e transformação. Especialmente na seção “A desintegração do campesinato”, o autor observa que o desenvolvimento do capitalismo se estabelece constituindo “novos tipos de população rural”, sendo dois novos tipos: “a burguesia rural ou o campesinato rico” e “o proletariado rural”, sendo que ainda se mantém “um elo intermediário” que “é o campesinato médio”. O tratamento feito por Lênin desta realidade em acelerada transformação do mundo rural russo ainda hoje tem enorme valia metodológica.

Vale lembrar, como nos faz Gruppi (1979, p. 1),[v] que o “primeiro escrito de Lênin é de caráter econômico-estatístico”, trata-se de um primeiro quadro que retrata criticamente a comunidade rural russa (obstichina), diga-se aspecto central para as teses posteriores que irão refletir sobre a desintegração do campesinato e a “base sobre a qual se forma o mercado interno na produção capitalista”, escopo de análise ainda hoje útil para se tratar formas de transição social e econômica pré-capitalistas e suas consequências sobre o quadro fundiário, algo tão central na realidade brasileira.

Duas outras obras de caráter econômico e que apontam elementos muito úteis para interpretação da contemporaneidade nesta segunda década do século XXI são de leitura muito úteis para esquerda brasileira, são dois opúsculos, pequenos textos, mas de esmerada precisão teórica e enorme capacidade interpretativa: Sobre a tributação e Imperialismo, fase superior do capitalismo.

A primeira obra data de junho de 1913 e tinha a finalidade de um publicista[vi] em dialogar com os trabalhadores socialistas estadunidenses e mostrar como deveriam ser tratados os impostos (tributos) no capitalismo. Ao tratar a forma de financiamento do Estado, o polemista observa que nos EUA naquele ano (1913) os “operários pagavam [de impostos indiretos] proporcionalmente 20 vezes mais que os capitalistas”, sendo que a base tributária vinculada aos impostos indiretos produz uma forma social “profundamente desordenada” em todos os países capitalistas.

Lênin observa que a progressividade tributária, taxando a riqueza e a renda de forma de fato progressiva possibilitaria dois efeitos importantes e que, como ele observa, não seriam contrários a ordem burguesa: “aliviaria as condições de vida para nove décimos da população; e em segundo lugar, seria um gigantesco impulso para o desenvolvimento das forças produtivas e (…) do mercado interno”. Uma excelente lição para se tratar o caso brasileiro, cuja estrutura tributária é a mais regressiva do planeta e a distribuição de renda a mais desigual.

Dois aspectos interessantes naquele texto. Primeiro, Lênin observa um fenômeno que não é próprio da nossa atualidade capitalista, mas sim está na sua raiz: a desigualdade social; por outro, o financiamento do Estado aparece na sua nudez: uma forma de apropriação das rendas populares e seu controle pelos capitalistas, definindo desde sempre qual a lógica do Estado capitalista, algo que trataremos mais à frente.

Outro texto econômico significativo trata-se de Imperialismo fase superior do capitalismo, de abril de 1917. Esta obra sistematiza análises desenvolvidas desde o final do século XIX por marxistas e acadêmicos relevantes. Como Lukács[vii] expressará na primeira biografia comentada sobre Lênin, a superioridade deste autor será que ele faz a “articulação concreta da teoria econômica do imperialismo com todas as questões políticas do presente, transformando a economia da nova fase no fio condutor para todas as ações concretas na conjuntura que se configurava”. Neste sentido, temos nesta obra um exercício aproximado aquele que Marx desenvolveu ao tratar da conjuntura francesa de meados do século XIX no avassalador O 18 de brumário de Luís Bonaparte, ao estabelecer um exercício de análise econômica e política entrelaçada.[viii]

A natureza econômica do imperialismo é tratada por Lênin[ix] desde o reconhecimento que a produção capitalista passava na virada do século XIX para o XX a se dar na forma de monopólios e empresas oligopolizadas, resultante das leis gerais de concentração e centralização dos capitais apontadas por Marx. Por esse processo perpassa a acumulação, que denota uma relação social básica de controle da burguesia sobre os meios de produção e de apropriação da riqueza gerada pelos trabalhadores. Porém o processo vai além levando “à socialização completa da produção nos seus mais variados aspectos”, porém a apropriação liquida da riqueza gerada continuava a ser privada.

