As cidades desertas – II

Imagem: Oto Vale
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Por GILBERTO LOPES*

Entre a traição e a morte

Coronavírus

Novecentos mil mortos em todo o mundo! Quase 28 milhões de pessoas infectadas. Mais da metade em apenas três países: Estados Unidos (que já avança para os 200 mil mortos), Índia (o país onde a pandemia se estende mais rapidamente e que esta semana superou o Brasil em número de casos) e Brasil (com mais de quatro milhões de casos, aproximando-se dos 130 mil mortos). Na Índia, na semana passada, registraram-se mais de 80 mil casos diários. Na sexta-feira, já alcançava 87.115, superando também as mil mortes diárias, para um total de mais de 70 mil mortos. Os especialistas preveem que poderia ultrapassar os Estados Unidos, ainda que este, com quase 6,5 milhões de casos, supere amplamente os cerca de 4,5 milhões da Índia.

O governo hindu tratou de subestimar a propagação do vírus e insistir na necessidade de reativar a economia. Essa semana – indicou o periódico The Guardian –, soube-se de uma queda de 23,9% do PIB no trimestre passado, a maior desde que se começou a registrar esses dados, em 1996. Com muitos hindus trabalhando no setor informal, as cifras poderiam não mostrar, em toda sua dimensão, a grave situação do país, mostrou a reportagem. Na América Latina, depois do Brasil, o México é o país com o maior número de mortos: cerca de 70 mil; seguidos de Peru, com quase 30 mil, e Colômbia, com cerca de 21 mil.

América Latina: um panorama tétrico

Cerca de 45 milhões de latino-americanos serão empurrados para a pobreza ou extrema pobreza como resultado desta pandemia, estimou um estudo recente da Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (Cepal). Mais de um terço da população cairá na pobreza: 231 milhões de pessoas (de uma população de 630 milhões), pessoas que já não poderão alimentar-se adequadamente.

Enquanto a Europa investe o equivalente a 40% do PIB para enfrentar a crise econômica provocada pela pandemia, a América Latina investe apenas 10%. Os resultados só podem ser catastróficos. O PIB latino-americano retrocederá a níveis de uma década atrás, afirmou a secretária executiva da Cepal, a mexicana Alicia Bárcena, em entrevista à revista Foreign Policy publicada em 4 de setembro passado. “Vamos retroceder 14 anos em termos do índice de pobreza” e também aumentará a desigualdade, acrescentou. Oito em cada dez pessoas na região – 491 milhões de pessoas – viverão com recursos apenas três vezes acima da linha de pobreza. Ou seja, com menos de 500 dólares mensais.

A Cepal sugere medidas como estabelecer uma renda básica de emergência de 147 dólares por seis meses para os setores mais desfavorecidos; períodos de carência para micro, pequenas e médias empresas endividadas; mas também medidas fiscais, incluindo o acesso a recursos em condições favoráveis. Bárcena mencionou 275 bilhões de dólares que estariam disponíveis no FMI. Sugeriu também capitalizar as instituições internacionais de crédito, incluindo o BID e o BCIE [Banco Centro-americano de Integração Econômica]. Sua terceira proposta é a renegociação da dívida.

Será necessário ver que espaço existe para a aplicação de algumas destas sugestões da secretária executiva da Cepal. Em países como Costa Rica, por exemplo, o governo anunciou a negociação de um empréstimo do FMI, cujas condições ainda não foram divulgadas, mesmo que, ao que parece, já estejam definidas. Antes de anunciá-las, o governo convocou diversos setores sociais para um “diálogo”, recebido com pouco entusiasmo. O mesmo governo salientou que não se trata de mudar a essência do negociado.

O que se espera é que o acordo inclua severas medidas de ajuste do gasto público e a privatização de empresas públicas, uma decisão que enfrenta séria resistência no país, que conta com um setor público relativamente eficiente em matéria bancária,  telecomunicações, energia, saúde pública e educação, entre outros. Grupos empresariais conservadores, instalados no palácio presidencial, e setores políticos não ocultam sua intenção de aproveitar a crise para avançar numa agenda de privatizações e de corte de gastos, que poderia aprofundar a crise e tornar inviável a recuperação.

Bolívia: o que de melhor aconteceu

Falta pouco mais de um mês para as eleições gerais na Bolívia, que ocorrerão em 18 de outubro, depois de dois adiamentos em meio à pandemia da Covid-19. Uma pandemia que – na opinião da ex-presidente do senado, Adriana Salvatierra, em entrevista à imprensa argentina e brasileira, publicada no último dia 3 de setembro – só fez ressaltar “as características de um governo que não é fruto da vontade popular, mas de um golpe”.

