O antiestatismo da burguesia liberal

image_pdf

Por JOÃO QUARTIM DE MORAES

A utopia reacionária do Estado mínimo voltou ao centro da cena política do Cone Sul com a ascensão do ultraliberal Javier Milei à presidência da Argentina

1.

A burguesia é espontaneamente privatista: sua posição de classe se determina pela propriedade privada dos meios de produção, grandes, médios e pequenos. O Estado é público. Como a República. As modalidades mais mesquinhas e filisteias da mentalidade burguesa preconizam reduzir a função do Estado à manutenção da ordem pública, que elas identificam à defesa da propriedade. O peso político dessa mentalidade reacionária tende a crescer com os avanços da direita, embora nem toda a direita seja “anarco-capitalista”.

A utopia reacionária do Estado mínimo voltou ao centro da cena política do Cone Sul com a ascensão do ultraliberal Javier Milei à presidência da Argentina. Demagogo agressivo, sem medo de proclamar chavões mofados, ele se dispôs a desmantelar tudo que na esfera pública excedia as funções repressivas da máquina estatal, mostrando para que serve a retórica “anti-autoritária”e anti-estatal da vulgata ideológica burguesa.

Evidentemente, seu antiestatismo não vai a ponto de prescindir da polícia e de tropas de choque para dissolver manifestações de protesto. Declarou pretender dolarizar a Argentina, como já tentara seu predecessor Carlos Menem, de infausta memória. Conseguiu fazer baixar a inflação de 211,4% em 2023 a 111,87% em 2024, mas com um custo econômico e social elevadíssimo. Mais da metade da população argentina se encontra abaixo da linha da pobreza; 18% está reduzida à indigência. Mais uma vez confirma-se: Estado mínimo= pobreza máxima.

2.

Como assinalamos no artigo anterior desta série “A ditadura e a estatização capitalista” a expectativa de que a ditadura militar desencadeasse uma privatização em larga escala das empresas estatais não se concretizou. Ao contrário. No suplemento anual intitulado “Quem é quem” (na economia brasileira), relativo a 1975, a revista econômica Visão apresentou uma classificação das 100 maiores empresas do Brasil durante o período 1968-1974, segundo a propriedade do capital.

Neste período, as estrangeiras baixaram de 37 a 27; as nacionais ficaram entre 26 e 28 e as estatais avançaram de 37 a 45. Não foi, pois, em detrimento das empresas nacionais, mas das estrangeiras, que o capitalismo estatal avançou. Não obstante, como também mencionamos em “A ditadura e a estatização capitalista”, o ideólogo ultraliberal Eugenio Gudin lançou, no final de 1974, uma campanha contra a estatização da economia que teve forte apoio da alta burguesia paulista.

Quatro anos antes de Eugenio Gudin, os banqueiros já haviam desencadeado protestos contra o avanço da “estatização” do crédito. Otávio Gouvea de Bulhões, outro liberal reacionário, que tinha sido ministro da Fazenda do ditador Castelo Branco, declarou à revista Visão de 6 de junho de 1970 que os bancos privados não podiam mais contar com depósitos a prazo “por causa da ingerência dos bancos estatais”.

Daí a multiplicação de agências privadas para recolher depósitos de pequenos poupadores. O número dessas agências passou de 2.411 em 1950 a 5.820 em 1969. Isso explicaria, segundo Bulhões, o aumento do custo dos serviços bancários. Logo em seguida, Mundo Econômico (de julho-agosto 1970) publicou um grande estudo sobre “o avanço da estatização”, analisando sob múltiplos aspectos esse “fato inquietante”, particularmente a respeito da “estatização do crédito”. Com efeito, nada mais inquietante para os banqueiros e seus prepostos do que perder os ganhos de financiamentos à atividade econômica.

