Democracia e socialismo

Carlos Zilio, ESTUDO, 1970, caneta hidrográfica sobre papel, 47x32,5 (4)
Whatsapp
Facebook
Twitter
Instagram
Telegram

Por FLORESTAN FERNANDES*

Precisamos assumir plenamente nossa posição socialista proletária e a promoção de uma democracia com um polo social de classe e popular

A controvérsia suscitada pela Revolução Russa ainda não chegou ao fim, e ate hoje existem os que temem a supressão da democracia em troca da igualdade social. Ora, igualdade sem liberdade não corresponde ao ideário e à utopia do socialismo, tão bem encamados por Rosa Luxemburgo e Antonio Gramsci. Ao contrario de pensadores social-democratas ou marxistas, ambos compreenderam, como mais tarde o fariam Bobbio, Colletti e Gorz, que as condições de atraso econômico, cultural e político da Rússia pré-revolucionaria acarretavam conseqüências que impediam a conversão da ditadura do proletariado em uma forma mais avançada e completa de democracia. Tumultuosa e contraditória, ela teria de nascer da emergência do auto governo coletivo da maioria.

Desvendada resumidamente por Marx nos escritos de 1840, essa forma de democracia foi examinada com extrema objetividade e crueza na Crítica ao Programa de Gotha. Havia, no entanto, confiança no futuro e a certeza de que a revolução se desencadearia na Europa, irradiando-se em seguida para sua periferia e países coloniais, o que acabou se mostrando inviável.

Tanto Rosa quanta Gramsci julgavam que a estatização e a socialização dos meios de produção conduziriam aos ideais democráticos e igualitários do socialismo e do comunismo. Sua crítica é positiva: acreditavam nos sovietes – ou conselhos – e promoviam a exaltação de sua autonomia contra os desvios burocráticos, registrados por Lenin e, posteriormente, denunciados com veemência por Trotsky.

É interessante voltar a Rosa Luxemburgo, dolorosamente lúcida no ataque ao “revisionismo” e no diagnóstico da social-democracia. Sem o sarcasmo e a virulência de Lenin, ela se limita a desvendar as misérias do partido, no momento em que a liderança política e a burocracia aliavam-se contra a revolução, atraiçoando o socialismo, fortalecendo as classes dominantes e conferindo legitimidade ao Estado capitalista. O Partido Social Democrático (SDP) mantinha a reverência por seus símbolos, bandeiras e valores marxistas. Simples fachada … Como letras mortas ou um poema sem encantos, o marxismo, o lassalleanismo e, mesmo, o bernsteinismo ficaram para trás.

Esse processo de degradação aburguesada do socialismo e dos seus fundamentos teóricos e políticos não era localizado. Grassava por toda a Europa e repudiava sua corrente revolucionaria como pura verborragia. As dificuldades e a adulteração do marxismo, por causa do isolamento e das conseqüências imprevistas da Revolução Russa, conferiam uma aparência de verdade as versões da “democracia acima de tudo” emanadas do farisaísmo pequeno-burguês e intelectualista. Se, de fato, a democracia estivesse em jogo, ela jamais poderia ser dissociada do socialismo. Em relações compassivas e comprometedoras com a ordem existente, ser cruzado da democracia equivalia a abandonar o socialismo e atribuir ao capitalismo a faculdade de assegurar liberdade, igualdade e solidariedade juntamente com a perpetuação da propriedade privada, a expropriação do trabalhador dos meios de produção e a intangibilidade da sociedade civil. Tratava-se do avesso do que fora a social-democracia anteriormente, em especial ate o Kautsky revolucionário (do final do século XIX ate cerca de 1910).

Dois movimentos históricos simultâneos reforçaram, ampliaram e aprofundaram a tendência apontada. De um lado, a União Soviética necessitava de um “respiro histórico” para sobreviver através da coexistência pacifica, alternada com eclosões ocasionais de hostilidade programada com as nações capitalistas. As “frentes populares” puseram em primeiro plano a democracia como valor final. Deixaram a parte, porem, o questionamento fundamental: que tipo de democracia? A capitalista, que institucionaliza a classe como meio social de dominação e fonte de poder, ou a socialista, que deve tomar como alvo a eliminação das classes e o desenvolvimento da autogestão coletiva, passando por um período de dominação da maioria, tão curto quanta possível? De outro lado, a expansão do capitalismo – com um prolongado espaço de tempo de prosperidade, dissuasão policial-militar das divergências dos que poderiam ser representados como “inimigos” internos e externos, coalescência de um sistema mundial de poder e alternância de promessa e repressão – forjava novas condições de aburguesamento dos assalariados qualificados, dos intelectuais e da “solução negociada” dos conflitos por emprego, níveis de salários, padrões de vida ou oportunidades educacionais.

Pela própria impulsão das transformações democráticas da civilização, a “reforma capitalista do capitalismo” brotava como alternativa ao socialismo e como “via de transição gradual” ate ele. Willy Brandt personifica essa objetivação da liquidação da socialdemocracia como partido socialista stricto sensu. A presença norte-americana e aliada na Alemanha justificaria a evolução. Contudo, poderia, por si só, servir como ingrediente revolucionário, se o socialismo proletário marxista se tivesse mantido vivo no SDP. E o resto da Europa? Ali o processo ocorreu generalizadamente, o que implicava uma opção contra o socialismo revolucionário, em favor do aburguesamento.

