Wasp Network: rede de espiões

Carlos Zilio, PRATO, 1971, tinta industrial sobre porcelana, ø 24cm
Whatsapp
Facebook
Twitter
Instagram
Telegram

Por DANIEL BRAZIL*

Comentário sobre o filme de Olivier Assayas baseado no livro de Fernando Moraes

O livro Os últimos soldados da Guerra Fria, lançado em 2011, foi imediatamente catapultado à condição de best-seller político. Seu autor, Fernando Moraes, realizou uma pesquisa minuciosa, coletando datas, nomes, informações de Estado e de pessoas, sobre um dos episódios menos conhecidos da longa história de embates entre Cuba e Estados Unidos da América.

O relato descreve eventos ocorridos na década de 1990. Com o colapso da União Soviética, em 1991, boa parte dos recursos que sustentavam o país caribenho minguou. Os exilados cubanos concentrados em Miami, em grande maioria alinhados com a direita, ficaram eufóricos. Para eles, o regime de Castro iria ruir em breve. Organizações paramilitares passaram a invadir o espaço aéreo cubano jogando panfletos sobre Havana, e mercenários aportavam nas praias para esconder armas e munição, preparando o terreno para um futuro golpe.

Para quem não sabe, a distância entre Florida e a capital cubana é de apenas 150 km. São 40 minutos de teco-teco, ou algumas horas numa boa lancha. De balsa, com vento a favor, menos de dois dias, como fizeram vários refugiados cubanos, conhecidos como balseros.

Sob risco iminente, o governo cubano partiu para a contraofensiva. Selecionou alguns de seus melhores quadros no Exército e na Aeronáutica, e enviou para Miami, para se infiltrarem nas organizações terroristas e coletarem informações. A chamada Rede Vespa descobriu, entre outras coisas, que boa parte do financiamento das ações anticastristas era proveniente do tráfico de drogas. Um dos espiões passou a ser informante também da CIA, denunciando operações que envolviam o tráfico e agenciamento de mercenários em vários países centro-americanos.

Após muitas ações bem sucedidas, que neutralizaram ataques e desmantelaram os esquemas dos “contras”, os agentes foram descobertos e presos, julgados e condenados pela justiça norte-americana. Quando Fernando Moraes terminou seu livro, vários ainda estavam cumprindo pena, o que justificou o título da narrativa.

Todos estes ingredientes sugeriam um belo roteiro de filme. E é o que foi feito, numa coprodução internacional dirigida pelo francês Olivier Assayas. Lançado em 2019 em festivais, chega agora ao público brasileiro através da Netflix, com o confuso nome de Wasp Network: rede de espiões. Certamente, para cubanos e brasileiros, o nome original Rede Vespa seria mais palatável.

Como é previsível, o filme provocará debates. Não apenas pelo pano de fundo político, expondo o confronto direita-esquerda, alimentado por décadas de propaganda anti-Cuba nas plagas tupiniquins, mas também pela velha questão que assombra todas as adaptações da literatura para o cinema. Foi fiel? Traiu? Não correspondeu?

O elenco é competente, e talvez seja o único ponto de consenso. Edgar Ramírez, Penélope Cruz, Gael Garcia Bernal, Leonardo Sbaraglia, Wagner Moura, Ana de Armas e o bom time de coadjuvantes garantem uma presença qualificada nas telas, mesmo tendo de falar em espanhol, inglês e até russo. O roteiro, obviamente, teve de optar por qual caminho escolheria em meio à enorme quantidade de informações organizadas por Fernando Moraes em seu livro.

O fato de ter elegido um casal, o piloto René González (Ramírez) e sua mulher Flora (Cruz), como pilar de sustentação da trama é plausível. René se recusou a colaborar com o governo americano, e foi o último a ser libertado, e Flora é uma personagem complexa, pois no início acha que o marido é um gusano, um traidor da pátria. Com filha pra criar, emigra para os EUA e tenta reatar os laços com o marido.

Os admiradores do livro, um dos melhores de Fernando Moraes, vão reclamar de algumas omissões, de certa simplificação, de falta de referências. Os críticos do filme vão dizer que tem muitos personagens, que a narrativa é confusa. Mas, vamos convir: resumir um livro de mais de quatrocentas páginas em 130 minutos sempre implica numa escolha, numa redução. Em certos casos, isto é compensado por um acréscimo estético, imagético, até poético, que possa justificar a experiência.