Lênin observou que o capitalismo na sua fase contemporânea (imperialista), conduz à socialização quase integral da produção nos mais variados aspectos, mas a “apropriação dos ganhos continua a ser privada”. Essa característica do capitalismo somente se expande no século XX e agora no XXI, inclusive sob o aspecto do controle de vastos territórios nacionais por empresas que pertencem a um punhado de grandes capitalistas associados. Por exemplo, a antiga Companhia Vale do Rio do Doce, uma empresa estatal brasileira até a década de 1990 que hoje pertence a fundos privados nacionais e internacionais. Vale notar que a dispersão acionária é somente uma forma de ocultar a concentração dos ganhos com a exploração e venda de ferro de alguns poucos grupos, os chamados proprietários de “Golden shares”, tais como a Mitsui e Co; Blackrock Inc e a Capital World Investors, um pequeno punhado de super ricos internacionais e nacionais.

Uma análise das relações entre 43.000 empresas transnacionais concluiu que um pequeno número delas – sobretudo bancos – tem um poder desproporcionalmente elevado sobre a economia global. A conclusão é de três pesquisadores da área de sistemas complexos do Instituto Federal de Tecnologia de Lausanne, na Suíça. Estudos anteriores já haviam identificado que algumas poucas empresas controlam grandes porções da economia, mas esses estudos incluíam um número limitado de empresas e não levavam em conta os controles indiretos de propriedade, não podendo, portanto, ser usados para dizer como a rede de controle econômico poderia afetar a economia mundial – tornando-a mais ou menos instável, por exemplo.

O estudo pode falar sobre isso com a autoridade de quem analisou uma base de dados com 37 milhões de empresas e investidores. A análise identificou 43.060 grandes empresas transnacionais e traçou as conexões de controle acionário entre elas, construindo um modelo de poder econômico em escala mundial. O modelo final revelou um núcleo central de 1.318 grandes empresas com laços com duas ou mais outras empresas – na média, cada uma delas tem 20 conexões com outras empresas. Mais do que isso, embora este núcleo central de poder econômico concentre apenas 20% das receitas globais de venda, as 1.318 empresas em conjunto detêm a maioria das ações das principais empresas do mundo – as chamadas blue chips nos mercados de ações.

Em outras palavras, elas detêm um controle sobre a economia real que atinge 60% de todas as vendas realizadas no mundo todo. E isso não é tudo. Quando os cientistas desfizeram o emaranhado dessa rede de propriedades cruzadas, eles identificaram uma “super-entidade” de 147 empresas intimamente inter-relacionadas que controla 40% da riqueza total daquele primeiro núcleo central de 1.318 empresas. “Na verdade, menos de 1% das companhias controla 40% da rede inteira,” diz Glattfelder (cientista que coordenou o estudo). E a maioria delas são bancos.[x]

Do processo de concentração e centralização do capital emerge uma oligarquia financeira que controla os pequenos capitais, subordinando-os aos grandes capitais. Essa oligarquia resulta em uma modificação dos papéis dos bancos, que deixam de atuar como simples intermediários bancários e passam a financiar e controlar grandes empresas, entrelaçando os interesses do capital bancário com o capital industrial, fundamentalmente através da compra de ações de grandes empresas. Essa fusão entre os capitais bancários e industrial constitui o principal processo da mudança de fase do capitalismo concorrencial para monopolista e dá surgimento ao capital financeiro. Este, por sua vez, submete de forma crescente a indústria e os demais setores da economia e do poder de Estado, tornando-se hegemônico no processo de acumulação do capital.

A frase de Lênin no livro Imperialismo, fase superior do capitalismo, poderia ser proferida hoje: “o desenvolvimento do capitalismo chegou a um ponto tal que, ainda que a produção de mercadorias continue reinando e seja a base de toda a economia, porém encontra-se já minada e os lucros principais vão parar nas mãos de gênios das maquinações financeiras”, o que hoje são os fundos de especulação controlados por um punhado de financistas e megaespeculadores.

