Flow

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Por ANNATERESA FABRIS*

Considerações sobre o filme de Gints Zilbalodis, em exibição nos cinemas.

1.

Um dos aspectos que chama logo a atenção em Flow (Straume) é a ausência de diálogos, substituídos por miados, latidos, coaxos, guinchos, gemidos, chilreios, mais adequados à condição dos protagonistas – um grupo heterogêneo de animais que tenta sobreviver a uma enchente repentina num veleiro à deriva – e de outros bichos presentes na natureza.

O diretor Gints Zilbalodis acredita que a ausência de diálogos tornou Flow “um filme mais cinematográfico”, isto é, capaz de restituir ao cinema seu caráter primordial: som e imagem. Além disso, a opção pela animação computadorizada permitiu utilizar movimentos de câmera mais complicados do que numa realização live-action e fazer experimentos com a música e com o som.

A intenção de fazer um desenho animado não antropomórfico levou o diretor letão a optar pela gravação das vocalizações das espécies protagonistas da narrativa – um gato esquivo e pouco sociável, um cão desajeitado e infantil, uma capivara calma e segura de si, um lêmure inseguro e colecionador de tralhas, um pássaro secretário altivo e solitário –, o que se traduziu em alguns desafios para o engenheiro de som Gurwal Coïc-Gallas, incumbido de buscar sons específicos para cada tipo de emoção.

Sabe-se que os sons do gato foram gravados na própria casa, que os lêmures só emitiram três vocalizações distintas e que a maior dificuldade foi apresentada pela capivara, cujo registro não se coadunava com a personalidade da personagem. Como lembra Gints Zilbalodis, nesse caso foi necessário tomar “algumas liberdades artísticas” porque a voz “era muito estridente e desagradável e esse personagem é muito calmo e pacífico. Precisávamos de algo mais profundo, então a voz da capivara é um filhote de camelo”.

De acordo com o diretor, a decisão de apresentar o mundo a partir do ponto de vista animal tornou “as coisas mais emotivas, inclusive porque o gato é pequeno e, portanto, tudo parece maior e as abordagens, mais importantes”. Mergulhados no eterno presente, característico de sua condição, os animais foram concebidos a contrapelo da costumeira técnica de animação 3D fotorrealista.

Sua textura chapada e pixelada, destituída de detalhes, está bem distante das pelagens e das plumagens de alta resolução, próximas da realidade por seu aspecto irretocável, de tantas realizações recentes, das quais o exemplo mais emblemático é Mufasa: o rei leão (Mufasa: the lion king, 2024). Esse estilo de desenho “um pouco mais rústico” é considerado por Luiz Santiago congenial a um enredo que pretende transmitir “uma visão que abarca e aceita as imperfeições, a diversidade de perspectivas nas relações e a transitoriedade da vida”.

Se a aparência dos animais não é fotorrealista, seu comportamento, porém, é captado com precisão pelos animadores capitaneados por Léo Silly-Pélissier, os quais realizaram uma pesquisa exaustiva na internet sobre a movimentação e a expressão dos animais. O gatinho preto, de olhos cor de âmbar, por exemplo, passeia pela floresta, caça, foge de uma matilha de cachorros, sobe em árvores, dorme, lambe-se, salva-se de uma debandada de veados, obedece ao instinto de sobrevivência quando se defronta com uma enchente avassaladora, estira-se, vomita, brinca, aprende a nadar e a pescar com a gestualidade própria de sua natureza.

Isso não impede que seus movimentos realistas, assim como os de seus companheiros, sejam vistos em termos teatrais por Gabriele Niola. De acordo com este: os animais “entram e saem do enredo e das cenas como se estivessem no teatro, com um pouco de ênfase e cada um do seu jeito”.

À estilização da aparência dos animais contrapõe-se o tratamento realista dos ambientes e da natureza, repletos de detalhes e próximos de uma visualidade pictórica para a qual David Rooney evocou o nome do artista dinamarquês Peder Mork Monsted. Conseguido com desenhos feitos à mão, esse realismo traduz-se, para Angelica Arfini, em sensações táteis que emanam da relva, da água, do sol e da chuva.

