A sova midiática em Volodymyr Zelensky

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Por HOMERO SANTIAGO*

É improvável que Trump tente emboscar Lula como fez com  Zelensky; de uma forma ou de outra, a Ucrânia é pouco mais que um buraco para dinheiro e armamentos americanos

Um grupo de detentos chega ao presídio. São rispidamente recebidos, precisam conhecer as regras de sua nova residência. Do nada, guardas escolhem um jovem negro, fixam suas mãos nas grades e dilaceram suas costas com um cinturão. Entre gritos e gemidos, as únicas palavras que se ouvem do agredido é um lacrimoso “eu não fiz nada”. Não me recordo do nome do filme que propunha essa cena que me marcou. Devo tê-lo assistido num daqueles antigos “corujões”, entre sexta e domingo a TV não saia do ar; em tempos pré-streaming, só lá se viam faroestes, classicões e outras coisas que achavam por bem apartar do público do horário normal.

Foi essa cena brutal que me veio à mente e nela persistiu ao acompanhar nos telejornais as cenas do encontro entre o presidente norte-americano Donald Trump e o seu homólogo ucraniano Volodymyr Zelensky no salão oval da Casa Branca em 28 de fevereiro último. A imprensa em geral falou em “bate-boca” e os mais diplomáticos invocaram um “episódio sem precedente”, os mais agudos deram um nome mais inspirado: “arapuca” ou “armadilha”.

Não vou descrever os fatos nem os detalhes porque imagino que quem não passou o último mês de férias em Marte já está a par de tudo. Seria tão inútil quanto dizer que os dias estão quentes, muitíssimos quentes. Cada um nomeie como quiser o episódio na Casa Branca. Na minha cabeça, as cenas, elas pelo menos, foram bater diretamente no filme assistido num antanho já bastante desbotado e cujos detalhes só revivesceram ao topar um paralelo meio cômico meio macabro no presente.

Tento explicar a sugestão da memória involuntária, ao menos como eu mesmo a entendi. Donald Trump diz pretender impor uma nova ordem mundial e está trabalhando afincadamente para isso. Deseja “rearrumar” o mundo, e claro que isso gera atritos. Como um novo capataz ou chefe que chega numa seção e desembesta a remodelar tudo, resistências surgem inevitavelmente. Daí a necessidade de agir, daí ser preciso mostrar quem manda.

Ora, de um ponto de vista condizente aos ideais trumpianos (pode-se também dizer “bolsonaristas”, mirando o gênero política truculenta) não existe melhor maneira de mostrar quem manda senão punindo. E de preferência punindo alguém que não tem culpa de nada, como fizeram no filme com aquele jovem negro. O ter culpa é uma desculpa que mancha a pretensa pureza da punição; a punição exemplar e em estado puro não pode ser refém de nenhuma culpa.

A briga verdadeira de Donald Trump talvez seja com os grandes, com a China e os europeus, os “parceiros” do Nafta. Mas alguém consegue imaginá-lo humilhando publicamente o primeiro-ministro canadense ou o presidente francês? Difícil. Donald Trump conhece os limites, sabe que mesmo as desmesuras também carecem de algum metro, sem o qual não cumpririam a sua função de exemplaridade e só piorariam as coisas.

Aí entra o bode exemplar Volodymyr Zelensky. Ele cumpriu a função ilustrativa e esclarecedora daquele jovem negro do filme que mencionei de início. A sova que padeceu foi a prova, propagandeada mundo afora, de que qualquer um que ousar enfrentar Donald Trump será, mesmo que só in efigie, humilhado em praça pública, segundo os mais brutais métodos.

A humilhação do ucraniano foi expiatória e serviu de alerta ao globo, sobretudo àqueles países que possam eventualmente querer se levantar contra as pretensões trumpistas (o colombiano Gustavo Petros tentou, no caso dos deportados, mas voltou atrás rapidinho). O fato de Volodymyr Zelenky, poucos dias depois, ter aceitado tudo que lhe fora proposto e ele, querendo discutir, relutara em acatar de primeira, mostra que as maquinações trumpianas surtem efeitos.

Como aconteceu com Gustavo Petros, como talvez venha a acontecer com o México, Volodymyr Zelenky voltou a literalmente comer na mão que o esbofeteara. Um pouco envergonhado, mas sem nenhum demérito, convém observar. Não gosto muito nem de Volodymyr Zelensky nem da narrativa da guerra da Ucrânia que oportunamente ele e outros inventaram (tomo a liberdade de reenviar a uma análise minha da guerra e da posição brasileira de 2023, La guerra in Ucraina come problema mondiale e la neutralità critica di Lula.

Isso não me impede, todavia, de entender a sua posição, ou antes, o seu reposicionamento. Se nem Canadá (o “governador Trudeau”) e Comunidade Europeia rompem com Donald Trump, seria loucura imaginar que Volodymyr Zelensky o fizesse, ainda mais nas atuais circunstâncias, em meio a uma guerra e deslocamentos táticos que implicam em ganhos e perdas de territórios vitais para uma nação pequena, sem falar do número de vidas que se perdem, num mortal xadrez geopolítico.

Contas feitas, o que resta a aprender do episódio no salão oval e da sova pública que levou Volodymyr Zelensky, ao menos naquilo que concerne a nós, é preparar-nos para as investidas e os métodos trumpianos, que reeditam tudo o que há de pior em termos de geopolítica (como não pensar, por exemplo, no “truco” hitleriano com relação às zonas germanófonas da antiga Tchecoslováquia?). O Itamaraty e Lula terão trabalho.

É improvável que Donald Trump tente emboscar Lula como fez com Volodymyr Zelensky; de uma forma ou de outra, a Ucrânia é pouco mais que um buraco para dinheiro e armamentos americanos, já o Brasil é um parceiro de peso comercial enorme e politicamente estratégico na América do Sul. De todo modo, nunca se sabe o que passará por aquela cabeça maligna que vez por outra ainda veste um boné com o bordão “make America great again”. Pelo sim pelo não, é bom ficar como o bom escoteiro: sempre alerta. Todo cuidado é pouco e a nossa diplomacia terá de mais uma vez demonstrar a tradicional eficiência que sempre (ou quase, pois não dá para desconsiderar a barafunda causada por Ernesto Araújo) fez-lhe a fama.

*Homero Santiago é professor no Departamento de Filosofia da USP.


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