Por FÁBIO KONDER COMPARATO*
O campo de concentração é o modelo em miniatura do totalitarismo
A experiência funesta do Estado totalitário, com todo o seu sinistro cortejo de horrores, marcou fundamente o século XX. Quando voltamos a considerar todos esses episódios, não podemos afastar a indagação: como foi possível chegar a esse ponto de degradação moral?
Antes, porém, de ensaiar a resposta, convém esclarecer em que sentido é empregada aqui a expressão “Estado totalitário”, e qual a diferença específica desse tipo de Estado em relação a outros, presentes e passados, que com ele parecem assemelhar-se.
Características essenciais do totalitarismo
Na famosa conferência que pronunciou no Ateneu Real de Paris, em 1819 – La liberté des anciens comparée à celle des modernes –, Benjamin Constant procurou mostrar como a concepção de liberdade que vigorou na Antiguidade clássica nada tinha a ver com o sentimento de liberdade individual do homem moderno.
Na cidade antiga, lembrou ele, consideravam-se livres apenas os cidadãos, isto é, os que tinham voz e voto nas assembleias e demais órgãos públicos, para decidir sobre a paz e a guerra, votar as leis e julgar os seus concidadãos. Mas a cidadania não passava então de um privilégio, do qual eram excluídos, não só obviamente os escravos, mas também as mulheres, os estrangeiros e também, em certas cidades, os comerciantes, os artesãos e os camponeses.
Ora, aqueles mesmos poucos indivíduos que gozavam de plena cidadania, e que se consideravam, portanto, livres, na esfera de suas vidas privadas submetiam-se rigidamente aos costumes ancestrais, sem poder sequer sonhar com a mínima veleidade de inovação em assuntos de moral familiar ou de religião, sob pena de cometerem o grave delito de impiedade. Ademais, era impensável na Antiguidade que as autoridades públicas alterassem, ainda que minimamente, as normas da moralidade tradicional e as regras do culto religioso, tidas umas e outras como estabelecidas pela divindade.
Com o advento da civilização burguesa, ao contrário, a participação na vida pública tornou-se muito menos importante do que a tranquila fruição da autonomia privada, tanto em assuntos de moral e religião, quanto em matéria de negócios. O supremo abuso não consiste, para a mentalidade burguesa, na privação do direito de votar e ser votado em eleições políticas, mas sim na supressão, ou mesmo na simples limitação, pelo Estado, da liberdade de expressão, de culto religioso, ou de iniciativa empresarial. Instituiu-se, assim, uma separação não só conceitual, mas real, entre o Estado e a sociedade civil, separação esta totalmente desconhecida no mundo antigo.
Tanto a politeia dos gregos quanto a res publica romana formavam um todo unitário, composto pelo povo e o conjunto dos governantes. A esfera privada, na verdade, não se localizava numa genérica “sociedade civil”, contraposta ao poder público, mas sim na família, isolada ou reunida com outras famílias, para formar fratrias ou cúrias. Como bem salientou Fustel de Coulanges, da família provieram todas as instituições gregas e romanas, tanto as de direito privado, quanto as da organização política, com seus princípios, regras e usos [1].
Ora, a originalidade das experiências totalitárias vividas no século XX reside no fato de que, contrapondo-se marcadamente ao Estado liberal do constitucionalismo moderno, nem por isso reproduziram as tiranias ou autocracias do passado. Na verdade, o Estado totalitário veio suprimir tanto a liberdade dos antigos, quanto a dos modernos.
O que caracteriza o totalitarismo é o fato – sem precedentes na história – da destruição, por obra do poder público, das estruturas mentais e institucionais de todo um povo, com a concomitante tentativa de reconstrução, a partir dessa terra arrasada, de mentalidades e instituições novas.
Daí por que, desde os anos 1930, já não era possível confundir o Estado totalitário com aquele simplesmente autoritário. A distinção, que eu saiba, foi proposta pela primeira vez na teoria política por Karl Loewenstein, numa obra consagrada justamente à análise do Estado Novo getulista [2]. Ao contrário dos Estados autoritários, em que o povo não participa do poder político, mas onde a vida privada goza de certa autonomia, o Estado totalitário suprime a liberdade, individual ou grupal, em todos os campos, exatamente porque, com a sua instalação, desaparece a distinção entre Estado e sociedade civil, entre a esfera pública e a privada.
