Memórias póstumas de Brás Cubas

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Por MARGARET JULL COSTA & ROBIN PATTERSON*

Comentário do romance de Machado de Assis pelos tradutores dos seus contos para o inglês

Joaquim Maria Machado de Assis já tinha publicado quatro romances quando escreveu Memórias póstumas de Brás Cubas, serializado em folhetim em 1880 e publicado como livro em 1881. A obra recebeu resenhas mistas, alguns leitores achando que lhe faltava enredo, que os personagens eram desinteressantes, que era mais um tratado filosófico do que um romance. Essa é uma crítica já prevista por Brás Cubas, que se desculpa a aqueles leitores que adoram a “narração direita e nutrida, o estilo regular e fluente”, “e este livro e meu estilo são como os ébrios, guinam à direita e à esquerda, andam e param, resmungam, urram, gargalham, ameaçam o céu, escorregam e caem”.

A primeira tradução para o inglês, de William L. Grossman, só surgiu em 1953, o que não foi surpreendente em vista do fato de que Machado era praticamente desconhecido na Europa e na América do Norte até depois da Segunda Guerra Mundial. Foi apenas alguns anos depois, principalmente nos anos 1960 e 1970, que críticos dentro e fora do Brasil começaram a reconhecer o romance como um trabalho de originalidade extraordinária.

Críticos dizem frequentemente de Memórias póstumas que ele surgiu do nada e que não era nada parecido com o trabalho anterior de Machado. É verdade, seus romances de juventude eram razoavelmente convencionais em tom e estilo e nos temas, mas muitos de seus contos são radicalmente excêntricos e mostram um gosto particular pelo fantástico e pelo grotesco, por exemplo, “O Alienista”, “Uma Visita de Alcibíades”, “O cônego ou Metafísica do estilo”, ou “Ideias de Canário”; e o jeito familiar de Brás Cubas se endereçar ao leitor já está lá em “Miss Dollar”, que data de antes de 1870.

Os contos também partilham de uma fascinação com a loucura, da qual há bastante nessas Memórias póstumas, como por exemplo: o delírio de Brás Cubas quando doente; sua visão alucinatória de Virgília após o encontro dele com a arruinada Marcela; o louco no navio que leva Brás Cubas para Portugal; e, é claro, a caída de Quincas Borba na insanidade. Para qualquer um que conheça os contos de Machado, o mundo de Brás Cubas parece bastante familiar.

Os modelos literários que Machado menciona no seu prefácio são Laurence Sterne, Xavier de Maistre e Almeida Garrett, mas por trás do título pode haver também uma referência irônica às Memórias d’além-túmulo de Chateaubriand, publicado postumamente em 1849 e 1850. Aquelas memórias preencheram dois volumes; seu autor era um diplomata, político, escritor, historiador e supostamente fundador do Romantismo francês. As memórias póstumas de Brás Cubas (que são escritas de além do túmulo) cabem em míseras duzentas páginas e o narrador é, em sua própria admissão displicente, uma mediocridade completa, cuja vida pode ser resumida em uma série de negativas.

Ecos de Sterne, Maistre e Garrett estão definitivamente todos lá, nos capítulos breves, nos títulos oblíquos de capítulos, nos non sequiturs e na filosofia meia-boca, e no entanto, em muitas maneiras o livro é também um simples romance realista do século XIX, com seus ataques à hipocrisia da sociedade de classe média e com os temas-padrão do adultério, do dinheiro, do casamento, da avareza e da prodigalidade. Machado consegue combinar perfeitamente o realismo e o fantástico; e o estilo fragmentário e alusivo do romance e sua frequente inclusão de nós, leitores, nos parecem agora muito modernos, assim como a insistência de Brás Cubas em dizer, mais de uma vez, que isso não é de modo algum um romance.

Como nos contos e nos outros romances de Machado, há referências frequentes a textos clássicos, especialmente à Bíblia e a Shakespeare. As referências bíblicas – o caminho de Damasco, as bem-aventuranças, a parábola do banquete de casamento, Adão e Eva, Moisés – são todas usadas para um efeito batético [1]. Por exemplo, a grande descoberta revelatória à la “caminho de Damasco” de Brás Cubas é que ele não pode de modo algum se casar com uma moça coxa, mesmo que ele a ame. Com as muitas citações e alusões a Shakespeare, nós somos frequentemente lembrados que o autor é muito mais esperto do que nós, ou será que ele está, talvez, deixando pistas para os leitores mais alertas? Um exemplo: quando Brás Cubas, em um humor melancólico, tem uma iluminação e adota uma frase dita por Jacques em As you like it [2] – “É bom ser triste e nada dizer” – ele, parece, ignora inteiramente o retruque de Rosalinda: “Então é bom ser um poste”. Isso é deixado para que nós o percebamos – ou não. Quando Brás Cubas começa a rabiscar as frases de abertura da Eneida de Virgílio, “Eu canto as armas e o homem”, ele está em seu momento menos heroico, pronto a fazer exatamente o que seu pai quer e concordar com um casamento arranjado e uma carreira arranjada, também.