Nesse contexto, sobressai o tratamento dado à água por apenas dois animadores, quando o habitual nos grandes estúdios são dezenas de profissionais envolvidos na tarefa. A água, que dita o ritmo da narrativa, é uma massa densa quando aparece sob forma de enchente; quando se encapela durante as tempestades que põem em risco a vida dos animais transportados pelo barco; quando se transforma em cataratas impetuosas graças a uma falha geológica, que a drena, fazendo emergir de novo a floresta. Mas ela é também uma extensão tranquila, ao ser singrada pela embarcação dos bichos. Os efeitos mais notáveis são obtidos nas sequências submarinas, quando se torna translúcida, iluminada pelos raios do sol e salpicada pelas cores dos inúmeros peixes que habitam suas profundezas.

Gints Zilbalodis não se valeu de recursos sofisticados para realizar o processo de animação. Ao contrário, utilizou o software gráfico Blender, que trabalha em tempo real, não permitindo um tratamento mais detalhista e refinado dos animais e dos cenários. A operação desenvolveu-se em duas etapas: a pré-visualização do filme, com enquadramentos e tomadas, feita no software; a animação, realizada em estúdios franceses e belgas. A renderização, ou seja, a finalização do processo, foi executada no notebook do diretor, mas isso não impediu que o filme tivesse sugestões táteis e pictóricas.

2.

Diversos artigos sobre o filme lançado em 2024 ressaltam a relação entre sua visualidade e a dos videogames, com destaque para o nome do designer japonês Fumito Ueda, autor de Ico (2001), Shadow of the colossus (2005), The last guardian (2016), cujos traços distintivos são a economia de enredo e roteiro, o uso de diálogos mínimos, de línguas fictícias e de uma luz superexposta e dessaturada. Essa relação é visível sobretudo nos planos-sequência que podem durar até cinco minutos, graças aos quais Flow se organiza como um jogo, levando a uma imersão no corpo “ao mesmo tempo temeroso e explorador do gato”, como sublinha Valentine Guégan.

Quem se debruça mais sobre essa questão é Gabriele Niola, que põe em foco três elementos: baixa resolução e iluminação escassa; implicações fantásticas do final; concentração nos movimentos, usados para comunicar a visão que o diretor tem dos personagens.

A água desempenha um papel fundamental no enredo, sendo portadora de dois significados simbólicos ambivalentes: fonte de vida e fonte de morte, criadora e destruidora. É significativo que no filme o motivo apareça, a princípio, como prenúncio de provações e grandes calamidades e, a seguir, como uma corrente benéfica e calma, que sugere paz e ordem, embora com momentos de tensão representados pelas tempestades e pela súbita drenagem que faz a floresta voltar à tona.

Visto dessa maneira, o motivo é um elemento determinante da narrativa, pois está na base dos acontecimentos que levam os protagonistas a empreender uma jornada que lhes ensina a deixar de lado suas diferenças e a formar um grupo para poder sobreviver numa natureza imprevisível, capaz de provocar a morte com sua fúria cega e favorecer a vida na qualidade de fonte de alimentos. Pode ser destacada nesse sentido a sequência em que o gato, que aprendeu a nadar depois de cair diversas vezes na água, mergulha para prover a alimentação sua e dos demais passageiros do barco, pescando peixes de diferentes espécies, que deposita no convés e oferece aos companheiros de jornada.

Elemento transformador tanto da natureza quanto dos habitantes do barco, que aprendem a necessidade da cooperação, a água desempenha outra função importante, realçada por Valentine Guégan: devolve à terra sua continuidade original, apagando territórios e culturas e tornando possível o encontro de diferentes espécies, provenientes de diversos lugares do globo terrestre. Se gato e cão estão presentes em todos os continentes, a capivara provém da América do Sul e o lêmure e o pássaro secretário, da África, formando uma comunidade que desconhece fronteiras e barreiras.

Gints Zilbalodis acrescenta um dado a esse quadro, ao afirmar que a escolha dos animais levou em conta a possibilidade de sua interação. Era importante que eles fossem diferentes em termos visuais e vocais, mas não poderiam ser antagonistas, pois deveriam formar um grupo.