O que atrapalha, porém, nessa matéria, é que as mesmas expressões – Estado totalitário e Estado autoritário – foram usadas com sentido trocado, pelo fascismo italiano e o nazismo alemão, para caracterizar os seus respectivos regimes políticos. Mussolini e o filósofo oficial do regime, Giovanni Gentile, justificavam o qualificativo totalitário com a frase célebre: “Niente contro lo Stato, niente fuori dello Stato, tutto nello Stato”. Mas a Itália fascista sempre fez questão de deixar intocado o espaço religioso, quando mais não fosse para não reabrir o contencioso político-territorial com o Vaticano, desencadeado quando da ocupação de Roma pelas tropas piemontesas, em 1870. Nesse sentido, portanto, o Estado fascista não foi totalitário. Quanto ao hitlerismo, este preferiu caracterizar, eufemisticamente, o Reich como uma “forma estatal autoritária” (autoritäre Staatsform).
Ora, a distinção entre esses dois tipos de Estado é marcante. No ambiente social totalitário, já não há lugar para a subsistência das antigas regras de moralidade, ou para os cultos religiosos de qualquer espécie. No espaço de onde foram expulsas a moral e a religião, consideradas doravante resquícios apodrecidos de uma idade revoluta, introduziu-se compulsoriamente, em nome da razão, a ideologia, ou seja, a explicação dogmática e oniabrangente do homem e do mundo, a servir de alimento para a atividade de permanente propaganda do Estado.
Em lugar do direito, isto é, do sistema de normas gerais, conhecidas e estáveis, tornadas públicas pela autoridade competente, e de aplicação previsível segundo processos racionais de interpretação, instaurou-se a submissão completa, de corpo e alma, da população à pessoa mítica do chefe transformado em personagem sobre-humano, que está em toda parte, tudo sabe, tudo vê, tudo decide.
Com isso, aboliu-se todo critério fixo e objetivo de moralidade e juridicidade. O que cada indivíduo pode fazer ou deixar de fazer depende a cada momento das ordens expressas ou tácitas, emanadas dos diferentes órgãos de poder, cuja esfera de competência, aliás, nunca é oficialmente delimitada, de modo a criar um sentimento geral de incerteza. Nesse ambiente, é logicamente impossível saber, ainda que vagamente, quando se infringe ou não uma norma oficial. Daí o fato de que o único fator real de aglutinação dos indivíduos, em regime totalitário, é o terror. Por essa razão, toda a máquina estatal é montada para difundir, em qualquer circunstância, o sentimento de trágica impotência diante dos órgãos oficiais ou oficiosos do Estado.
Como bem salientou Hannah Arendt [3], ao suprimir toda autonomia individual, o Estado totalitário destruiu, ao mesmo tempo, a comunidade política no sentido próprio do substantivo: já não existe uma res publica, ou bem comum do povo, e cada indivíduo é condenado, em consequência, a viver em estado de completo isolamento, como átomo ou mônada, incapaz de formar uma associação mínima com outros indivíduos, um embrião que seja de célula social. Ao indivíduo já nada mais resta de próprio — expropriado que foi de toda privacidade e intimidade — nem tampouco nada de comum a partilhar com os outros. A sociedade humana é assim transformada em massa de indivíduos, semelhante ao rebanho animal, isto é, o aglomerado de seres idênticos, como partes componentes de um todo incapaz de viver e governar-se autonomamente.
É por isso que o campo de concentração – Lager nazista e o Gulag soviético – constituiu uma espécie de miniatura do Estado totalitário. Lá, a despersonalização do ser humano atingiu o paroxismo, com a supressão de todo contato humano, não só com o mundo exterior, mas até mesmo com os indivíduos de dentro do campo; com o despojamento, não apenas da roupa e dos haveres pessoais, mas ainda dos cabelos e próteses dentárias, enfim, com a substituição altamente simbólica do nome por um número, frequentemente gravado no corpo, como a marca de propriedade de um animal.
Consideradas essas características essenciais do totalitarismo, torna-se evidente a sua diferença em relação às antigas tiranias ou autocracias, como, por exemplo, o regime político de Esparta, ou o Império Romano sob Diocleciano. Aqui, jamais se cogitou de destruir os costumes dos antepassados ou a religião tradicional, a fim de introduzir uma nova maneira de viver em sociedade. Ao contrário, os regimes políticos e governos mais autoritários da Antiguidade, tanto no Oriente quanto no Ocidente, foram sempre os mais conservadores e os mais tradicionalistas em matéria de crenças e costumes.
Apresso-me, todavia, em afirmar que é um engano equiparar a esses modelos antigos os novos exemplos de Estado confessional, engendrados pelo fundamentalismo religioso contemporâneo. A história não se repete, pela boa razão de que a memória coletiva, tal como a individual, não é mera reprodução de experiências anteriores, mas uma acumulação incessante de experiências novas, que se fundem, progressivamente, num todo complexo, em perpétua evolução. A repetição de estados mentais passados é mera regressão patológica.