Além de casos de corrupção na compra de material de saúde, o governo de Jeanine Áñez teve, em nove meses, três ministros da saúde, dois ministros da economia e dois ministros do planejamento. “Há tensão e uma crise permanente num gabinete que não tem possibilidades reais de enfrentar a Covid-19”, afirmou Salvatierra. Face às eleições – das quais o ex-presidente Evo Morales foi impedido de participar – estimou que não significarão o fim das tensões sociais e políticas no país. “Há uma tensão muito mais profunda e isto refere-se à radicalidade do nosso processo, que afetou diversos interesses, em nível geopolítico e local”, como os de Elon Musk e sua empresa Tesla, lembrou Salvatierra. Musk reivindicou seu direito de apoiar o golpe em defesa de seus interesses pelo lítio, do qual a Bolívia é um dos principais produtores mundiais.

Depois de rechaçar negociações com empresas ocidentais para a exploração do lítio, por não oferecer condições aceitáveis para o país, o governo de Morales assinaria um acordo com a China “que implicava uma inversão de 2,3 bilhões de dólares para industrializar o lítio. Tesla tem ativos de 76 bilhões de dólares, que a ex-senadora comparou com os 42,5 bilhões do PIB da Bolívia. Musk possui em suas contas bancárias “aproximadamente 34 bilhões de dólares a mais que todos os recursos econômicos que utilizamos em nosso país. Isso quer dizer, de uma maneira simples, que este homem possui quase duas Bolívias em suas contas bancárias”. Cometemos erros – acrescentou –, mas seguimos sendo o que de melhor aconteceu na história do nosso país”. Salvatierra denunciou o relato de fraude depois das eleições de outubro do ano passado, uma “operação da qual participa a OEA e confluem os grandes meios de comunicação”.

Em seguida, irrompe a violência contra os partidários do presidente Evo Morales. Como sublinhou Gabriel Hetland, professor assistente de estudos latino-americanos na Universidade de Albany, num artigo publicado pelo Washington Post, durante seus nove meses na presidência, Áñez “consolidou uma brutal ditadura de direita que assassinou dezenas de manifestantes civis. Torturou, feriu e encarcerou muitos mais. Censurou a imprensa”. Salvatierra lembrou que “quando viram que queimaram a casa da irmã de Evo, recentemente falecida; que Patricia Arce, prefeita de Vinto, foi sequestrada e torturada durante horas, que lhe cortaram o cabelo e foi obrigada a caminhar descalça no meio de turbas; ou que a irmã de Víctor Borda, que era o presidente da Câmara de Deputados, o quarto na linha de sucessão, foi sequestrada e lhe queimaram a casa”, me vi obrigada a renunciar. “Se eu houvesse assumido a presidência teria terminado com o banho de sangue que buscava a oposição nesse momento para sustentar seu golpe”, acrescentou.

Os candidatos do Movimiento al Socialismo (MAS), liderado por Morales, são favoritos novamente para ganhar as eleições. Luis Arce, ex-ministro da Economia e Finanças Públicas de Morales, é o candidato à presidência com o ex-chanceler David Choquehuanca como vice-presidente. É possível um triunfo do MAS, o que, para os setores mais conservadores da região, seria “uma tragédia política”. Áñez aparece em terceiro lugar nas pesquisas. Carlos Mesa, que foi candidato nas eleições do ano passado, aparece em segundo lugar nas pesquisas e passaria ao segundo turno caso Arce não conquiste a maioria absoluta no primeiro.

De eleições e opções

Não apenas na Bolívia se irá às urnas nos próximos meses. Será um semestre cheio de eleições importantes na região: o referendo constitucional no Chile, em 25 de outubro; as eleições gerais nos Estados Unidos, em 3 de novembro; ou as eleições legislativas na Venezuela, em 6 de dezembro. No Chile, trata-se de um processo cuja origem foram os grandes protestos de outubro do ano passado – que pegaram de surpresa o governo –, e uma das principais reivindicações é a reforma da constituição herdada do período ditatorial liderado pelo general Pinochet.

Trata-se, na verdade, de um longo processo se – como indicam todas as pesquisas – se aprova a conformação da constituinte. Os passos seguintes seriam a eleição de seus membros, provavelmente em abril, e depois o debate constitucional. Dado o aparentemente já inevitável e insuperável triunfo do “aprovo” em outubro, setores conservadores, antigos aliados da ditadura, como o possível candidato presidencial Joaquín Lavín, apostam na defesa de seus interesses nas fases seguintes do processo. Também se dão situações confusas, como o caso do ex-senador, ex-ministro do primeiro governo de Sebastián Piñera e também aspirante presidencial Pablo Longueira, que, depois de se manifestar a favor do “aprovo”, parece ter mudado de posição. “Eu estou a favor do rechaço, quero conservar tudo o que for possível dessa Constituição… Qual é a melhor forma de conservar essa Constituição, a melhor que o Chile já teve? Brigando na convenção, à qual cheguemos todos legitimados, que ninguém se vincule ao ‘aprovo’”, disse Longueira.