No final do filme, o foco no casal González-Flora embota o contexto político, e tem sido acusado de parecer um final de novela. Sim, em termos. Cinema é indústria cultural, requer emoção para atingir um público maior. O filme não é um documentário, e coloca isso de forma clara desde o início: “baseado em fatos reais”. A opção dramatúrgica não é, e nunca pode ser, submissão total aos fatos. Desde que não traia o sentido original de palavras e ações, é uma recriação com liberdade formal.  A inclusão de um discurso do próprio Fidel Castro no filme, por exemplo, acrescenta dados que não existem no livro. Os retratos dos personagens reais, nos créditos finais, livres e de volta a Cuba, atualizam a obra de Fernando Moraes.

Assayas demonstra, em toda sua filmografia, um interesse focado nas relações pessoais, mesmo quando ousou levar para as telas a biografia do famoso terrorista Carlos, o Chacal (minissérie de coprodução França/Alemanha), em 2010. Agora escolheu uma grande história de espionagem, com a polarização Cuba-EUA como cenário, para dentro dela ressaltar os dramas individuais, sem perder de vista a dimensão política de sua narrativa. Até tenta ser imparcial, colocando uma sequência documental de críticas ao regime cubano, de forma um tanto desajeitada.

Longe de ter atingido a perfeição, o diretor francês chegou a um resultado bastante envolvente, que merece atenção. Quanto melhor um livro, mais difícil é adaptá-lo para o cinema, já diziam os mestres fundadores da sétima arte. E uma das batalhas culturais que atravessam nosso tempo é a criação de obras nacionais (ou multinacionais, como é o caso) que se contraponham à hegemonia cinematográfica norte-americana, de entretenimento acrítico. Nesse front a Rede Vespa de Assayas vem somar, com méritos.

*Daniel Brazil é escritor, autor do romance Terno de Reis (Penalux), roteirista e diretor de TV, crítico musical e literário.

Referência

Wasp Network: rede de espiões

França, Espanha, Brasil, Bélgica, 2019, 127 minutos

Direção: Olivier Assayas.

Elenco: Penélope Cruz, Édgar Ramírez, Gael García Bernal

 

Veja neste link todos artigos de

10 MAIS LIDOS NOS ÚLTIMOS 7 DIAS

__________________
  • A colonização da filosofiamar estacas 14/11/2024 Por ÉRICO ANDRADE: A filosofia que não reconhece o terreno onde pisa corrobora o alcance colonial dos seus conceitos
  • A massificação do audiovisualcinema central 11/11/2024 Por MICHEL GOULART DA SILVA: O cinema é uma arte que possui uma base industrial, cujo desenvolvimento de produção e distribuição associa-se à dinâmica econômica internacional e sua expansão por meio das relações capitalistas
  • O entretenimento como religiãomóveis antigos máquina de escrever televisão 18/11/2024 Por EUGÊNIO BUCCI: Quando fala a língua do rádio, da TV ou da Internet, uma agremiação mística se converte à cosmogonia barata do rádio, da televisão e da internet
  • Ainda estou aqui — habeas corpus de Rubens Paivacultura ainda estou aqui 2 12/11/2024 Por RICARDO EVANDRO S. MARTINS: Comentário sobre o filme dirigido por Walter Salles
  • Os concursos na USPMúsica Arquitetura 17/11/2024 Por LINCOLN SECCO: A judicialização de concursos públicos de docentes na USP não é uma novidade, mas tende a crescer por uma série de razões que deveriam preocupar a comunidade universitária
  • A execução extrajudicial de Sílvio Almeidaqueima de livros 11/11/2024 Por MÁRIO MAESTRI: A denúncia foi patrocinada por uma ONG de raiz estadunidense, o que é paradoxal, devido à autoridade e status oficial e público da ministra da Igualdade Racial
  • O porto de Chancayporto de chankay 14/11/2024 Por ZHOU QING: Quanto maior o ritmo das relações econômicas e comerciais da China com a América Latina e quanto maior a escala dos projetos dessas relações, maiores as preocupações e a vigilância dos EUA
  • A falácia das “metodologias ativas”sala de aula 23/10/2024 Por MÁRCIO ALESSANDRO DE OLIVEIRA: A pedagogia moderna, que é totalitária, não questiona nada, e trata com desdém e crueldade quem a questiona. Por isso mesmo deve ser combatida
  • Ainda estou aquicultura ainda estou aqui 09/11/2024 Por ERIK CHICONELLI GOMES: Comentário sobre o filme dirigido por Walter Salles
  • Antonio Candido, anotações subliminaresantonio candido 16/11/2024 Por VINÍCIUS MADUREIRA MAIA: Comentários sobre os mais de setenta cadernos de notas feitos por Antonio Candido

PESQUISAR

Pesquisar

TEMAS

NOVAS PUBLICAÇÕES