Dissonâncias na festa

Imagem: Simon Norfolk (2011)
Whatsapp
Facebook
Twitter
Instagram
Telegram

Por MANUEL DOMINGOS NETO*

O maior desafio de Lula é o exercício do Comando Supremo de corporações armadas estruturalmente hostis à mudança social

Na emocionante encenação do povo subindo ao poder, ninguém ligou para os lanceiros coloniais perfilados, com uniformes idealizados pelo integralista Gustavo Barroso, formando um corredor, enquadrando o cortejo, tipo garrote castrense.

A mulher negra e pobre, apondo a faixa presidencial, parecia dizer: tua lança feriu os meus, mas não me intimidas!

Nos ministérios, discursos de lavar a alma de quem amargou seis anos de implacável ofensiva contra a dignidade humana e a honra nacional. Sílvio Almeida, Nísia Trindade, Flávio Dino, Luciana Santos, Camilo Santana, Cida Gonçalves, Wellington Dias, Marina Silva… todos alimentando a vontade de futuro promissor.

A composição heterogênea não esmaeceu a impressão de um país que volta a sorrir. Os moderados Fernando Haddad e Simone Tebet mantiveram o clima. Geraldo Alckmin apontou a perspectiva do desenvolvimento e da industrialização. A esperança foi injetada na veia. Os lutadores pela democracia lacrimejamos alegres.

Já um privatista presidindo a Petrobrás… Por que entregar-lhe a empresa que pode afetar positivamente a vida brasileira? Lula declarou o fim das privatizações, mas o destino da empresa essencial persiste obscuro.

A entrega da inteligência de Estado a um militar… Trata-se de atividade indispensável à condução do Estado e à sustentação do governo! O general escolhido trairá seus camaradas que, em “aproximações sucessivas”, há mais de um século desbancam governantes?

Em matéria de dissonâncias, a mais cabreira ocorreu na Defesa. O ministro apresentou-se como “representante” das corporações armadas. Jogou às favas a soberania popular constitucionalmente assegurada. Naturalizou movimentos criminosos diante dos quartéis, enalteceu seu antecessor (um general que tentou melar as eleições) e garantiu a continuidade de orientações estratégicas que não defendem o Brasil.

As solenidades de posse de José Múcio Monteiro e do novo comandante da Aeronáutica ignoraram acintosamente o comandante supremo das Forças Armadas. Nenhum oficial pronunciou o nome de Lula. Enalteceram suas próprias figuras e santificaram suas corporações.

O poder político continua sem perceber a incompatibilidade entre a construção de um país democrático e soberano e as estruturas orgânicas e funcionais do Estado, com destaque para seus instrumentos de força.

O poder político imagina que tais estruturas se movem apenas em busca de boquinhas, de desígnios pequenos, da pura vontade de tutelar. Considera, ingenuamente, que tudo estaria resolvido com o afastamento de oficiais de cargos públicos e com “mudanças nos currículos” de escolas militares.

Não ousam admitir que o Estado não representa a vontade geral: foi concebido para manter a escravidão, o baronato patriarcal e o enquadramento do país à uma ordem internacional imposta pela potência mais poderosa.

As corporações armadas do Estado brasileiro nunca o traíram. Sempre que o perceberam ameaçado, agiram com vigor. Sua missão permanente foi e persiste sendo o sufocamento de rebeldias ou mesmo de mudanças brandas. Daí os enfileirados não sentirem remorso com as atrocidades que praticaram. Daí insistirem em efemérides que ressaltam conflitos entre os nacionais.

A preservação das estruturas militares brasileiras tal como estão é incompatível com o combate à pobreza e ao racismo. Sem juventude pobre e sem arrimo, sem negros inferiorizados, o sistema de recrutamento, que preserva o feitio colonial, não resistiria. Quem abdicaria de carreira promissora para prestar o serviço militar? Que empresário, médico ou juiz gostaria de ver seu filho ouvindo gritos de sargentos e oficiais, faxinando quartéis, atrasando sua vida acadêmica?

A liberdade e a dignidade da mulher são incompatíveis com as corporações armadas que cultuam o legado colonial. Tal como a carreira militar está estruturada, nenhum oficial se casaria com mulher que rejeite viver na dependência do marido, um funcionário obrigado a uma vida itinerante, sem chance de criar vínculos com a sociedade. Quando os militares dizem que a esquerda quer destruir a família, exaltam a índole patriarcal e criminalizam os modelos familiares que as mudanças sociais vão impondo.

A defesa da condição LGBTQIA+ é incompatível com o castro mantido pelo Estado brasileiro: tumultuaria as regras de promoção hierárquica. Gay assumido não tem vaga na carreira.

A política externa “ativa e altiva” também é incompatível com os instrumentos de força do Estado brasileiro, sobretudo desde que foram modernizadas, entre as duas guerras mundiais, pela França. Por que uma potência imperialista modernizaria um aparato militar capaz de contrapor seus desígnios? A modernidade então alcançada apenas serviu para o monopólio interno da força, revelado inequivocamente em 1932, com a submissão dos paulistas.