A singular arca de Noé, na qual os animais não têm par, destaca-se não só pelo convívio de espécies diversas, mas também pela ausência de seres humanos, o que leva a imaginar um cenário pós-apocalíptico, cujas causas são desconhecidas pelo público. No início do filme, a caminhada do gato pela floresta é pontilhada de vestígios humanos sob forma de estátuas de felinos de tamanhos variados. Outro indício é a cabana abandonada, que deveria ser seu lar, na qual entra por uma janela para dormir numa cama desfeita. Na habitação, provavelmente pertencente a um artista veem-se , em cima de uma mesa, o desenho de um gato e uma pequena escultura não terminada, que dão a impressão de uma saída repentina e inesperada.

Durante a navegação, o gato e seus companheiros defrontam-se com objetos de vidro carregados pelo lêmure numa cesta e com os edifícios antigos e suntuosos de uma cidade semi-submersa, que remetem a uma civilização sofisticada, mas possivelmente extinta. O texto publicado no podcast “Le regard culturel” lembra que os próprios animais domésticos podem ser considerados vestígios humanos, obrigados a sobreviver, como as demais espécies, numa natureza que voltou ao estado original. Essa ideia encontra reforço nas sequências em que o golden retriever brinca com uma bola de vidro e uma espécie de pião, e o gato, com um reflexo de sol emitido pelo espelho segurado pelo lêmure, remetendo a jogos realizados em parceria com seres humanos.

É significativo que o personagem principal seja o gato, animal arisco e desconfiado que, a princípio, recusa a amizade do cachorro que o seguira, em vão, até a cabana. Acolhido por uma capivara tranquila no barco à deriva, adapta-se, aos poucos, ao convívio com ela e com os outros animais que vão engrossando o grupo ao longo da viagem. Tem início, assim, um processo de aprendizado da alteridade, que consiste em tentar estabelecer uma comunicação por meio de comportamentos e expressões, já que cada animal tem um código fônico próprio.

Um princípio de solidariedade, não isento de tensões, começa a despontar na pequena comunidade. A capivara, que ensinara o gato a nadar, apanha um casco de bananas com a força de seus incisivos e o deposita no barco. Depois de cair na água, o felino é salvo do afogamento por uma baleia. O lêmure é convidado pela capivara (que o ajuda a juntar objetos de vidro numa cesta) a subir no barco. Ao atracar na costa, o pequeno grupo é alcançado pelo cachorro. O pássaro secretário, que agira como predador no episódio do resgate pela baleia, oferece um peixe ao gato e é hostilizado pelos companheiros do bando; ferido num duelo, tem a asa quebrada e se incorpora ao grupo.

A vida no barco nem sempre é pacífica. O lêmure discute com o pássaro quando este chuta para fora da embarcação a bola de vidro com a qual o cão estava brincando. O veleiro encalha numa árvore, mas é libertado pelo pulo da baleia. O gato torna-se o provedor com sua habilidade para apanhar peixes. O grupo acolhe os demais cachorros da matilha que perseguira o gato no começo do filme, apesar da discordância da ave. Durante uma tempestade, esta voa para fora do barco e alcança a costa. O gato, que caíra na água, nada até a costa e encontra o pássaro, que recuperara a capacidade de voar. Um vórtice de luz multicolorido eleva os dois animais, mas logo em seguida o gato é devolvido à terra.

Sozinho, ele vagueia pela floresta até encontrar o lêmure que o leva até um penhasco em que o barco estava parado em cima de uma árvore. O gato tenta retirar o veleiro da árvore; os cães conseguem saltar, mas a capivara fica presa. O esforço conjunto fica prejudicado quando os cães, exceto o golden retriever, saem atrás de um coelho, mas a capivara é salva antes que a árvore caia no penhasco. Sozinho, o gato encontra a baleia agonizante por ter encalhado na floresta com o refluxo repentino das águas e a conforta.

