Por MARIANN EDGAR BUDDE*
Sermão da bispa que participou da posse de Donal Trump
“Um dos seus discípulos, André, irmão de Simão Pedro, disse-lhe: “Está aqui um rapaz que tem cinco pães de cevada e dois pequenos peixes. Mas que é isto para tantos”[i]
(João 6:8-9)
No mercadinho perto da minha casa, as pessoas costumam ficar na entrada pedindo ajuda financeira, ou para solicitar assinaturas ou doações para uma causa. Raramente paro para falar com elas. Normalmente, passo no mercado para fazer compras no meu caminho do trabalho para casa ou depois de visitar minha mãe, já com pouca energia sobrando para interagir com alguém.
Este não é um exemplo do que é conhecido como fadiga por compaixão. No meu caso, é simplesmente fadiga. Todos as pessoas próximas a mim sabem como sou quando estou cansada, e basta dizer que não estou no meu melhor momento. Ninguém está, e é por isso que todos nós precisamos de momentos de descanso e renovação.
A fadiga por compaixão, por outro lado, é uma condição emocional causada pelas demandas implacáveis de cuidar dos outros em lugares intensos e altamente estressantes, como em ambientes de saúde e de educação precários, áreas de desastre e zonas de guerra. A fadiga por compaixão pode levar à letargia, depressão e ao abuso de substâncias. Ela geralmente inclui o que é conhecido como “estresse traumático secundário”, quando os cuidadores ficam traumatizados pela exposição contínua ao trauma alheio.
Dada a situação do nosso mundo e o intenso sofrimento de tantas pessoas, aqueles que são chamados a comparecer quando as enchentes chegam, bombas caem, quando a comida acaba, ou quando as balas rasgam a carne humana são os heróis não reconhecidos do nosso tempo. O custo em seus corpos e almas é imenso. Porque tantos contextos de sofrimento podem durar anos, a fadiga por compaixão é agravada pela sensação de que não há fim à vista.
Se você está entre os cuidadores e socorristas do sofrimento humano, ou se você está entre aqueles que dedicam sua vida a abordar as questões mais intratáveis do nosso tempo, obrigado. Que a misericórdia e a compaixão de Deus lhe sustentem, e que você dê permissão a si mesmo para tirar água dos poços que lhe reabastecem,[ii] pois você, também, precisa de descanso. Além disso, lembro a mim mesma e aos outros, quem não estão tão próximos do sofrimento quanto você, de nossa responsabilidade de apoiá-lo e, sempre que possível, de nos juntar ao seu profundo ministério de presença e cuidado.
Mas o descanso não é a única coisa de que precisamos para viver uma vida de compaixão contínua e de proximidade ao sofrimento. Nós também precisamos de esperança. “Esperança”, lembra-nos o estudioso do Antigo Testamento Walter Brueggeman, “não precisa silenciar os rumores da crise para ser esperança”. Na realidade, o oposto disto que é verdadeiro. A esperança é o que nos faz atravessar a tempestade.
Nossos amigos e vizinhos judeus acabaram de celebrar seus dias mais sagrados, ou dias de Awe: Rosh Hashanah, o Ano Novo Judaico, e Yom Kippur, o Dia do Perdão. Fundadora da sinagoga IKAR, na Califórnia, e autora de The Amen Effect, Sharon Brous, uma rabina que admiro muito, pregou um sermão sobre Rosh Hashanah intitulado “uma esperança nascida da profundeza da tristeza”. Ela começou com uma recitação sombria da tristeza do ano passado até que seus ouvintes certamente se perguntaram quando viria a parte esperançosa. Ela reconheceu o quão tentador é, em meio a tanta dor, fechar-se em si mesmo. “O que devemos fazer”, ela perguntou, “quando há incêndios devastando tudo ao nosso redor?”