Os industriais não manifestaram apoio ao protesto dos banqueiros por uma razão muito simples. O Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), fundado em 20 de junho de 1952, quando Getúlio Vargas era presidente, financiava as empresas nacionais com juros bem inferiores aos do mercado de capitais. Em 1962, o BNDES financiava cerca de 2,2% da formação bruta do capital fixo no Brasil. No final de 1974, quando começava a campanha privatista, a participação do BNDES no financiamento do capital fixo passara a 8%.

Só um estudo acurado do financiamento da indústria no momento em que Eugenio Gudin lançou seu grito de guerra contra a estatização pode mostrar se os grandes industriais tinham ou não motivos econômicos para se juntar ao movimento. Parece-nos que foram sobretudo as dificuldades da balança comercial e do endividamento externo (legado de Delfim Neto, vale insistir), bem como a queda da taxa de crescimento da economia, que juntaram os setores de mais peso da burguesia na campanha privatista.

Reforçando a campanha liberal, o jornal O Estado de São Paulo lançou uma série de onze grandes artigos sobre os “caminhos da estatização”, publicados de 16 de fevereiro a 2 de março de 1975. Os artigos examinam a presença do Estado nos diferentes setores da economia: sistema bancário, comunicações, transportes, mineração, siderurgia etc. Em campanha muito bem orquestrada, o jornal multiplicou as reportagens, entrevistas, investigações, artigos de fundo, editorias, documentos e tomadas de posição do governo e do patronato.

Os círculos dirigentes da grande indústria aderiram à campanha: a FIESP difundiu um comunicado, na comemoração de 7 de setembro de 1975, lamentando que o Estado estava intervindo “em setores tradicionalmente deixados à iniciativa privada”. O Estado de São Paulo, com sua tenacidade reacionária, retomou a campanha publicando mais uma série de artigos de 4 a 7 de março de 1976.

Os títulos dispensam comentários: “Maior que a Petrobrás, só o Brasil” (5/3); “Os tecnocratas no poder” (7/3). Além de Geisel, o principal “tecnocrata no poder” era o ministro da Planificação Reis Veloso. Este respondeu às críticas observando que as empresas estatais, embora dispusessem de 49,5 dos ativos em uma amostragem de 1.000 empresas grandes e médias, tinham um faturamento de apenas 23% do total, porque operavam em setores que exigiam fortes investimentos fixos com lenta maturação do capital investido.

A importância, ontem e hoje, do debate sobre a estatização no capitalismo parece-nos suficientemente evidente para dispensar argumentos comprobatórios. Ainda assim, não deixa de ser interessante assinalar que Werner Baer, um dos mais prestigiosos “brasilianistas” estadunidenses, consultor da Ford Foundation e, portanto, insuspeito de qualquer simpatia pelo estatismo, publicou em Visão (42),4, 26 de fevereiro de 1973, o artigo “Uma visão de fora: como e porque houve o ‘boom’ econômico de 1968”.

Ele ali declara categoricamente que os investimentos do setor estatal em energia elétrica, siderurgia, petroquímica, rodovias e construção “constituíram os principais fatores do ‘boom’ econômico (de 1968-1972)”, acrescentando que “o comportamento eficaz e agressivo das empresas governamentais […] constitui a chave do ‘boom’ ” .

*João Quartim de Moraes é professor titular aposentado do Departamento de Filosofia da Unicamp. Autor, entre outros livros, de Lênin: uma introdução (Boitempo). [https://amzn.to/4fErZPX]

Para ler o primeiro artigo desta série, clique aqui.

Para ler o segundo artigo desta série, clique aqui.

Para ler o terceiro artigo desta série, clique aqui

Para ler o quarto artigo desta série, clique aqui.