Outra característica frequente na obra de Machado é o uso de citações não-exatamente-precisas. Quincas Borba é particularmente afeito a mexer nos textos de outros filósofos – Pascal e Erasmo são dois exemplos – para ajustá-los a seus próprios propósitos e talvez para lhe conferir a aparência de ser superior a outros eruditos. Ou isso é mais um exemplo da teoria de Brás Cubas do homem como uma errata pensante? Ou mais uma maneira de enganar o leitor desavisado?

Quanto ao contexto social e histórico do romance, a primeira coisa a se notar é que em 1805, ano de nascimento de Brás Cubas, o Rio de Janeiro (fundado em 1565 e assim nomeado porque os portugueses haviam chegado lá em primeiro de Janeiro de 1502) era uma cidade colonial, e desde 1763 era a sede do vice-rei que regia todo o Brasil em nome do monarca português em Lisboa. Em 1808, enquanto o menino Brás Cubas começa sua tirania doméstica, a cidade atravessou uma transformação extraordinária com a chegada inesperada da família real e do governo português inteiro, forçados a fugir da invasão de Napoleão a Portugal.

O Rio de Janeiro, assim, se tornou por um breve período a capital de todo o Império Português e rapidamente adquiriu a maior parte dos ornamentos de uma capital plenamente habilitada – um governo, uma corte real, prédios públicos luxuosos e até mesmo um banco central. Esse processo parecia destinado a ser revertido após a queda de Napoleão em 1814, mas o rei português, Dom João VI, recusou-se a deixar o Rio, apesar dos apelos crescentemente desesperados de seu próprio governo. O impasse foi finalmente resolvido em 1822, quando o filho de Dom João VI, Dom Pedro I, declarou-se imperador de um Brasil independente e o vínculo com Portugal foi enfim quebrado.

Algumas dessas datas e eventos-chave são mencionados no romance, mas porque Machado menciona tão poucos deles, o leitor sente-se inclinado a especular se eles são, de fato, significativos. Por exemplo: Em 1805, Brás Cubas nasce; esse é também o ano em que soldados de descendência africana usaram medalhões com o retrato de Jean-Jacques Dessalines, líder da Revolução Haitiana, que inspirou escravos negros ao redor do mundo a lutar por seus direitos. E no dia imediatamente seguinte ao nascimento de Brás Cubas (nos é informada a data precisa), Napoleão perde a batalha de Trafalgar e assim a supremacia dos mares, um fator fundamental para sua derrocada final. Em 1806, Brás Cubas é batizado e é dada uma festa muito elegante; isso também marca o começo dos ataques militares britânicos na região do Rio da Prata, dando início a um longo período de interferência britânica em assuntos brasileiros, que é ecoada por todo o romance.

Em 1814, o pai de Brás Cubas dá uma festa extravagante para marcar a ruína final de Napoleão, a ênfase sendo na festa. Em 1822, Brás Cubas se apaixona por Marcela; enquanto isso, Dom Pedro declara a independência brasileira. Em 1842, Brás Cubas encontra Virgília novamente e eles começam seu caso; ao mesmo tempo, várias rebeliões liberais são rapidamente esmagadas pelo governo. Em 1869, Brás Cubas morre; no mesmo ano, um governo pró-Brasil é instalado na capital do Paraguai durante os estágios finais da guerra longa e sanguinolenta entre Paraguai, Brasil e Argentina.

Pode-se argumentar que a menção de Machado a essas datas historicamente significativas serve para mostrar quão pouco os eventos impactam as vidas dos personagens totalmente autocentrados do romance, todos eles confortavelmente bem de vida. Aqueles que não são bem de vida, como Eugênia ou Dona Plácida – ambas marcadas pela mancha da ilegitimidade – são rejeitadas ou usadas e, em última instância, relegadas a vidas de pobreza abjeta.

