1848 – revolução e bonapartismo – 3

Imagem: Vladimir Srajber
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Por RAFAEL DE ALMEIDA PADIAL

Acusado de não defender a estratégia da revolução permanente, Marx foi tomado por contradições e forçado a elaborar autocríticas

Na primeira parte deste texto, analisamos a estratégia democrático-revolucionária adotada por Karl Marx na revolução de 1848. Na segunda parte, verificamos como o revolucionário foi enredado em contradições devido a tal estratégia, sendo posteriormente levado à adoção da estratégia da revolução permanente. Agora, estudaremos como a nova estratégia o fez constatar a necessidade de uma ditadura de classe – seja por parte do proletariado, para realizar a revolução permanente; seja por parte da burguesia, para assentar a sua dominação contra os resquícios do Antigo Regime.

Ditadura do proletariado + revolução permanente

Vimos que em 1850 Karl Marx se encontrava exilado em Londres. Para reanimar e rearmar a Liga dos Comunistas, ele elaborava um balanço do processo revolucionário até então. Como parte dos esforços, elaborou com Engels o pequeno texto da “Mensagem do CC à Liga dos Comunistas”. No mesmo período, porém, nosso autor realizou um projeto de maior fôlego: uma revista teórica para o proletariado. O novo material tencionava ser uma continuidade da intervenção anterior e por isso também se denominou Nova Gazeta Renana. Agora, entretanto (e sintomaticamente), o subtítulo foi trocado: em vez de “órgão da democracia”, temos a “revista de economia política” (doravante, usaremos NGR-Revista, para diferenciar do material anterior, NGR-Jornal).

A NGR-Revista durou de janeiro a novembro de 1850 e consistiu em seis números. Foi nesse material que Marx apresentou, em partes, o seu primeiro grande balanço do processo revolucionário francês (depois reunido em livro, sob o nome de As Lutas de Classes na França). Em tal balanço encontramos nova e importante determinação para a discussão estratégica.

Os artigos de As Lutas de Classes na França compõem um texto rico em diversos sentidos. Não podemos dar conta de todo o conteúdo aqui, nem reconstituir a complexa narrativa geral de Marx. O ponto que ora destacamos, como importante para o desenvolvimento da estratégia revolucionária, é o uso do termo “ditadura do proletariado” por parte de Marx. Trata-se da primeira aparição de tal termo na obra de Marx, seguindo a sua primeira aparição no movimento operário francês[i].

Diferentemente do que ocorrera nos artigos da NGR-Jornal, analisados acima, Marx não é mais favorável a uma “ditadura” em abstrato. Não se trata de exigir da burguesia e aliados – como ocorrera, primeiramente, em relação ao governo provisório, e, depois, à Assembleia Nacional – o agir ditatorialmente. Agora, mais do que exigir da burguesia, Marx propõe ação autônoma ao proletariado. Na primeira edição da NGR-Revista, de janeiro de 1850, Marx afirma que a derrota da Revolução de Junho de 1848 na França

“convenceu [o proletariado] de que mesmo uma diminuta melhora [geringste Verbesserung] em sua situação permanece uma utopia [Utopie] dentro da república burguesa, uma utopia que se converte em crime assim que se tenta realizá-la. As exigências, exuberantes quanto à forma, mas mesquinhas e ainda burguesas quanto ao conteúdo, que o proletariado parisiense queria arrancar da república de fevereiro, deram lugar à ousada palavra de ordem: Derrubada da burguesia! Ditadura da classe operária! [Sturz der Bourgeoisie! Diktatur der Arbeiterklasse!]”[ii]

As exigências “exuberantes quanto à forma, mas mesquinhas e ainda burguesas quanto ao conteúdo” são as similares às do final do capítulo II do Manifesto Comunista (ou do panfleto das dezessete reivindicações do Partido Comunista na Alemanha). Tais reivindicações agora deveriam ser substituídas pela exigência de derrubada da burguesia e constituição de uma ditadura propriamente de classe do proletariado.