A mudança da fase concorrencial do capitalismo (caracterizada pela exportação de mercadorias) para a fase monopolista (caracterizada pela exportação de capitais) tem como objetivo último o aumento dos lucros monopolistas, via empréstimos ou através de investimentos estrangeiros diretos em nações periféricas, onde o capitalismo se estabelece em bases estruturais diferentes, subordinadas ao regramento das relações de poder imperialistas. Essa dinâmica do capital impõe à busca de novos espaços que permitam a expansão do raio de atuação desse capital, fazendo com sua ampliação alcance maior plenitude.

Portanto, esse quadro denota uma dificuldade da realização do capital, impondo uma dificuldade à lógica de reprodução ampliada (reprodução tomada como subutilizada em seu potencial de realização) aliada à ampliação desse cenário causada pela reestruturação orgânica do capitalismo concorrencial rumo ao monopólio em um espaço finito. Isso leva à busca de novos espaços que permitam a expansão do raio de atuação desse capital, fazendo com que sua ampliação alcance a plenitude máxima.

A exportação de capital em si torna-se mais relevante para a compreensão do imperialismo em sua totalidade do que a questão de conquista de mercados, devido aos processos de circulação e redistribuição do capital produtivo e do capital dinheiro que estabelecem o imperialismo como modus operandi para que o capital se expanda. Lênin afirma que tal processo se caracteriza através de cinco pontos, a saber: (a) a exportação de capitais; (b) a produção e distribuição centralizada em grandes empresas; (c) a fusão de “capital bancário” com “capital industrial” na forma de “capital financeiro”; (d) a “disputa geopolítica entre as potências capitalistas”; e, (e) as guerras como fenômeno recorrente dessa disputa. O capital produtivo aumenta por causa da simbiose entre o capital financeiro e o capital industrial no período final do século XIX e inicial do século XX. Lênin afirma que tal concentração da produção conecta-se com uma fase monopolista que será a fase superior do capitalismo, a qual será chamada de Imperialismo.

O aumento da contradição entre a esfera da produção (com crescimento da oferta devido aos ganhos de escala) e a esfera da circulação (problema de realização por insuficiência de demanda) torna a produção ainda mais concentrada ao passo que dificulta aos capitais menores sua manutenção devido a concorrerem com produtos de baixo custo produtivo dos capitais maiores, culminando possivelmente em falência dos capitais menores e aquisição pelos capitais maiores, num processo de centralização do capital.

Portanto, o processo de monopolização e as bases que permitem a sua concretização são mais importantes do que os monopólios e os cartéis em si, pois estes revelam quais circunstâncias propiciaram à formação dos mesmos e em quais bases apoiaram os processos de concentração da produção e de capital. Esse movimento de desenvolvimento desigual implicou na construção no ambiente mundial, de “zonas de influência”, por onde se constrói o imperialismo e a exportação de capital enquanto sua contraface.

Lênin frisou com rara capacidade visionária que o capitalismo caminharia para formação de “Estados usurários, cuja burguesia vive cada vez mais à custa da exportação de capitais e do corte de cupões” (rentabilidade de títulos aplicados em bolsa ou títulos da dívida pública). Porém ele observa corretamente que isso não necessariamente levará a menores taxas de crescimento do capitalismo, porém “este crescimento não só é cada vez mais desigual, como a desigualdade se manifesta também na decomposição dos países mais ricos em capital”, na época a Inglaterra, hoje os EUA.

O segundo elemento chave nas contribuições de Lênin, referem-se à análise do Estado como uma forma geral de poder político que assume a capacidade organizativa e institucional dos interesses do capital enquanto classe. Esta noção do Estado como poder de classe é ponto de partida para seu entendimento genérico, na medida em que diversas outras formas sociais de reprodução ao longo da história foram também baseadas na expropriação do excedente socialmente produzido em favor de uma classe social específica e teve na forma estatal um poder político de domínio de classe.  Assim, a análise do Estado capitalista requer a necessária interação com a lógica de acumulação desse sistema.