O tema da escravidão está presente por todo o romance, mas a mensagem de Machado é cuidadosamente escondida por trás de uma sutileza contida ou de uma indiferença aparentemente blasé afinal, o Brasil não aboliu a escravidão até 1888, cerca de oito anos depois da primeira publicação do romance, e o próprio Machado era neto de um escravo liberto. Às vezes os escravos parecem quase invisíveis: eles são parte de uma herança, a montaria preferida de uma criança mimada, não merecedores de confiança, apenas alvos de repreensão, e deles se fala como se fossem bens móveis ou gado. Aqui está Quincas Borba ponderando sobre a asa de frango que está comendo no jantar: “Eu não quero outro documento da sublimidade do meu sistema, senão este mesmo frango. Nutriu-se de milho, que foi plantado por um africano, suponhamos, importado de Angola. Nasceu esse africano, cresceu, foi vendido; um navio o trouxe, um navio construído de madeira cortada no mato por dez ou doze homens, levado por velas, que oito ou dez homens teceram, sem contar a cordoalha e outras partes do aparelho náutico. Assim, este frango, que eu almocei agora mesmo, é o resultado de uma multidão de esforços e lutas, executados com o único fim de dar mate ao meu apetite”.

E quando Brás Cubas encontra seu antigo escravo Prudêncio, agora um homem livre, batendo no escravo que ele, por seu turno, comprou, Brás Cubas fica chocado, mas então chega a uma conclusão estranhamente celebratória: “Era o modo que Prudêncio tinha de se desfazer das pancadas recebidas – transmitindo-as a outro. Eu, em criança, montava-o, punha-lhe um freio na boca, e desancava-o sem compaixão; ele gemia e sofria. Agora, porém, que era livre, dispunha de si mesmo, dos braços, das pernas, podia trabalhar, folgar, dormir, desagrilhoado da antiga condição, agora é que ele se desbancava: comprou um escravo e ia-lhe pagando, com alto juro, as quantias que de mim recebera. Vejam as subtilezas do maroto!”

O tratamento duro infligido aos escravos pelo cunhado insuportável de Brás Cubas, Cotrim, é desculpado pelo fato de que ele está metido com o tráfico de escravos e, além disso, “não se pode honestamente atribuir à índole original de um homem o que é puro efeito de relações sociais”. A mensagem parece ser a de que a violência e o maltrato geram mais violência e maltrato, uma mensagem corrosiva que ressoa até os dias atuais.

Ninguém escapa à visão mordaz de Machado sobre a humanidade, que é ditada pela ganância, pela ambição e pelo egoísmo. De sua posição além do túmulo, Brás Cubas está finalmente livre para ser totalmente honesto sobre si mesmo e sobre os outros, para escrever, como ele mesmo diz, “com a pena da galhofa e a tinta da melancolia”. Talvez o único momento de emoção sem mediações venha com a morte da mãe de Brás Cubas e com o luto aparentemente genuíno de Brás Cubas, do qual, entretanto, ele se recupera de fato muito rapidamente, como se o luto fosse apenas mais um obstáculo entre ele e sua diversão.

O livro é um catálogo de fracassos: Brás Cubas não se casa, não produz seu emplasto antimelancolia, não se torna um ministro de Estado, nem um editor de jornal; Lobo Neves não se torna um ministro, quanto menos um marquês; Eugênia não se casa com ninguém; Eulália não se afirma no mundo, não vive nem além dos dezessete anos; e Quincas Borba não publica seu livro de filosofia e nem mesmo consegue ser completamente louco. Machado nos apresenta uma visão quase que inteiramente niilista da vida e da humanidade. E, ainda assim, o narrador e o romance nos atraem, porque a voz narrativa é tão sedutora, tão engraçada, é com frequência escandalosa e sempre totalmente franca. E será que, talvez, nos reconheçamos, tão falhos, no narrador e nos outros personagens? E será essa, talvez, a pergunta que o romance faz ao leitor?

*Margaret Jull Costa e Robin Patterson traduziram para o inglês o volume The collected stories of Machado de Assis (Liveright Publishing Corporation). (https://amzn.to/3OzE3Gn)

Tradução: Anouch Neves de Oliveira Kurkdjian

Publicado originalmente na revista The Paris Review, em 16 de Junho de 2020.

[https://www.theparisreview.org/blog/2020/06/16/machados-catalogue-of-failures]

Notas da tradutora

[1] No original, “bathetic effect”. Do latim bathos; literalmente, “profundidade”. Trata-se de um termo literário para designar o efeito cômico advindo da contradição entre uma pretensão ou tópico sério e outro banal. Quando acontece de maneira não-intencional, trai a inépcia do artista, mas Machado utilizava essa justaposição de maneira intencional, de modo que o efeito é cômico e crítico, ou se quisermos, irônico.

[2] Comédia pastoral de Shakespeare.

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