Em abril de 1850, no terceiro número da NGR-Revista, Marx refere-se outra vez à ditadura do proletariado. O autor a vincula aí diretamente à ideia de revolução permanente. Após criticar os “socialistas pequeno-burgueses”, “fazedores de sistemas”, diferencia-se socialismo e comunismo e afirma-se o seguinte:

“[…] enquanto os diversos líderes socialistas em luta entre si exigem a adesão a cada um dos seus sistemas como ponto de transição da convulsão social – o proletariado agrupa-se cada vez mais em torno do socialismo revolucionário, em torno do comunismo, para o qual a própria burguesia inventou o nome de Blanqui. Esse socialismo é a declaração da permanência da revolução [die Permanenzerklärung der Revolution], a ditadura de classe do proletariado [die Klassendiktatur des Proletariats] como ponto de transição necessário [notwendiger Durchgangspunkt] para a abolição de todas as diferenças de classe”.[iii]

Destaque-se (outra vez) o abandono das reivindicações dos “socialistas” e a adoção da ideia de que a ditadura de classe é um ponto de transição necessário (não contingente) ao comunismo[iv]. A tal ditadura caberia realizar a revolução em permanência.

Ditadura do proletariado mais revolução permanente: eis a nova síntese programática de Marx, longamente amadurecida. O autor que conduz a pena, aí, é outro em relação ao que redigiu o Manifesto do Partido Comunista, mais de dois anos antes.

Esses dois elementos estratégicos tornaram-se tão importantes para Marx que ele tentou criar outra organização internacional – superando a Liga do Comunistas – apenas baseados nisso. No mesmo período, Marx e seus companheiros entraram em relações com os blanquistas franceses e a ala à esquerda dos cartistas ingleses para criar a Associação Mundial dos Comunistas Revolucionários. O primeiro artigo do estatuto dessa nova organização internacional rezava o seguinte:

“Art. 1 – O objetivo da associação é a derrubada de todas as classes privilegiadas, sua submissão à ditadura dos proletários [Diktatur der Proletarier] e a manutenção da revolução em permanência [Revolution in Permanenz] até a realização do comunismo […].”

O artigo quinto do estatuto, por sua vez, afirmava que esse primeiro artigo era a condição de existência da própria associação:

“Art. 5 – Todos os membros da associação comprometem-se sob juramento [eidlich] a cumprir o disposto no primeiro artigo do presente estatuto. Uma modificação que possa enfraquecer as intenções expressas no artigo primeiro desobriga os membros da associação em relação a este acordo.”[v]

O balanço da revolução de 1848 por Marx, no entanto, não terminou por aí. A revolução continuou se desenvolvendo, por assim dizer, em vias tortas, e trouxe novos elementos a serem analisados.

Bonapartismo como resposta à revolução permanente

O balanço de Marx se completa com a análise do fenômeno do bonapartismo. Este não é apenas uma manifestação do caráter autoritário do Estado, mas propriamente uma resposta burguesa ao problema da revolução permanente.

A análise do bonapartismo encontra-se apenas em O Dezoito de Brumário de Luís Bonaparte.[vi] Embora a eleição de Luís Bonaparte como presidente (ocorrida em 10 de dezembro de 1848) seja tratada em As Lutas de Classe na França, quando Marx finalizou esse texto (outubro de 1850) ainda não era claro o rumo que os acontecimentos tomariam. Apenas se iniciava o conflito decisivo entre o poder Legislativo, dominado pelo “Partido da Ordem”, e o poder Executivo, de Bonaparte. O Dezoito de Brumário, por sua vez, fornece-nos análise detalhada do período posterior a outubro de 1850, particularmente sobre o sentido histórico do golpe de Estado de Bonaparte em 2 de dezembro de 1851.[vii]

Neste livro Marx busca responder como foi possível a uma figura tão medíocre, desavergonhada e promíscua assenhorar-se da França das luzes. Para o autor, isso só seria explicável com base nas lutas de classes, e, particularmente, na concepção da teoria da revolução permanente.

Karl Marx argumenta que o partido da grande burguesia francesa, o Partido da Ordem (coligação das duas maiores frações monarquistas-burguesas), após reprimir o levante proletário de junho de 1848, amaldiçoava “todas as revoluções, futuras, presentes e passadas, incluindo aquelas realizadas por seus próprios líderes”[viii]. A burguesia, segundo o autor, “teve a percepção correta de que todas as armas que forjou contra o feudalismo voltavam-se agora contra ela mesma, que todos os meios de educação que criou rebelavam-se contra a sua própria civilização, que todos os deuses que havia conjurado dela se afastaram.”[ix]

