Marcos Lutz Müller (1943-2020)

Imagem: Elyeser Szturm, da série Céus
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Por EMMANUEL NAKAMURA*

Comentário sobre a vida e a trajetória intelectual do professor de filosofia da Unicamp

“Seine Entdeckungsfahrten im Ozean des Wissens kamen […] zu ihrem Ende”[i]

No dia 15 de setembro de 2020, aos 77 anos, faleceu o professor Marcos Lutz Müller. Entre uma série de acontecimentos tristes, 2020 será certamente lembrado por ser um ano de perdas inestimáveis para a comunidade filosófica brasileira. Assim como Hegel, Marcos Müller, um dos nossos maiores especialistas no pensamento hegeliano, se despediu de nós às 17h. O filósofo “que não desiste da totalidade” resolveu partir. Ele deixa a sua esposa, a filósofa Jeanne-Marie Gagnebin, duas filhas e uma neta. Deixa também uma lacuna impreenchível no Departamento de Filosofia da UNICAMP, entre os membros da Sociedade Hegel Brasileira e entre amigos, orientandos, ex-alunos e colegas de pesquisa em filosofia clássica alemã no Brasil e no mundo.

Marcos Müller se formou, em 1965, em Filosofia e em Direito pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFGRS). Como bolsista do Serviço Alemão de Intercâmbio Acadêmico (DAAD), concluiu, em 1975 na Universität-Heidelberg, a tese de doutorado Sartres Theorie der Negation (A teoria da negação de Sartre), sob a orientação de Ernst Tugendhat – conhecido como um dos mais importantes representantes da filosofia analítica na Alemanha e que neste ano completou 90 anos de idade. Marcos Müller ainda realizou uma série de pesquisas de pós-doutorado em instituições internacionalmente renomadas: Universität-Konstanz (1986), Collège International de Philosophie (1986–1987), Frei-Universität zu Berlin (1994–1996), Università degli Studi d’Urbino (1998), Ruhr-Universität Bochum (2002), onde se encontra o Hegel-Archiv e a equipe que foi encarregada de elaborar a edição crítica das obras de Hegel.

Durante o período em que morou na Alemanha, Marcos Müller frequentou o grupo de pesquisa do coletivo de redação de influencia leninista conhecido nos anos 1970 como Projekt Klassenanalyse (PKA). Com isso, ele vivenciou, em sua efervescência, o auge do movimento conhecido como Neue-Marx-Lektüre e acompanhou o desenvolvimento de uma leitura sofisticada da teoria do valor de Marx[ii] . Engana-se quem pensa que se tratava de uma adesão acrítica a essas leituras, pois a sua recepção da obra de Marx trazia também autores que vêm da tradição hegeliana, como, por exemplo, Hans-Friedrich Fulda e Michael Theunissen. No momento em que os “Seminários Marx” da USP davam os seus últimos frutos com a tese de Fernando Novais em 1978, Marcos Müller chegava de volta ao Brasil com uma leitura robusta e atualizada de Marx e, sobretudo, da filosofia clássica alemã.

Dessa forma, ele contribuiu para transformar o Departamento de Filosofia da UNICAMP em um centro de excelência em estudos da filosofia clássica alemã, formando pesquisadores capazes de discutir a obra de Marx, conceitos e autores de Kant a Hegel em qualquer grande instituição europeia. Tal contribuição não se restringiu, contudo, apenas ao debate mais técnico do manejo de conceitos. O Instituto de Economia (IE) da UNICAMP foi fundado apenas em 1984. Durante o período em que o Departamento de Economia era vinculado ao Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH) da UNICAMP, essa vertente da tradição crítica brasileira do pensamento da formação nacional teve a oportunidade de travar um debate interdisciplinar frutífero com Marcos Müller.

Nos anos 2000, ele ainda desenvolveu, junto com outros colegas do Departamento de Filosofia, uma nova linha de pesquisa voltada para a apropriação da filosofia clássica alemã pela Escola de Kyoto.[iii] Muito em breve deve ser publicada a sua tradução crítica e comentada das Linhas fundamentais da filosofia do direito de Hegel. Por meio dela e de seus artigos, Marcos Müller deve continuar formando gerações de pesquisadores.