A modernização não serviu à Defesa Nacional. Por maior e mais desenvolvido que seja, o Estado que depende de armas alheias não passa de um protetorado. Essa é hoje a condição Alemanha, do Japão, do Reino Unido…

Em termos de capacidade dissuasória, há dois tipos de Estado: os que fabricam e vendem armas e os que não fabricam e compram armas. Os primeiros, mandam, os demais fortalecem o mando dos primeiros. Ce n´est pas, monsieur Macron?

Ocioso lembrar, um governo que decida comprar aviões e barcos dos que desafiam Washington sentirá a mão pesada do Pentágono. O mesmo quanto a qualquer parceria estratégica que amplie a capacidade de dissuasão. Não há habilidade diplomática que drible esta contingência. Certo, Celso Amorim?

O maior desafio de Lula é o exercício do Comando Supremo de corporações armadas estruturalmente hostis à mudança social. É compreensível, mas não é aceitável seu esforço de contemporização. Os comandos militares, ficando por conta própria, as promessas explicitadas na subida da rampa serão fátuas. A negra catadora Aline Sousa será ludibriada. Os lanceiros coloniais vestidos pelo integralista Gustavo Barroso prevalecerão.

A expressão “tutela militar” precisa ser compreendida em seu sentido mais profundo: trata-se, sobretudo, de impor padrões sociais ao gosto do Estado que concebeu as fileiras para submeter o povo.

Disso resulta que, ou o poder político molda os instrumentos de força do Estado ou os quartéis, outorgando-se a condição de pais da pátria, persistirão empenhados em moldar a sociedade.

Lula é de uma inteligência rara e de uma sensibilidade política legendária. É líder inconteste dos brasileiros. Que compreenda rapidamente ser impossível declinar da atribuição de comandante dos generais.

*Manuel Domingos Neto é professor aposentado da UFC, ex-presidente da Associação Brasileira de Estudos de Defesa (ABED) e ex-vice-presidente do CNPq.

 

O site A Terra é Redonda existe graças aos nossos leitores e apoiadores.
Ajude-nos a manter esta ideia.
Clique aqui e veja como

Veja neste link todos artigos de

10 MAIS LIDOS NOS ÚLTIMOS 7 DIAS

__________________
  • Um estudo do caso Ailton Krenak1974__Identidade ignorada 21/07/2024 Por MARIA SILVIA CINTRA MARTINS: Prefiro sonhar com Krenak o parentesco com a natureza e com as pedras do que embarcar na naturalização do genocídio
  • Clarice Lispector no cinemacultura a paixão segundo g.h. 22/07/2024 Por LUCIANA MOLINA: Comentário sobre três adaptações cinematográficas da obra de Clarice Lispector
  • O princípio de autodestruiçãoLeonardo Boff 25/07/2024 Por LEONARDO BOFF: Qual ciência é boa para a transformação mundial?
  • Filosofia da práxis como poiésiscultura lenora de barros 24/07/2024 Por GENILDO FERREIRA DA SILVA & JOSÉ CRISÓSTOMO DE SOUZA: Fazer filosofia é, para o Poética, fazer filosofia contemporânea, crítica e temática
  • Que horas são no relógio de guerra da OTAN?José Luís Fiori 17/07/2024 Por JOSÉ LUÍS FIORI: Os ponteiros do “relógio da guerra mundial” estão se movendo de forma cada vez mais acelerada
  • Apagão digitalSergio Amadeu da Silveira 22/07/2024 Por SÉRGIO AMADEU DA SILVEIRA: A catástrofe algorítmica e a nuvem do “apagão”
  • A disputa de Taiwan e a inovação tecnológica na ChinaChina Flag 20/07/2024 Por JOSÉ LUÍS FIORI: A China já é hoje a líder mundial em 37 das 44 tecnologias consideradas mais importantes para o desenvolvimento econômico e militar do futuro
  • A produção ensaística de Ailton Krenakcultura gotas transp 11/07/2024 Por FILIPE DE FREITAS GONÇALVES: Ao radicalizar sua crítica ao capitalismo, Krenak esquece de que o que está levando o mundo a seu fim é o sistema econômico e social em que vivemos e não nossa separação da natureza
  • A radicalidade da vida estéticacultura 04 20/07/2024 Por AMANDA DE ALMEIDA ROMÃO: O sentido da vida para Contardo Calligaris
  • A questão agrária no Brasil — segundo Octávio IanniJose-Raimundo-Trindade2 19/07/2024 Por JOSÉ RAIMUNDO TRINDADE: As contribuições de Ianni podem auxiliar a reformular o debate agrário brasileiro, sendo que as obras do autor nos apontam os eixos para se repensar a estrutura fundiária brasileira

PESQUISAR

TEMAS

NOVAS PUBLICAÇÕES