Por isso, qualquer iniciativa progressista-burguesa minimamente racional era tachada de “socialista”, apesar desse termo significar “uma lamúria em termos sentimentais dos sofrimentos da humanidade”, o “reino milenar cristão”, o “amor fraterno universal”, “devaneios em termos humanistas” e “um sistema de mediação e bem-estar de todas as classes”. Nessa lógica geral, diz Marx, “[o] próprio liberalismo burguês foi declarado socialista, bem como o iluminismo burguês e a reforma financeira burguesa. Construir uma ferrovia onde já existia um canal era considerado socialista, bem como era socialista defender-se com um bastão quando se é atacado com uma espada.”[x]

Na mesma toada, o próprio parlamentarismo, a forma ideal de domínio da classe burguesa, foi considerado “socialista”, pois tornava instável tal domínio. Diz Marx que a burguesia, ainda assustada com o “espectro vermelho”, via “em cada manifestação de vida da sociedade uma ameaça à tranquilidade” e, por isso, “não podia manter no topo da sociedade o regime da intranquilidade, o seu próprio regime, o parlamentarista”. Afinal, tal regime “vive da luta e pela luta”, convida camadas mais amplas da população à discussão e participação: “O regime parlamentar deixa tudo à decisão das maiorias; como poderiam as grandes maiorias fora do parlamento não querer decidir também? Se vocês tocam violino no topo do Estado, o que mais esperar dos de baixo senão que dancem?”[xi]

Que se trata do problema da revolução permanente fica claro poucas páginas à frente, quando o autor afirma que o Partido da Ordem, ao finalmente estabelecer a sua república parlamentar constitucional, “declarou-se em permanência contra a revolução [in Permanenz gegen die Revolution]”[xii]. Dava-se então uma situação histórica peculiar, em que a burguesia, apesar de aperfeiçoar o seu domínio “democrático” pelo parlamento, via-se obrigada a sacrificá-lo em nome de um “governo forte”.

Burguesia vira refém de Luís Bonaparte

O problema é que governo forte é sinônimo de Executivo forte. No começo de seu texto, o autor já revelara que a república parlamentar tendia a criar uma forma de autoritarismo, na medida em que o poder Executivo restava como traço nostálgico da monarquia, a ser acentuado sempre que necessário. Para Marx, o Executivo tinha “o poder de fato”, ao passo que o legislativo “o poder moral”, afinal, “[e]nquanto os votos da França se fragmentam entre os 750 membros da Assembleia Nacional, aqui [no Executivo] eles se concentram em um único indivíduo. […] A Assembleia Nacional eleita mantém uma relação metafísica [metaphysischen] com a nação, enquanto o presidente eleito mantém uma relação pessoal.”[xiii]

“Encarnando o espírito nacional”, o presidente tinha em suas mãos as verdadeiras alavancas da ação estatal. Some-se a isso o fato de o poder Executivo decidir sobre a vida de uma enorme burocracia estatal (que, no caso da França de então, diz Marx, abarcava até 1,5 milhão de pessoas. Tão logo chegou ao poder, Bonaparte aumentou o salário dos funcionários públicos). Some-se também o fato de que o presidente fora eleito, ao final de 1848, apoiado na maioria das classes populares, camponesas e trabalhadoras. As primeiras porque viram nele o retorno místico de Napoleão Bonaparte (o tio), que antes, no Império, garantira-lhes terras parcelares e o fim de relações servis. As segundas porque viram em tal voto uma forma de punir o candidato oficial da burguesia, Cavaignac, responsável pelo massacre da insurreição de junho de 1848[xiv].

Visando se consolidar como alternativa política, Luís Bonaparte construiu a “sociedade beneficente” 10 de Dezembro, formada pelo lumpemproletariado francês e alimentada pela corrupção mais abjeta. Com tal claque, de cerca de 10 mil pessoas, organizada de forma ilegal e sempre mobilizada, o presidente percorreu a França proferindo discursos sobre “Deus, pátria, família e ordem”, postulou-se ao cargo de salvador nacional, intimidou opositores e atacou os demais poderes do Estado. Além disso, aos poucos comprou partes significativas do Exército, por meio de corrupção, “salsichas e vinho”.