A capivara, o cão e o lêmure juntam-se a ele; os quatro olham para o próprio reflexo numa poça d’água, configurando um “retrato de grupo”,[1] que se contrapõe à primeira imagem do filme, na qual o gato se reflete sozinho na água, e a outras que aparecem ao longo do filme associadas a contemplações individuais num espelho. Numa sequência pós-créditos, vê-se a baleia emergindo no oceano, possivelmente para sugerir o valor da solidariedade no restabelecimento do equilíbrio natural e comunitário.

A transição do uno para o múltiplo representa a superação do individualismo de cada animal envolvido na aventura em prol de uma coletividade feita de seres diferentes, na qual as divergências são atenuadas pela necessidade de um viver comunitário. A não ser a capivara, que não sofre modificações ao longo da narrativa, continuando calma e prestativa, os demais animais são afetados em seus comportamentos pelo convívio. O cão deixa de ser carente e dependente e demonstra ter aprendido o significado da solidariedade no episódio do veleiro encalhado na árvore.

O lêmure transforma-se num animal menos ansioso, conseguindo abandonar o “tesouro” do qual não se separava. O pássaro, depois de observar de longe a pequena família, parece desculpar-se com o gato na sequência do peixe, que determina sua saída do bando e sua associação com os novos companheiros.

3.

À luz desses elementos, é possível avalizar a leitura proposta no podcast “Le regard culturel”. Embora os protagonistas tenham um comportamento animal, eles servem de suporte a uma fábula que vai além de uma mensagem apenas animalista. Cria-se entre eles “a elaboração de uma forma de contrato social, com as noções de propriedade, partilha, interesse”. Visto dessa perspectiva, o mundo de Flow não é simplesmente apocalíptico; supõe uma gênese, ao convidar a pensar “numa renovação política, alicerçada na solidariedade, que não é apenas a ideia de uma coabitação entre espécies, mas uma ideia mais radical, [situada] na intersecção entre uma reflexão sobre o vivente e a filosofia política”.

Zilbalodis, de resto, tinha revelado desígnios parecidos com essa análise, ao afirmar: “Não queria também uma narrativa pós-apocalíptica demasiado sombria: eu fazia questão de mostrar os aspectos positivos da natureza […]. Eu desejava, sobretudo, encontrar um equilíbrio entre a devastação, a esperança, o humor, a comédia e a ação, que tornasse o filme verdadeiramente apaixonante”, despertando nas pessoas a vontade de assisti-lo. Além do significado simbólico, o tema da cooperação tem um significado pessoal para ele que, pela primeira vez, dispunha de uma equipe grande e de um orçamento adequado: “Queria contar a história de minha experiência de trabalhar em conjunto com outras pessoas e de confiar nelas. Achei que o gato seria o protagonista perfeito porque ele gosta de fazer as coisa do próprio jeito”.

Sem pretensões didáticas, o filme abarca diversas temáticas contemporâneas – crise climática, superação de diferenças, transformação do egoísmo em colaboração, adaptação, valor da amizade –, num convite a rever nossas posturas num cenário de perigo global, privilegiando o entendimento e buscando o equilíbrio num universo repleto de conflitos e de ódio pelo diferente e pelo divergente.

Essas temáticas levaram Valentine Guégan a detectar no filme a presença de um antropomorfismo aparentemente negado pelo tratamento realista dos animais como animais. Sua análise tem como motivo a violência do bando de pássaros, fechados nas normas do próprio clã, em contraposição ao “modelo de civilização alegorizada pela tripulação do barco, à medida que seus ocupantes se individualizam e aceitam seus antagonismos”.

A personalização dos animais faz com que o filme caia, por fim, “na armadilha do antropomorfismo”, levando-a a concluir que “Esses momentos enfraquecem o esforço que o realizador faz, aliás, para desfamiliarizar o olhar que o homem e, com ele, o cinema de animação, lança sobre o reino animal”. Mesmo que parcialmente, Flow mostra que o esforço para abandonar o modelo humano, “embora perigoso, está ao alcance da mão”.