Essas considerações nascem de uma convicção: enfrentamos o perigo de ver abater-se sobre nós o restabelecimento da confusão entre democracia e socialismo. Para muitos “social-democratas”, “socialistas” e “comunistas”, o objetivo central resume-se a instauração de condições econômicas, sociais, culturais e políticas da existência da democracia. Não há dúvida de que esta e vital para a livre manifestação da luta de classes e a liberação dos oprimidos. Todavia, não da mais para transferir sempre para o futuro a preparação das classes trabalhadoras e dos de baixo para lutar pelo socialismo e por uma democracia de corte socialista. Os partidos da esquerda não podem imitar o falso “centro” burguês e a demagogia populista. Seus porta-vozes usam e abusam de “fórmulas sociais” ou da “questão social” na forjicação de seus programas, no nome de seus partidos e no discurso político.

Precisamos separar-nos deles com coragem, assumindo plenamente nossa posição socialista proletária e a promoção de uma democracia com um pólo social de classe e popular, ao mesmo tempo voltada para as tarefas revolucionárias imediatas e de maior duração. É urgente que se faça isso com método, organização e firmeza, para que a democracia a ser criada não devore o socialismo, convertendo-se em um sucedâneo bem-comportado do aburguesamento da socialdemocracia e da social-democratização do comunismo. Carecemos com premência da democracia. Mas de uma democracia que não seja o tumulo do socialismo proletário e dos sonhos de igualdade com liberdade e felicidade dos trabalhadores e oprimidos.

*Florestan Fernandes (1920-1995) foi professor emérito do Departamento de Ciências Sociais da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP. Autor, entre outros livros, de A Revolução burguesa no Brasil (Contracorrente)

Publicado originalmente na revista Crítica Marxista no. 3

 

 

 

Veja neste link todos artigos de

AUTORES

TEMAS

10 MAIS LIDOS NOS ÚLTIMOS 7 DIAS

Lista aleatória de 160 entre mais de 1.900 autores.
Henri Acselrad Jorge Branco Ronaldo Tadeu de Souza Alexandre de Oliveira Torres Carrasco Kátia Gerab Baggio Eugênio Bucci Flávio Aguiar Fernando Nogueira da Costa Antônio Sales Rios Neto José Luís Fiori Lucas Fiaschetti Estevez Celso Favaretto Anselm Jappe Luiz Bernardo Pericás Luis Felipe Miguel João Feres Júnior Daniel Brazil José Micaelson Lacerda Morais Gilberto Maringoni Ari Marcelo Solon Bento Prado Jr. Anderson Alves Esteves Bruno Machado Ladislau Dowbor João Carlos Salles Marcelo Módolo Daniel Afonso da Silva Luís Fernando Vitagliano Leonardo Boff Tales Ab'Sáber Fábio Konder Comparato Marcos Silva Jorge Luiz Souto Maior Vladimir Safatle Leonardo Avritzer Francisco Fernandes Ladeira Rafael R. Ioris Sandra Bitencourt Paulo Martins Julian Rodrigues Francisco Pereira de Farias André Singer Andrés del Río Flávio R. Kothe Claudio Katz Eugênio Trivinho Armando Boito Lorenzo Vitral Rubens Pinto Lyra Heraldo Campos Luiz Carlos Bresser-Pereira Dênis de Moraes Atilio A. Boron Osvaldo Coggiola Chico Whitaker Elias Jabbour João Carlos Loebens Lincoln Secco Ricardo Abramovay Luciano Nascimento Slavoj Žižek Luiz Marques Eliziário Andrade Luiz Eduardo Soares Denilson Cordeiro Liszt Vieira Mário Maestri Ricardo Fabbrini Alysson Leandro Mascaro Antonino Infranca Érico Andrade Paulo Capel Narvai Eleonora Albano Walnice Nogueira Galvão José Costa Júnior Samuel Kilsztajn Igor Felippe Santos Eduardo Borges Gerson Almeida Michael Roberts Otaviano Helene Vinício Carrilho Martinez Marcus Ianoni Ronald León Núñez Leda Maria Paulani Manuel Domingos Neto Paulo Nogueira Batista Jr Plínio de Arruda Sampaio Jr. Mariarosaria Fabris André Márcio Neves Soares Paulo Sérgio Pinheiro Fernão Pessoa Ramos Antonio Martins Caio Bugiato Alexandre de Freitas Barbosa Priscila Figueiredo Renato Dagnino Marcos Aurélio da Silva Everaldo de Oliveira Andrade Berenice Bento Boaventura de Sousa Santos Alexandre de Lima Castro Tranjan Manchetômetro Ricardo Antunes Michael Löwy Carlos Tautz Chico Alencar Marilena Chauí Alexandre Aragão de Albuquerque João Lanari Bo Andrew Korybko Leonardo Sacramento Luiz Werneck Vianna Celso Frederico Dennis Oliveira João Sette Whitaker Ferreira Jean Pierre Chauvin Marjorie C. Marona Bernardo Ricupero Benicio Viero Schmidt José Machado Moita Neto Luiz Roberto Alves Daniel Costa Vanderlei Tenório Tadeu Valadares Luiz Renato Martins Valerio Arcary Jean Marc Von Der Weid Paulo Fernandes Silveira José Raimundo Trindade Sergio Amadeu da Silveira Gabriel Cohn Yuri Martins-Fontes João Adolfo Hansen Gilberto Lopes Juarez Guimarães Marcelo Guimarães Lima Remy José Fontana Ronald Rocha Marilia Pacheco Fiorillo Thomas Piketty Eleutério F. S. Prado Milton Pinheiro Maria Rita Kehl Salem Nasser Henry Burnett Matheus Silveira de Souza Ricardo Musse José Geraldo Couto José Dirceu Tarso Genro Bruno Fabricio Alcebino da Silva Michel Goulart da Silva Carla Teixeira Airton Paschoa Annateresa Fabris Afrânio Catani Rodrigo de Faria João Paulo Ayub Fonseca Francisco de Oliveira Barros Júnior

NOVAS PUBLICAÇÕES