Nesse ínterim, a burguesia parlamentar seguia incapaz de se decidir e mesmo de votar pelo impeachment do presidente, pois temia convocar setores populares à ação. Isso, para ela, equivaleria a brincar com fogo: “Em vez de se deixar intimidar pelo poder executivo […], ela [a burguesia] deveria ter concedido um pequeno espaço à luta de classes, a fim de manter o Executivo sob sua dependência. No entanto, não se sentiu à altura da tarefa de brincar com o fogo.”[xv]

Assim, a burguesia, impotente, optou por esperar até a eleição de 1852, que nunca chegou. Com a dissociação entre a “massa da burguesia”, desejosa de ordem, e seus indecisos representantes parlamentares, “promotores da anarquia” por criticar o presidente; com a indiferença da maioria da população proletária – acusada de “estúpida” e “ignorante” pelos parlamentares – em relação à sorte do parlamento; com o amparo na burocracia estatal, nos dezembristas e no Exército, Luís Bonaparte finalmente reuniu as condições para o seu sempre alarmado coup d’état.

Realizou-se assim a situação aparentemente paradoxal em que o poder Executivo parecia pairar acima da sociedade; em que todas as classes (inclusive a burguesa) pareciam subjugadas, sob a autoridade despótica de um indivíduo sem autoridade. “O conflito parece resolvido de tal maneira – diz Marx – que todas as classes, igualmente impotentes e igualmente silenciosas, ajoelham-se diante da coronha do fuzil”[xvi].

A burguesia tornou-se refém do presidente: “Ela fez a apoteose do sabre; o sabre a domina. Ela destruiu a imprensa revolucionária; sua própria imprensa está destruída. Ela colocou as assembleias populares sob vigilância policial; seus salões estão sob vigilância policial. Ela dissolveu as guardas nacionais democráticas; sua própria guarda nacional está dissolvida. Ela decretou o Estado de Sítio; o Estado de sítio foi decretado contra ela […].”[xvii]

No entanto, isso é uma aparência. O golpe de Luís Bonaparte espelhava os desejos dos setores maiores do capital. Para Marx, “[a] aristocracia financeira […] condenava a luta parlamentar do partido da ordem contra o poder executivo como uma perturbação da ordem e celebrava cada vitória do presidente sobre seus supostos representantes como uma vitória da ordem.”[xviii]

Além disso, o capital industrial “aplaudiu servilmente o golpe de Estado de 2 de dezembro, a destruição do parlamento, a ruína de seu próprio domínio e a ditadura de Luís Bonaparte”[xix].

Na realidade, a burguesia estava num dilema histórico. Por um lado, temia o proletariado. Por outro, era levada – graças à tendência expansionista dada pela mera reprodução das suas relações econômicas – à liquidação das formas de produção pré-capitalistas e seu aparato político correspondente. A burguesia precisava fazer algum tipo de revolução burguesa em tempos de revolução permanente. Era preciso uma revolução que não fosse uma revolução, uma ditadura da minoria que fosse popular, uma mão firme que conduzisse à deriva, uma salvação que fosse a sua perda. O bonapartismo foi o fenômeno político encontrado.

Golpe como obra turva da revolução proletária

Curiosamente, no Dezoito de Brumário, Marx, contrariando todas as análises corriqueiras, analisou a derrubada do poder Legislativo pelo Executivo como uma espécie de obra turva da revolução proletária. Haveria por trás de tal acontecimento algo como uma dialética perversa da história – como se a revolução proletária de junho de 1848 corresse por baixo dos conflitos entre os poderes do Estado burguês, desgastando-os, preparando a sua queda.

Em 1848, a burguesia teria completado a sua forma ideal de domínio político, o parlamentarismo, e revelado à maioria da população (via repressão) o caráter de classe dessa forma. Assim, o parlamentarismo ia historicamente à falência. Com o golpe, a burguesia não só reconhecia tal falência, mas também concentrava todo o ódio nacional contra o único poder que restara, o Executivo. De tal maneira, eram criadas as condições para a destruição da máquina do Estado burguês em seu conjunto. A revolução seguia por baixo da terra, como uma toupeira, apenas preparando o momento de fazer saltar (com o Executivo) toda a ordem burguesa.