Existem, sem dúvida, algumas sugestões antropomórficas na película; a mais evidente consiste no manejo do timão do veleiro por todos os animais em momentos cruciais. Outra, de caráter simbólico, é vivenciada pelo gato, que se depara com a morte em duas oportunidades: na ascensão do pássaro secretário num vórtice de luz, que proporciona uma experiência mística; na agonia mais crua da baleia, que o confronta, sem mediações, com a finitude da vida. Em termos gerais, porém, o filme apresenta os protagonistas em sua condição animal por meio da captação precisa de comportamentos e vocalizações.

4.

Mesmo realizando uma animação alheia aos modelos dos Estúdios Disney e da Pixar, Gints Zilbalodis não inova nesse sentido, pois existem exemplos anteriores de filmes que se pautaram pela reprodução realista do comportamento animal. É o caso de algumas produções do Estúdio Disney das décadas de 1930-1940: Pinóquio (Pinocchio), lançado em 1940, no qual o gatinho Figaro é destituído de características humanas; e, particularmente, de Bambi (1942), em cuja realização se nota um grande empenho realista na reprodução dos movimentos dos animais.

Além de assistirem a uma conferência sobre a estrutura e os movimentos dos animais, ministrada pelo idealizador do desenho do pequeno veado, Rico LeBrun, os animadores visitaram o zoológico de Los Angeles e tiveram à disposição um minizoológico no próprio local de trabalho, onde podiam buscar informações de primeira mão.

O mesmo cuidado realista foi utilizado em outra produção do estúdio datada de 1967, Mogli, o menino lobo (The jungle book). Desenhos de elefantes, gráficos de comparação anatômica e documentários sobre orangotangos, filmagens de panteras, tigres e ursos foram usados na produção da animação para reforçar a sensação de realidade buscada pelos realizadores, embora a concepção fosse antropomórfica. Usando os mesmos elementos, com variações quase imperceptíveis, o artista visual David Claerbout criou a animação A pura necessidade (Die reine Notvendigkeit, 2016)[2], na qual devolveu os animais do filme de 1967 à sua condição original, entretidos simplesmente em ações de sobrevivência, sem nenhuma caracterização antropomórfica.

O tema da cooperação, central no enredo de Flow, inscreve-o num filão bastante explorado nos últimos tempos, dentro do qual se destacam duas realizações animadas do mesmo ano: a norte-americana Mufasa: o rei leão e a brasileira A arca de Noé. Em ambas, a união dos mais fracos permite derrotar as pretensões absolutistas de um tirano e de seus asseclas em prol de uma vida mais justa e serena.

Em Mufasa: o rei leão, que se destaca pelo hiper-realismo exacerbado no tratamento dos animais e do ambiente, o protagonista torna-se soberano de Milele graças à luta de todas as espécies contra Kiros e seu bando de leões brancos, famosos pela ferocidade e pela crueldade. Em A arca de Noé, os ratinhos Vini e Tom conseguem convencer os demais animais abrigados na arca a reagir contra a prepotência de Baruk e seus acólitos, que estavam semeando o terror na embarcação.

Se nessas duas películas, a problemática da colaboração está a serviço do topos da luta do bem contra o mal, em Flow o eixo se desloca para a questão da sobrevivência diante de um desastre natural de proporções inusitadas, que requer novas formas de associação e de colaboração. Nesse momento particular da história da humanidade, marcado por inúmeros conflitos étnicos, pelo choque de visões de mundo contrastantes, pela disseminação de ideias extremistas (e, não raro, voltadas para a desinformação) por meio das redes sociais, pela ascensão ao poder de líderes autocráticos, o tema da colaboração adquire um significado político, que merece ser destacado.

A ideia de colaboração questiona o individualismo extremado apregoado pelo neoliberalismo em sua campanha diuturna contra o estado de bem-estar social, solapando noções comunitárias e pondo em risco as fundações das modernas sociedades ocidentais.

A antropóloga Mirian Goldenberg propôs utilizar para o filme o conceito psicológico de “flow”, que designa “um estado mental que acontece quando estamos realizando uma atividade na qual ficamos completamente concentrados, quando perdemos a noção do tempo e a nossa energia psíquica está com foco total no que estamos criando”, mas ele não se aplica à situação vivida pelos personagens, obrigados a reagir à catástrofe e à convivência com os outros para alcançar a salvação. O convívio forçado de espécies diferentes transforma-se, aos poucos, numa coabitação consentida, já que o pequeno agrupamento se dá conta da necessidade de uma atuação conjunta para garantir a sobrevivência.