A Terra é Redonda existe graças aos nossos leitores e apoiadores.
Ajude-nos a manter esta ideia.
CONTRIBUA

Veja todos artigos de

MAIS LIDOS NOS ÚLTIMOS 7 DIAS

1
O segundo choque global da China
06 Dec 2025 Por RENILDO SOUZA: Quando a fábrica do mundo também se torna seu laboratório mais avançado, uma nova hierarquia global começa a se desenhar, deixando nações inteiras diante de um futuro colonial repaginado
2
Simulacros de universidade
09 Dec 2025 Por ALIPIO DESOUSA FILHO: A falsa dicotomia que assola o ensino superior: de um lado, a transformação em empresa; de outro, a descolonização que vira culto à ignorância seletiva
3
A guerra da Ucrânia em seu epílogo
11 Dec 2025 Por RICARDO CAVALCANTI-SCHIEL: A arrogância ocidental, que acreditou poder derrotar a Rússia, esbarra agora na realidade geopolítica: a OTAN assiste ao colapso cumulativo da frente ucraniana
4
Uma nova revista marxista
11 Dec 2025 Por MICHAE LÖWY: A “Inprecor” chega ao Brasil como herdeira da Quarta Internacional de Trotsky, trazendo uma voz marxista internacionalista em meio a um cenário de revistas acadêmicas
5
Raymond Williams & educação
10 Dec 2025 Por DÉBORA MAZZA: Comentário sobre o livro recém-lançado de Alexandro Henrique Paixão
6
A riqueza como tempo do bem viver
15 Dec 2025 Por MARCIO POCHMANN: Da acumulação material de Aristóteles e Marx às capacidades humanas de Sen, a riqueza culmina em um novo paradigma: o tempo livre e qualificado para o bem viver, desafio que redireciona o desenvolvimento e a missão do IBGE no século XXI
7
A crise do combate ao trabalho análogo à escravidão
13 Dec 2025 Por CARLOS BAUER: A criação de uma terceira instância política para reverter autuações consolidadas, como nos casos Apaeb, JBS e Santa Colomba, esvazia a "Lista Suja", intimida auditores e abre um perigoso canal de impunidade, ameaçando décadas de avanços em direitos humanos
8
Norbert Elias comentado por Sergio Miceli
14 Dec 2025 Por SÉRGIO MICELI: Republicamos duas resenhas, em homenagem ao sociólogo falecido na última sexta-feira
9
Asad Haider
08 Dec 2025 Por ALEXANDRE LINARES: A militância de Asad Haider estava no gesto que entrelaça a dor do corpo racializado com a análise implacável das estruturas
10
A armadilha da austeridade permanente
10 Dec 2025 Por PEDRO PAULO ZAHLUTH BASTOS: Enquanto o Brasil se debate nos limites do arcabouço fiscal, a rivalidade sino-americana abre uma janela histórica para a reindustrialização – que não poderemos atravessar sem reformar as amarras da austeridade
11
Ken Loach: o cinema como espelho da devastação neoliberal
12 Dec 2025 Por RICARDO ANTUNES: Se em "Eu, Daniel Blake" a máquina burocrática mata, em "Você Não Estava Aqui" é o algoritmo que destrói a família: eis o retrato implacável do capitalismo contemporâneo
12
A anomalia brasileira
10 Dec 2025 Por VALERIO ARCARY: Entre o samba e a superexploração, a nação mais injusta do mundo segue buscando uma resposta para o seu abismo social — e a chave pode estar nas lutas históricas de sua imensa classe trabalhadora
13
Impactos sociais da pílula anticoncepcional
08 Dec 2025 Por FERNANDO NOGUEIRA DA COSTA: A pílula anticoncepcional não foi apenas um medicamento, mas a chave que redefiniu a demografia, a economia e o próprio lugar da mulher na sociedade brasileira
14
Benjamim
13 Dec 2025 Por HOMERO VIZEU ARAÚJO: Comentário sobre o livro de Chico Buarque publicado em 1995
15
Violência de gênero: além do binarismo e das narrativas gastas
14 Dec 2025 Por PAULO GHIRALDELLI: Feminicídio e LGBTfobia não se explicam apenas por “machismo” ou “misoginia”: é preciso compreender como a ideia de normalidade e a metafísica médica alimentam a agressão
Veja todos artigos de

PESQUISAR

Pesquisar

TEMAS

NOVAS PUBLICAÇÕES