Karl Marx escreveu: “A revolução é profunda. Ela ainda passa pelo purgatório. Ela completa metodicamente o seu trabalho. Até 2 de dezembro de 1851 [data do golpe de L. Bonaparte] ela concluiu metade do que havia preparado e agora conclui a outra metade. Ela completou [vollendete] primeiro o poder parlamentar, para poder derrubá-lo [stürzen]. Agora que o fez, completa [vollendet] o poder Executivo, reduzindo-o à sua expressão mais pura, isolando-o, confrontando-o com as suas próprias acusações, para concentrar contra ele todas as suas forças de destruição. E quando ela tiver completado essa segunda metade do seu trabalho preparatório, a Europa saltará de sua cadeira e gritará: bem escavado, velha toupeira!”[xx]

A análise de Marx a respeito do golpe de Luís Bonaparte é tão única que não se encontra nela qualquer lamento frente ao fim da democracia parlamentar pelo golpe de Estado – seja em O Dezoito de Brumário, seja em sua correspondência de então ou posterior. Um leitor provocador pode até argumentar que o revolucionário comemorou o fechamento do parlamento. Outro, menos atento, pode supor que o resultado do golpe foi apenas a ascensão de um bando de arruaceiros ao “teatro” do poder de Estado, sem maiores consequências políticas. Na realidade, o golpe instituiu uma ditadura burguesa que, com altos e baixos em sua manifestação de violência, reprimiu a vanguarda da classe trabalhadora francesa por duas décadas.

Por que, então, não há lamúrias democráticas por parte de Marx? É como se o autor desafiasse Luís Bonaparte a realizar o golpe, pois assim seriam mais bem construídas as condições de derrubada do Estado em seu conjunto, por uma revolução de novo tipo. Ao analisar as revoluções do passado, que apenas teriam lutado pelo espólio “parasitário” do Executivo do Estado, Marx anunciou que a revolução de novo tipo tenderia a quebrar toda a máquina estatal: “A república parlamentar, em sua luta contra a revolução, viu-se obrigada a fortalecer as formas e a centralização do poder governamental por meio de medidas repressivas. Todas as revoluções [do passado] aperfeiçoaram essa máquina em vez de quebrá-la [statt sie zu brechen].”[xxi]

Marx estava correto. A burguesia francesa, ao tornar-se refém de Luís Bonaparte, não encontrou depois um caminho para a “descompressão política” sem fazer saltar toda a sociedade (o problema, aliás, desenvolveu-se igualmente em outras ditaduras, a ponto de tornar-se tema de estudos sociológicos[xxii]). Para Marx, a não lamentação frente ao golpe de Estado se vinculava a uma postura a ser assumida quando a “toupeira” emergisse novamente. Assim que a ditadura, pela sua própria inviabilidade econômico-social, atingisse um limite histórico, os comunistas seriam colocados frente ao dilema de defender o retorno à democracia parlamentar-burguesa ou a realização da revolução comunista.

Como se sabe, a toupeira emergiu. A queda de Luís Bonaparte em meio à Guerra Franco-Prussiana significou ao mesmo tempo a queda do Estado francês (afinal, o Executivo era o único poder que restara e estava plasmado na figura do imperador). A população de Paris, em 18 de março de 1871, estabeleceu a sua Comuna enquanto forma política nova, em contraposição direta ao fenômeno do bonapartismo[xxiii].

Tudo isso explica por que, em meio à Comuna de Paris, Marx lembrou de seu antigo livro, e, em carta de 12 de abril de 1871 a seu amigo L. Kugelmann, escreveu: “Se você olhar o último capítulo do meu Dezoito de Brumário, verá que anuncio que a próxima tentativa da revolução francesa não consistirá mais em transferir a máquina burocrático-militar [estatal] de uma mão a outra, como até agora, mas de quebrá-la [zerbrechen], e que isso é a pré-condição [Vorbedingung] de qualquer revolução efetiva no continente. Nisso consiste, precisamente, a tentativa dos nossos heroicos camaradas de Paris.”[xxiv]

Além da “profecia” da toupeira, Marx vaticinou que se Luís Bonaparte tentasse vestir o manto imperial, a estátua de bronze de Napoleão ruiria do topo da Coluna Vendôme. Cerca de um ano após ao Dezoito de Brumário, Luís Bonaparte vestiu o manto de Napoleão, declarando-se Imperador. Entre as primeiras atividades dos communards de 1871 constou a derrubada da estátua de bronze de Napoleão juntamente com a coluna Vendôme.