A trajetória do gato, naturalmente individualista, é paradigmática nesse sentido. À necessidade de reagir ao ambiente hostil – provocado por uma catástrofe que ele e seus companheiros não compreendem e contra a qual não podem lutar – soma-se a de adequar-se à coexistência com outras espécies no espaço restrito do veleiro, forjando uma aliança que não se restringe à simples sobrevivência. Durante a jornada rumo ao desconhecido, o gato aprende a superar suas próprias limitações, a desenvolver novas habilidades, que coloca a serviço do grupo, a adaptar-se a uma realidade diferente, a adotar um comportamento empático em situações extremas, demonstrando ter adquirido sentimentos como solidariedade e até mesmo amizade.

Guillermo del Toro, que injetou um viés político em sua sombria stopmotion Pinóquio por Guillermo del Toro (Guillermo del Toro’s Pinocchio, 2022), foi conquistado por Flow e não hesitou em declarar: “Se eu pudesse expressar um desejo para o futuro da animação, essas imagens seriam um magnífico e assombroso começo”. Se não proféticas, as palavras do diretor mexicano se inserem no âmbito do reconhecimento que o filme foi angariando ao longo de 2024,[3] culminando com a conquista do Oscar em 2 de março de 2025.

Produção de baixo orçamento – custou 3 milhões e meio de euros –, o filme concorreu com duas produções norte-americanas – Robô selvagem (The wild robot) e DivertidaMente 2 (Inside out 2), orçados em 78 milhões de dólares e 200 milhões de dólares, respectivamente – e as stopmotions da Grã Bretanha (Wallace & Gromit: avengança / Wallace & Gromit: vengeance most fowl) e da Austrália (Memória de um caracol / Memoir of a snail).

Ao que tudo indica Gints Zilbalodis partilha com Chris Sanders, diretor de Robô selvagem, a admiração por Hayao Miyazaki, cofundador do mítico Estúdio Ghibli, de quem teria herdado o olhar empático sobre a natureza e o amor pelos gatos. Inseridos, pela força das circunstâncias, num fluxo natural, que escapa à sua compreensão, os animais do filme vivem a experiência de uma mudança individual que os leva a ajustar seu comportamento à nova situação, tornando-se colaborativos e deixando uma lição para a inquieta humanidade do século XXI: é só superando os preconceitos e aceitando as diferenças com serenidade que será possível construir uma sociedade mais justa e igualitária.

Essa mensagem é transmitida por miados, latidos, coaxos, guinchos, gemidos, isto é, por uma miríade de códigos fonéticos, que deixam de ser um empecilho para converter-se numa forma de comunicação possível e desejável.

*Annateresa Fabris é professora aposentada do Departamento de Artes Plásticas da ECA-USP. É autora, entre outros livros, de Realidade e ficção na fotografia latino-americana (Editora da UFRGS).

Referência

Flow

França/ Bélgica/ Letônia, desenho animado, 85 minutos.

Direção: Gints Zilbalodis.

Roteiro: Gints Zilbalodis, Matis Kaza.

Bibliografia

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CARNEIRO, Raquel. “Fofura inovadora”. Veja, São Paulo, n. 2932, 21 fev. 2025, p. 84-85.

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SHACHAT, Sarah. “‘Flow’ doesn’t have a dialogue – But its sounds design speaks volumes”. IndieWire, 29 nov. 2024. Disponível neste link.

Notas

[1] Agradeço a Mariarosaria Fabris a sugestão dessa imagem.

[2] A obra foi apresentada na Pinacoteca do Estado (São Paulo) entre 25 de novembro de 2017 e 5 de março de 2018.

[3] A película teve sua estreia no Festival de Cannes de 2024 e foi premiada no Festival de Cinema de Animação de Annecy, no European Film Awards e no Globo de Ouro, dentre outros.

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