Allende

O debate sobre o referendo constitucional coincidiu com a celebração dos 50 anos do triunfo de Salvador Allende e da Unidade Popular (UP) nas eleições de 4 de setembro de 1970. Com seminários e mesas-redondas em diversas partes do mundo, refletiu-se sobre a importância dessas eleições e as consequências do golpe de 1973, que pôs fim à vida de Allende e à experiência da Unidade Popular, e facilitou a consolidação de ditaduras militares na América do Sul. “A experiência histórica do governo chileno de Salvador Allende, como um processo de transformação, não foi superada ainda na América Latina”, disse o destacado intelectual mexicano Pablo González Casanova, no seminário organizado pela Universidad Nacional Autónoma de México (UNAM). “Se tinha algo Allende, é que nunca representou uma liderança elitista, nunca se distanciou das massas. O governo da UP significou, em seus mil dias, um aprofundamento da democracia, não apenas quanto ao político e ao econômico, mas também em relação à participação das pessoas”, na opinião de sua neta, Marcia Tambutti Allende, presidente da Fundação Salvador Allende.

Francisco Zapata, chileno, professor do El Colégio de México, lembrou da trajetória política de Allende como parte de um “longo processo que se iniciou no Chile no início do século XX” e que, em seu governo, promoveu uma série de tarefas pendentes, como aprofundar a reforma agrária, com papel destacado de seu ministro Jacques Chonchol; a nacionalização do cobre, mediante um decreto de 11 de julho de 1971, que não indenizava as empresas estrangeiras; e a criação da Área de Propriedade Social na economia. “Com o golpe tudo ficou para trás, mas não a nacionalização do cobre, que segue em grande parte em mãos públicas”, lembrou Zapata. Finalmente, o periodista e escritor Luis Hernández, do jornal La Jornada, falou da figura de Allende no México, destacando que “nos 50 anos do triunfo da UP é fundamental lembrar e render homenagem ao homem digno que não duvidou em escolher entre a traição e a morte”.

Venezuela

Na Venezuela, depois da convocação para as eleições legislativas no próximo dia 6 de dezembro, Juan Guaidó, o presidente encarregado nomeado pelos Estados Unidos e reconhecido por diversos outros países, apelou à não participação na disputa, por considerar que não havia garantias. Uma posição posteriormente endossada pelos que o apoiam internacionalmente.

Um argumento que perdeu sustentação depois que o governo da Venezuela convidou a ONU e a União Europeia (mas não a OEA) a enviar observadores eleitorais. Um convite complicado para os europeus, que reconhecem a “presidência” de Guaidó. Contudo, na semana passada, outro líder opositor, o ex-candidato presidencial Henrique Caprilles, aceitou o desafio e anunciou sua participação nas eleições. “Não vamos deixar as pessoas sem opção, que tenham que eleger entre escorpiões ou Maduro, entre opositores vestidos de Maduro e Maduro. Não vamos presentear a Assembleia Nacional ao Maduro”, disse Capriles. Valorou, ademais, o convite à ONU e à União Europeia. “Desde 2006, não fazia isso”, afirmou. Desta forma, Capriles assume a liderança de uma oposição que se apresenta fragmentada entre os que se opõem às eleições e entre os que aceitaram participar, mas não possuíam uma ampla representatividade entre os grupos opositores. O presidente da Venezuela, Nicolás Maduro, depois de indultar a 111 opositores detidos, anunciou na última sexta-feira, 4 de setembro, a renovação de seu gabinete, com oito ministros assumindo candidaturas parlamentares.

Uma eleição a mais: BID

Há, porém, uma eleição a mais nestas semanas. Em 12 de setembro, os acionistas do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) elegem seu presidente. Desta vez, a eleição provocou diversas reações depois que a administração Trump anunciou sua intenção de postular como candidato Mauricio Claver-Carone, funcionário de origem cubana, nascido em Miami, diretor para América Latina no Conselho de Segurança Nacional do governo norte-americano, partidário de uma política agressiva para países como Venezuela e Cuba.

A designação quebra uma tradição. O presidente do BID sempre foi um latino-americano, com um norte-americano como vice-presidente. “Meu pai nasceu em Madri, minha mãe nasceu em Havana e eu nasci em Miami. Falo espanhol tão bem como qualquer outro candidato. O que nos faz menos latino-americanos que eles?”, perguntou-se Claver-Carone numa entrevista a Amanda Mars, do jornal El País. Lembrou ainda que o atual presidente, o colombiano Luis Alberto Moreno, nasceu na Filadélfia e é cidadão norte-americano. Tendo anunciado em fevereiro a intenção de lançar sua candidatura ao cargo, a ex-presidente da Costa Rica, Laura Chinchilla, decidiu retirá-la na semana passada, ao não ter conseguido negociar uma mudança de posição com os Estados Unidos. A decisão norte-americana foi criticada por um grupo de ex-presidentes latino-americanos de posições “moderadas”, que afirmaram que a decisão de Washington “não anunciaria bons tempos para o futuro da entidade”.

Gilberto Lopes é jornalista, doutor em Estudos da Sociedade e da Cultura pela Universidad de Costa Rica (UCR).

Tradução: Fernando Lima das Neves

 

 

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