Conclusão

Vimos neste texto um longo percurso de Karl Marx em torno da revolução de 1848. Começamos com a análise da estratégia democrático-revolucionária que o revolucionário apresentou antes da revolução. Ao longo da revolução, no entanto, ficou evidente que esse programa era insuficiente, de caráter “pequeno-burguês”, servindo ao engodo ou à mistificação do proletariado. Acusado de não defender a estratégia da revolução permanente, Marx foi tomado por contradições e forçado a elaborar autocríticas. A compreensão e a adoção da estratégia da revolução permanente lhe permitiram entender a fundo o sentido histórico novo do golpe de Estado de Luís Bonaparte, possibilitando-o prognosticar a atuação dos comunistas no momento da queda do Imperador.

*Rafael de Almeida Padial é doutor em filosofia pela Unicamp. Autor de Sobre a passagem de Marx ao comunismo (Alameda). [https://amzn.to/3PDCzMe]

Para ler o primeiro artigo dessa série, clique em https://aterraeredonda.com.br/1848-revolucao-e-bonapartismo/

Para ler o segundo artigo dessa série, clique em https://aterraeredonda.com.br/1848-revolucao-e-bonapartismo-2/

Refrências


DRAPER, H., Karl Marx’s Theory of Revolution, volume 3. New York: Monthly Review Press, 1986;

MARX, K., “Die Klassenkämpfe in Frankreich, 1848 bis 1850”. In MEW, vol. 7, Berlim: Dietz, 1960;

______. Der Achtzehnte Brumaire des Louis Bonaparte. In MEW, vol. 8, Berlin: Dietz, 1960;

______. MARX, K., Der Bürgerkrieg in Frankreich. Adresse des Generalrats der Internationalen Arbeiterassoziation. In MEW, vol. 17, Berlim: Dietz, 1962;

______. “Marx an Joseph Weydemeyer in New York”. In MEW, vol. 28, Berlim: Dietz Verlag, 1963;

______. MARX, K., “Marx an Ludwig Kugelmann”, 12 de abril de 1871, in MEW, vol. 33, Berlim: Dietz, 1976.

Notas


[i] Antes de junho de 1848, os blanquistas franceses eram favoráveis a uma “ditadura”, mas esta não era expressa em termos propriamente de classe, e sim às vezes com a noção de “povo” e às vezes com a ideia de uma minoria (supostamente bem selecionada e preparada) que governaria por um tempo mais ou menos longo, até permitir que o “povo” se educasse e estivesse apto a se autogovernar. Tais ideias remontavam, em linhas gerais, à tradição da Convenção Nacional de 1793.

[ii] MARX, K., “Die Klassenkämpfe in Frankreich, 1848 bis 1850” [“As Lutas de Classes na França, 1848 a 1850], in “Neue Rheinische Zeitung. Politisch-ökonomische Revue”. In MEW, vol. 7, Berlim: Dietz, 1960, p. 33. Em O Capital, no entanto, Marx não expressará acordo com a ideia de que uma “diminuta melhora” é impossível, uma “utopia”, sob o capitalismo. Baseado no conceito de mais-valor relativo, o autor mostrará como a burguesia consegue estabelecer “melhorias” de diversos tipos para a classe trabalhadora e, ao mesmo tempo, aumentar os graus de exploração e lucratividade dos seus capitais.

[iii] Ibidem, p. 89. O número da revista foi publicado em abril de 1850. Portanto, é praticamente simultâneo à primeira “Mensagem do CC à Liga dos Comunistas”, de março de 1850, comentada na parte 2 deste texto.

[iv] Em carta posterior (5 de março de 1852) a J. Weydemeyer, Marx afirma: “No que me concerne, não me cabe o mérito de ter descoberto nem a existência de classes nem a luta entre elas. […] O que eu fiz de novo foi: 1) mostrar que a existência das classes está ligada a determinadas fases históricas de produção; 2) que a luta de classes conduz necessariamente [notwendig] à ditadura do proletariado; 3) que essa própria ditadura representa apenas a transição à abolição de todas as classes e a uma sociedade sem classes […]”. Cf. idem, “Marx an Joseph Weydemeyer in New York”. In MEW, vol. 28, Berlim: Dietz Verlag, 1963, pp. 507-08.