Gruppi [xi] interpretando Lênin fundamenta que O capital mostra a ossatura que sustenta o Estado capitalista, estando contidos na lógica de reprodução capitalista os elementos necessários à sustentação (financiamento) da forma que assume o Estado e, principalmente, as funções econômicas que desempenha neste modo de produção. Para tal deve-se relacioná-lo ao que constitui o elemento básico de sua identidade, ou seja, sua função de controle social vinculada à manutenção e regularidade da relação salarial ou de exploração da força de trabalho e suas funções auxiliares ao sistema de reprodução capitalista.

Deve-se partir do entendimento de que o capitalismo é uma forma cumulativa de riqueza que se assenta na permanente conversão de capital-dinheiro em capital produtivo, tendo como pressuposto a generalidade da força de trabalho como mercadoria e a contínua e regular troca de trabalho vivo por trabalho morto, forma econômica que se materializa em uma relação contratual: a relação salarial.

No capitalismo, a relação capital é a de apropriação do excedente fundada em relações contratuais entre o capitalista (comprador da mercadoria força de trabalho) e o trabalhador (vendedor da mercadoria força de trabalho). Entre eles trava-se uma troca de equivalentes no processo de circulação de mercadorias: a força de trabalho, mercadoria que é a única propriedade do trabalhador, é comprada pelo capitalista, que oferece em troca a forma monetária salário, o preço da mercadoria força de trabalho. Essa aparente igualdade na forma do trato jurídico torna a relação salarial condição central tanto da reprodução econômica do sistema, quanto da sua configuração política.

Lênin[xii] observa que a reorganização da sociedade, conforme a lógica da acumulação capitalista torna todos os cidadãos formalmente iguais perante a lei, tendo como base o conceito de universalização da propriedade. Isso possibilita, segundo este autor, a legitimidade da ação do Estado como protetor dos direitos de propriedade; assim, a “lei protege todos por igual, protege a propriedade dos que a têm dos atentados contra a propriedade por parte da massa que, não tendo propriedade nenhuma, não tendo nada além dos seus braços, se transforma em massa proletária”.

A condição para essa pretensa igualdade é a universalização formal da propriedade e a generalização da força de trabalho como mercadoria, aspecto histórico-lógico central para o capitalismo. A especificidade do capitalismo é que esta é a primeira forma histórica com a generalização de relações contratuais de trabalho, e sob o ponto de vista lógico essa forma relacional é determinante na produção do excedente social (mais-valor). O Estado cumpre deste modo, a função central de controle e legitimação da ordem capitalista, principalmente ao encobrir as relações de exploração e justificando positivamente a propriedade privada dos meios de produção, sob a forma de aparente universalidade e igualdade dos direitos de propriedade.

Como agente central para manutenção das relações capitalistas de produção, o Estado encobre parcialmente o conflito latente existente na relação capital-trabalho e, ao mesmo tempo, legitima a relação de exploração, por meio da imposição das regras positivas do direito de propriedade burguês. De outro modo, a essência do Estado é a de ocultar a exploração e, principalmente, sufragar a legalidade e legitimidade dessa relação. A ação coercitiva do Estado provém deste pressuposto, e sua maior ou menor capacidade repressiva será diretamente proporcional às condições necessárias de se impor e manter a propriedade privada dos meios de produção e, fundamentalmente, assegurar a regularidade dos fluxos de produção e apropriação cumulativa da riqueza social produzida.

A capacidade de ser um “intelectual orgânico” da revolução, que se expressa tanto na produção teórica, mas na militância cotidiana contra o sistema, tornou este autor alguém não somente para ser lido e criticado nas linhas da história, mas, sobretudo constitui um excelente exemplo da necessidade de se visitar continuamente autores clássicos, não no sentido de se buscar respostas para as incertezas do nosso futuro, mas de construir novas e necessárias interpretações da história, um auxilio central para se pensar a economia política do tempo atual.