Foi só então que a rabina Sharon Brous falou de esperança, não como otimismo ou pensamento positivo, mas sim como uma orientação fundamental em direção à vida, enraizada no constante convite feito pelo nosso Deus para que tomemos uma escolha contra o desespero. “Esperança”, ela disse, “não é um sentimento. É um valor central e uma prática espiritual. A esperança deve ser praticada.”
Sharon Brous continuou seu sermão, falando principalmente para aqueles que não estão mais próximos do sofrimento, o qual todos nós lamentamos, mas para aqueles, como a maioria de nós, que está dois ou três passos distantes, e que se pergunta o que se deve fazer. “Não é suficiente”, ela disse, “olhar para os outros com admiração por sua dedicação. Devemos apoiar e ampliar seus esforços.”
Nada é mais desanimador para aqueles mais próximos do sofrimento humano do que suportar a indiferença dos outros, os quais poderiam ser úteis, mas que optam por ignorar ou, pior, dar opiniões cínicas e desinformadas a partir de uma distância segura.
Esperança, no entanto, e a disposição de se estender uma mão, doar recursos, dar uma palavra de encorajamento, pode ser o melhor antídoto para a fadiga por compaixão. Saber que outras pessoas veem o que está acontecendo e que se importam o suficiente para dar a mão, e fazer uma oferta, por menor que seja, estabelece uma tábua de salvação para a comunidade humana, no seu sentido mais amplo. Isto ajuda àqueles que carregam os fardos mais pesados a não se sentirem tão sozinhos.
Sharon Brous concluiu seu sermão com uma citação famosa do renomado autor israelense, Amos Oz, quem foi em sua vida um defensor ferrenho da Solução de dois Estados para Israel e Palestina. Ele, como a rabina Sharon Brous, recusou-se a aceitar que o ódio e a violência devam sempre definir o relacionamento entre israelenses e palestinos.
Uma vez Amos Oz foi questionado, considerando tudo o que está partido no mundo, sobre o que as pessoas deveriam fazer. “Há, de fato, um grande fogo de ódio queimando ao nosso redor”, ele respondeu. “Nossas escolhas são estas: podemos correr para salvar nossas vidas. Podemos escrever uma carta raivosa (ou, em nossos dias, uma postagem nas redes sociais). Ou podemos pegar nosso balde e despejar água no fogo. Se não tivermos um balde, podemos pegar nossa xícara. Se não tivermos uma xícara, podemos pegar uma colherzinha e despejar um pouco de água no fogo.”
Certamente todos nós temos uma colherzinha de esperança e amor para oferecer a este mundo, mesmo quando estamos cansados. Às vezes, podemos até ter uma xícara, e outras vezes um balde. De modo igualmente importante, podemos resistir à tentação do cinismo, a qual serve como uma desculpa conveniente para não se fazer nada.
Não posso prometer que vou interagir ativamente com cada pessoa que está do lado de fora do nosso mercadinho. Mas, escrevendo isso, resolvo fazer o que puder para estar presente e gentil, e de tempos em tempos, fazer por uma pessoa o que gostaria de poder fazer por muitas outras.
E oro para que Cristo mostre a todos nós como fazer nossa oferta de esperança, ampliando e apoiando os esforços daqueles que estão dedicando suas vidas para fazer a diferença onde o sofrimento humano é maior. Nossas pequenas ofertas, aumentadas pela graça, podem fornecer a tábua de salvação necessária para manter a esperança viva onde ela é mais necessária.
*Mariann Edgar Budde é Bispa de Washington da Igreja Episcopal americana
Tradução: Ricardo Evandro S. Martins.
Texto originalmente publicado em 17 de outubro de 2024. Disponível aqui.
Notas do tradutor
[i] BÍBLIA. Evangelho de João. In: Bíblia Sagrada: Novo Testamento. Os quatro Evangelhos. Tradução de Frederico Lourenço. Kindle Edition. São Paulo: Companhia das Letras, 2025.
[ii] Alusão à passagem de Isaías 12:3.
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