[v] Ambas as citações in MEW, vol. 7, op. cit., pp. 553-54. O estatuto dessa organização consistiu apenas em seis artigos (nunca traduzidos integralmente para o português). Para além do primeiro, transcrito acima, e do segundo, de teor internacionalista, restam nos demais pormenores organizativos. O estatuto está assinado por Adam e J. Vidil (em nome dos blanquistas franceses); Marx, Engels e Willich (pela Liga dos Comunistas); e J. Harney (pela ala à esquerda dos cartistas). O texto, como se sabe, escrito em francês, está com a letra de Willich. Este era famoso à época por liderar um batalhão revolucionário em 1849. Entretanto, pouco depois, junto com K. Schapper, Willich iniciou um processo de disputa do futuro da Liga dos Comunistas, contra Marx e Engels, o que levou à divisão da organização. Willich estava mais próximo dos blanquistas franceses (que apoiaram sua fração contra a de Marx e Engels). O racha da Liga dos Comunistas é um dos motivos que explicam a Associação Mundial nunca ter saído do papel. Hal Draper parece estar certo ao afirmar que o documento dos estatutos tem de ser visto como uma carta inicial de intenções, para trabalho futuro. Mas daí a conceber – como quer Draper – que as posições ali expressas não tinham grande valor para Marx e Engels (e sim apenas para os blanquistas e para Willich), parece-me exagero. Ver DRAPER, H., Karl Marx’s Theory of Revolution, volume 3, parte IV, capítulo 12, New York: Monthly Review Press, 1986.

[vi] Também escrito por Marx na forma de artigos, enviados a seu amigo J. Weydemeyer, ativo revolucionário de 1848, então exilado em Nova Iorque, EUA. Nesse país, o companheiro de Marx pretendia publicar uma revista de periodicidade semanal. Entre dezembro de 1851 e fevereiro de 1852 (ou seja, “colado” nos acontecimentos do golpe de Estado), Marx enviou os capítulos ao amigo tendo em vista a publicação. O plano inicial de Weydemeyer foi alterado, projetando-se então uma revista mensal, Die Revolution. Os artigos de Marx foram reunidos e publicados em conjunto na primeira edição dessa revista mensal, que infelizmente não passou de seu segundo número. Em 1869, Marx revisou o texto para nova publicação, desta vez na Alemanha.

[vii] Até o capítulo IV, o Dezoito de Brumário reproduz condensadamente As Lutas de Classes na França. Por isso, nesta análise nos focaremos principalmente no que é apresentado a partir do capítulo V do livro.

[viii] MARX, K., Der Achtzehnte Brumaire des Louis Bonaparte. In MEW, vol. 8, Berlim: Dietz, 1960, p. 148.

[ix] Ibidem, p. 153.

[x] Ibidem, p. 153.

[xi] Ibidem, p. 154. As pequenas citações no meio do parágrafo estão à p. 153.

[xii] Ibidem, p. 160.

[xiii] Ibidem, p. 128.

[xiv] Ibidem, p. 131.

[xv] Ibidem, p. 174.

[xvi] Ibidem, p. 196.

[xvii] Ibidem, p. 194.

[xviii] Ibidem, p. 182.

[xix] Ibidem, p. 191.

[xx] Ibidem, p. 196.

[xxi] Ibidem, pp. 196–97.

[xxii] O problema da queda de governos burgueses ditatoriais tornou-se da maior importância para a burguesia (ganhando destaque nas reflexões dos departamentos de Estado de diversos países, bem como em departamentos de sociologia política). É o que se convencionou chamar de questão da “Descompressão Política”. Obra importante a esse respeito é a de Samuel Huntington, Approaches to political decompression. Note-se que Huntington se encontrou algumas vezes com o General Golbery do Couto e Silva, cérebro da última Ditadura Militar brasileira (1964-1985), para discutir a “descompressão” a ser realizada no Brasil. Devo ao Prof. Luiz Renato Martins a indicação dessa obra.

[xxiii] Em sua famosa análise da Comuna de Paris, Marx afirmou que “a contraposição direta ao Império [de Bonaparte] era a Comuna [Der gerade Gegensatz des Kaisertums war die Kommune]. Cf. MARX, K., Der Bürgerkrieg in Frankreich. Adresse des Generalrats der Internationalen Arbeiterassoziation. In MEW, tomo 17, Berlim: Dietz Verlag, 1962, p. 338. A Comuna, aliás, aboliu a separação entre poder Legislativo e Executivo, a qual, sempre que possível, tende ao autoritarismo. Marx afirmou que a Comuna era “forma política finalmente encontrada” para a instituição da sociedade comunista.

[xxiv] Cf. MARX, K., “Marx an Ludwig Kugelmann”, 12 de abril de 1871, in MEW, tomo 33, Berlim: Dietz, 1976, p. 205.


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