Um falso problema

Whatsapp
Facebook
Twitter
Instagram
Telegram

Por ANDREA ZHOK*

A construção sistemática da mentira, mediante a distração, a falsidade, por meio da dissimulação, esse sim é o verdadeiro jogo do poder contemporâneo

Peço desculpas antecipadamente pelo desabafo, mas é francamente insuportável ouvir a enésima discussão angustiante ou escandalizada sobre o braço estendido de Elon Musk.

É realmente deprimente descobrir (redescobrir, pela enésima vez) que a intelligentsia progressista (mas não só) do país[i] é tão completamente incapaz de analisar a realidade pelo que ela é, de olhar para a história atual pelo que ela é, sem projetar fantasmas artificiais sobre ela.

O que Elon Musk pretendia fazer ou dizer com suas desajeitadas gesticulações no palco é um não-problema.

Não porque se trate de procurar desculpas, justificativas ou algo assim. Mesmo que Musk tivesse, em perfeita lucidez, premeditadamente e sem alterações devido a substâncias psicotrópicas, decidido a evocar uma saudação romana com intenções nostálgicas, isso é um falso problema.

É realmente desanimador ver a pobreza categórica de grande parte da “inteligência política”, que pela milionésima vez demonstra entrar em alerta apenas quando se utilizam palavrinhas de um século atrás (“fascismo”, “nazismo”, “holocausto” etc.).

Pelo amor de Deus, vivemos em outro mundo, em outra época, com outros problemas, com pressupostos sociais e materiais completamente incompatíveis com aqueles nos quais surgiram as ditaduras dos anos 1920 e 1930.

Como é possível ainda estarmos aqui, discutindo com essas categorias cadavéricas?

Não é possível continuar fingindo viver como se estivéssemos no dia seguinte da invasão da Polônia, do bombardeio de Guernica ou dos vagões lacrados para Auschwitz.

A história ensina muitas coisas, mas a mais importante é que ela nunca se repete.

Elon Musk é uma figura preocupante, mas não pelas encenações patéticas, não pelas supostas ou reais saudações romanas. Ele é porque – junto com muitos outros, de Mark Zuckerberg a Georges Soros, Bill Gates a Larry Fink etc. etc. – representa, de maneira descarada, a metamorfose das democracias liberais em oligarquias de base econômica.

O fato de alguém como Elon Musk ser decisivo para o fornecimento de sistemas bélicos de vanguarda, cruciais em qualquer conflito, isso sim deveria causar terror.

O fato de o sistema ocidental dos meios de comunicação e das mídias sociais – e, com isso, o acesso ao que conta como “verdade pública” – estar nas mãos de um punhado desses personagens, isso sim deveria causar angústia.

O fato de as necessidades das corporações bélicas, energéticas, farmacêuticas, ou mais genericamente as necessidades financeiras definirem o destino de nossas supostas e moribundas democracias, essa sim é a tragédia anunciada na qual vivemos.

O fato de a política europeia ser um jogo de lobbies autorreferenciais absolutamente impermeáveis aos interesses do povo, esse sim é o drama.

Mas nada disso jamais move, de fato, o desdém dos analistas oficiais, dos homens e das mulheres do governo, dos intelectuais “progressistas” e dos “conservadores”. Continua-se a jogar, em perfeita má consciência, o jogo das finadas contraposições do século XX.

Agita-se o antifascismo e, enquanto isso, florescem os mais descarados autoritarismos neoliberais; agita-se o anticomunismo e, enquanto isso, prosperam as piores formas de cientificismo economicista; comemora-se o genocídio cometido pelos nazistas e, enquanto isso, florescem genocídios em transmissão mundial no silêncio mais ensurdecedor.

Fala-se e pensa-se em outra coisa, continuamente, obstinadamente, para impedir, nem que seja por um minuto, que as pessoas do “sair da matriz” entendam quais são as verdadeiras ameaças, que percebam quais são os verdadeiros inimigos.

A construção sistemática da mentira, mediante a distração, a falsidade, por meio da dissimulação, esse sim é o verdadeiro jogo do poder contemporâneo.

Quem, tendo os meios intelectuais para entendê-lo, não se subtrai a ele, é cúmplice.

Pronto! Agora podem continuar jogando com as cartas de baixo valor que colocaram na mão de vocês, discutindo se e o quanto Elon Musk é a nova face do perigo fascista.

*Andrea Zhok é professor de filosofia na Universidade de Milão. Autor, entre outros livros, de Critica della ragione liberale: Una filosofia della storia corrente (Meltemi). [https://amzn.to/3Sxfq0K]

Tradução: Juliana Haas.

Publicado originalmente nas redes sociais do autor.

Nota


[i] Este artigo foi escrito no contexto italiano e europeu.


A Terra é Redonda existe graças aos nossos leitores e apoiadores.
Ajude-nos a manter esta ideia.
CONTRIBUA

Veja todos artigos de

10 MAIS LIDOS NOS ÚLTIMOS 7 DIAS

Guerra urbana na Ucrânia
17 Feb 2025Por MÁRCIO JOSÉ MENDONÇA: A tática de destruição de cidades e vilas ucranianas, mesmo massiva, não visa a uma destruição total e definitiva do espaço urbano ucraniano
Pensamentos ocidental e oriental
16 Feb 2025Por SAMUEL KILSZTAJN: No ocidente, os cursos de filosofia normalmente restringem-se ao estudo da filosofia ocidental. Na China, por sua vez, o estudo da filosofia abrange o confucionismo, o taoísmo e o budismo, além do marxismo-leninismo-maoísmo
Lugar de “cale-se”!
10 Aug 2020Por MARIA RITA KEHL: O que seria da democracia se cada um de nós só fosse autorizado a se expressar em relação a temas concernentes a sua experiência pessoal? O que seria do debate público?
A ignorância contra Maria Rita Kehl
15 Feb 2025Por PAULO CAPEL NARVAI: Todos os avôs de quem nasceu no século XX eram eugenistas, incluindo os avôs dos acusadores do avô de Maria Rita Kehl, pois todos eram eugenistas há 100 anos atrás, incluindo os russos os alemães e os estadunidenses
Que IBGE queremos?
14 Feb 2025Por CARLOS VAINER: Ao interromper o processo de criação do IBGE+ e empresariamento do IBGE, o governo federal não recuou; pelo contrário, deu importante passo à frente
Babygirl
12 Feb 2025Por SAULO DOURADO: Comentário sobre o filme de Halina Reijn, em exibição nos cinemas
Nota sobre lugar de fala
14 Feb 2025Por RENATO ORTIZ: O sujeito sociológico pode “falar” de temas os mais diversos, mas sem esquecer que ele não possui o monopólio da interpretação do social
Esboço de auto-análise
15 Feb 2025Por AFRÂNIO CATANI: Comentário sobre o livro de Pierre Bourdieu
Ainda estou aqui – o filme do momento
18 Feb 2025Por FERNÃO PESSOA RAMOS: O filme promoveu o reencontro do país com um passado literalmente insepulto, que teima “estar aqui”
Inflação dos alimentos
17 Feb 2025Por JEAN MARC VON DER WEID: O governo levou muito tempo para se dar conta de que o aumento do custo da alimentação, no domicílio ou fora dele, é muito mais importante, social e politicamente, do que o índice geral usado para medir a inflação
Veja todos artigos de

PESQUISAR

Pesquisar

TEMAS

NOVAS PUBLICAÇÕES