Como leituras introdutórias as obras acima apontadas exigem complementação dos aspectos de organização política que o autor foi um esmerado construtor, especialmente Duas tácticas da social-democracia na revolução democrática,[xiii] expressando a compreensão e limites do debate entre ação revolucionária socialista e ação democrática. A compreensão da ação política em uma realidade própria e tão específica como a Rússia não tem e nem pode ser replicada, mas possibilita conhecimento histórico necessário a disputa radical.

Vale ainda nos referir ao texto Que fazer?[xiv] no qual o autor expressa melhor a perspectiva de que não se pode “separar mecanicamente o aspecto político do organizacional”. A necessidade de organização de instrumentos sociais (partidos, movimentos) que possibilitem agir na perspectiva de alteração radical da sociedade, rompendo as amarras do capitalismo estabelece aqui um ponto fundamental: a ruptura exige não somente movimentos de crises severas do sistema, mas uma profunda organização da sociedade, a luta de classes condiciona o aparecimento de instrumentos políticos e, ao mesmo tempo, requerem a inteligência intelectual coletiva dos trabalhadores na conformação de organizações que imponham revolucionariamente o parto de uma nova sociedade.

Daniel Bensaid[xv] resume magnificamente o significado histórico de Lênin e sua necessária revisitação, alguém que fez a política e elaborou sua temporalidade própria, uma temporalidade de “um tempo partido”. Que a condição de outro tempo guie os revolucionários do presente e do futuro, para reconstruirmos a humanidade, e nisso a leitura de Lênin continua muito necessária!

*José Raimundo Trindade é professor do Instituto de Ciências Sociais Aplicadas da UFPA. Autor, entre outros livros, de Crítica da economia política da dívida pública e do sistema de crédito capitalista: uma abordagem marxista (CRV).

Notas


[i] “Fiz ranger as folhas de jornal”, conferir em: https://www.pensador.com/poemas_vladimir_maiakovski/.

[ii] Karl Marx. Ad Feuerbach. In: MARX, Karl e ENGELS, Friedrich. A ideologia alemã. São Paulo: Boitempo, 2007.

[iii] Algumas biografias recentes são bem o exemplo desta tentativa de desfiguração da personalidade e das contribuições de Lênin, como por exemplo, a biografia (dita definitiva) de Robert Service. Lênin: uma biografia definitiva. Rio de Janeiro: Difel, 2007.

[iv] Vladmir Ilitch Lênin. O desenvolvimento do capitalismo na Rússia. São Paulo: Abril Cultural, 1982.

[v] Luciano Gruppi. O pensamento de Lênin. Rio de Janeiro. Editora Graal, 1979.

[vi] Em não poucos artigos, Lênin se apresenta como um “publicista”, ou seja, alguém que proclama “jornalisticamente” ou com capacidade de entendimento dos trabalhadores em geral a análise socialista e revolucionária da conjuntura. Vladmir Ilitch Lênin. Notas de um publicista. Lisboa: Edições Progresso. 1986.

[vii]  Gyorgy Lukács. Lênin, [1924], 2012. São Paulo: Boitempo, 2012. p. 61.

[viii] Karl Marx. O 18 de brumário de Luís Bonaparte. São Paulo: Boitempo, 2011.

[ix] Vladmir Ilitch Lênin. Imperialismo, fase superior do capitalismo. Lisboa: Edições Progresso. 1986.

[x] Conferir: Stefania Vitali, James B. Glattfelder, Stefano Battiston. The network of global corporate control. Revista: arXiv,  Sep 2011. Disponível em http://arxiv.org/abs/1107.5728

[xi] Luciano Gruppi. O pensamento de Lênin. Rio de Janeiro: Grall, 1979.

[xii] Vladmir Ilitch Lênin. O Estado e a Revolução. Lisboa: Edições Progresso. 1986.

[xiii] Vladmir Ilitch Lênin. Duas tácticas da Social-Democracia na Revolução Democrática. Lisboa: Edições Progresso. 1986

[xiv] Vladmir Ilitch Lênin. Imperialismo, Que fazer? São Paulo: Hucitec, 1982.

[xv] Daniel  Bensaid. Lênin, ou a política do tempo partido. In: Michael Lowy e Daniel Bensaid. Marxismo, Modernidade e Utopia.  São Paulo: Xamã, 2000.


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