Meu contato com Marcos Müller se deu, primeiramente, por meio de sua obra – do célebre artigo sobre o método dialético de apresentação d’O Capital de Marx.[iv] Arrisco afirmar que até hoje no Brasil não há nenhum trabalho capaz de explicar de maneira tão precisa e decantada a apropriação marxiana da dialética de Hegel. Meu contato pessoal com o Marcos Müller se iniciou em abril de 2006. Vinha de uma graduação em Economia e com uma leitura raquítica de Hegel e Marx debaixo do braço na forma de um projeto de mestrado para ter uma primeira conversa com ele. Lembro-me de ter ficado impressionado com a maneira sensível, generosa, respeitosa e humilde com que ele discutiu comigo a minha proposta de pesquisa.

Essas características de sua personalidade, aliada a sua extraordinária competência e erudição filosófica, resultavam em uma relação extremamente horizontal com seus alunos e orientandos e em uma enorme disposição para o debate acadêmico. Em seu último curso na Unicamp, destinado à compreensão da dialética do finito e do infinito, Marcos Müller lia trechos da Ciência da Lógica de Hegel traduzidos na hora por ele, em seguida, fazia uma pergunta e colhia atentamente as dúvidas e opiniões dos alunos para só depois expor brilhantemente o assunto.

Durante a minha pesquisa de doutorado, a relação de admiração e respeito que tinha com o meu orientador se transformou em uma bonita amizade. Fecho agora os olhos e consigo sentir novamente a minha alegria em poder rever o Marcos Müller em sua visita a Berlim e em minhas visitas ao Brasil. Quando estava prestes a terminar a redação de minha tese, em visita a São Paulo, Marcos Müller e eu nos encontramos para um almoço. Ele chega então com um envelope debaixo do braço com inúmeras anotações sobre a minha tese, corrigindo erros de alemão, indicando sugestões de leitura e com perguntas muito difíceis de responder.

Agora o meu amigo me deixa no meio de uma pesquisa de pós-doutorado. Quando apresentei-lhe o meu projeto, ele comentou que esperava que o Brasil não se distanciasse ainda mais de tudo aquilo que as pesquisas de seus orientandos procuravam. A pandemia do coronavírus e o caos proposital e consentido com que o país lida com a crise tornam o adeus ainda mais doloroso. A falta de uma despedida gera uma sensação de espera, como se ainda estivesse aguardando por uma ligação, uma mensagem de celular ou um e-mail do Marcos Müller.

Lembrar da sensibilidade, da generosidade e do respeito com que ele tratava os seus orientandos é talvez a formada de encontrar algum conforto, sentido e motivação para tentar seguir adiante. Espero que meus colegas possam se sentir um pouco mais confortados e contemplados com estas palavras do amigo Marcos Müller depois de um dos nossos últimos encontros presenciais: ele me disse que“nestes tempos obscuros” a conversa com os seus orientandoslhe trazia“a confiança de que estes anos de vida acadêmica, com todas as suas limitações, não foram em vão e que a ‘transmissão’ (não a Tradition, mas a Überlieferung) continua.”

*Emmanuel Nakamura é pesquisador de pós-doutorado pela Unicamp e doutor em Filosofia pela Humboldt-Universität zu Berlin.

 

Notas


[i] Trecho da biografia de Hegel de Klaus Vieweg: “Seine Entdeckungsfahrten im Ozean des Wissens kamen, so ein Student Hegels, zu ihrem Ende, der Kapitän verhieß Land, eine neue Welt, blätterte nochmal in seinen Schiffsakten, klappte die Schnupftabaksdose zu und schied von dannen.” (“Suas viagens de descoberta no oceano do conhecimento chegaram a um fim, segundo um dos estudantes de Hegel, o capitão prometeu terra, um novo mundo, folheou novamente as atas do navio, fechou a caixa de fumo e então partiu.”) Vieweg, Klaus. Hegel. Der Philosoph der Freiheit. München: Beck, 2019, 672.

[ii] Cf. Elbe, Ingo. Marx im Westen. Die neue Marx-Lektüre in der Bundesrepublik seit 1965. Berlin: Akademie, 2010, 91.

[iii] Cf. Müller, Marcos Lutz. A Experiência Religiosa e a Lógica Tópica da Autodeterminação do Presente Absoluto (Kitaro Nishida). Analytica (UFRJ), v. 12, 47–75, 2008.

[iv] Müller, Marcos Lutz. Exposição e método dialético em “O Capital”. Boletim SEAF (Sociedade de Estudos e Atividades Filosóficas). Belo Horizonte, n. 2, 17–41, 1982.

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