Por isso mesmo, os novos Estados confessionais do fundamentalismo religioso, a exemplo do Irã após a destituição do Xá Reza Pahlevi, são, inegavelmente, totalitários. As estruturas mentais e institucionais da modernidade já haviam penetrado na sociedade iraniana, e a tentativa de destruí-las, a fim de introduzir em seu lugar a submissão completa da vida pública e privada aos ditames do Corão, tal como interpretados pelos chefes religiosos, foi incontestavelmente totalitária.
A gestação do totalitarismo
Uma indagação sempre afligiu os historiadores da modernidade: como foi possível engendrar o Estado totalitário? Quais os fatores responsáveis pela criação desse monstro, e por que ela se deu somente no século XX e não antes?
No seu estudo fundamental sobre as origens do totalitarismo, Hannah Arendt aponta como causas geradoras do fenômeno o antissemitismo e o imperialismo. Sem negar que tais movimentos adquiriram, no final do século XIX, características diversas das que marcaram os vários episódios anti-semitas e imperialistas do passado, não me parece que os verdadeiros fatores de geração do Estado totalitário sejam esses.
Eu diria que o antissemitismo e o imperialismo modernos foram, antes, bancos de prova para a instauração do totalitarismo. O efeito mais espetacular do antissemitismo moderno foi o de demonstrar que as massas populares podiam ser galvanizadas numa espécie de transe coletivo, para que se purgassem todos os males sociais com a liquidação ritual desse bode expiatório coletivo: o povo judeu. Com isso, obtinha-se a suspensão de todos os princípios e regras da vida política, pois já não havia leis nem tribunais. Quanto ao imperialismo capitalista do último quartel do século XIX, ele veio mostrar a possibilidade de se exercer a dominação social sobre os povos coloniais, igualmente fora de qualquer regulação legal, unicamente com base na força militar e policial, sem que estas corporações armadas respondessem perante autoridade alguma das metrópoles. Ou seja, a substituição da vida política pela dominação animal.
A geração do Estado totalitário, em meu entender, tem uma causa histórica mais profunda. Ela está umbilicalmente ligada, segundo me parece, ao processo de disrupção do universo ético, iniciado a partir do chamado “outono da Idade Média”, para usar da imagem expressiva de Huizinga. Até então, moral, direito e religião formavam um só e mesmo sistema harmônico de regulação da vida humana.
Em determinada passagem do Teeteto de Platão, Sócrates lembra ao seu interlocutor que “o que é moralmente belo ou feio, justo ou injusto, piedoso ou ímpio, cada Cidade assim o julga e institui como sua ordenação jurídica” (172a). Entre essas três esferas normativas, por conseguinte, não há nem pode haver nenhuma oposição. Para os antigos, era incompreensível distinguir entre o legal e o legítimo. E, por isso mesmo, essa ordenação ética global, própria de cada Cidade, não podia ser considerada melhor ou pior que outra qualquer: ela estava intimamente ligada à vida do povo, como uma espécie de genoma social.
Mas, prossegue Sócrates na mesma passagem do diálogo, quando se trata de conceber e pôr em prática políticas úteis a uma Cidade — a construção de uma frota mercante, ou a celebração de um tratado de paz e comércio com outra Cidade, por exemplo —, é sempre possível julgar do erro ou do acerto das medidas tomadas, pois aqui encontramo-nos no terreno da técnica ou arte do fazer e construir, e não da ética ou modo de ser social.
Ora, a primeira ruptura nesse sistema normativo harmônico ocorreu já no início do chamado Renascimento europeu, com a separação entre a esfera política e a da moralidade ordinária, ao se defender o estabelecimento de uma ética própria para os governantes, diversa da que se aplicaria ao conjunto dos governados. Aos primeiros, tudo seria justificado em nome da “razão de Estado”: o assassínio, a rapina, a infidelidade às promessas mais solenes, o embuste permanente. O príncipe, de Maquiavel, representa bem o atestado de nascimento dessa nova mentalidade que toma conta dos espíritos, apesar das primeiras reações de indignação e escândalo. Um século depois, Hobbes voltaria a defender a mesma tese, mas agora com outra bagagem teórica.
A partir do último quartel do século XVII, ocorre nova fratura no velho edifício da ética ocidental. Por força daquela “crise da consciência europeia”, título do importante livro que Paul Hazard dedicou ao assunto, a fé religiosa desliga-se da razão. Para esse resultado, muito contribuiu a filosofia de Espinosa. Em consequência, os preceitos religiosos em matéria de moral perdem a pretensão à universalidade e deixam, por isso mesmo, de fundamentar o sistema jurídico geral. A liberdade de crença e de culto religioso afirma-se aos poucos, malgrado a resistência obstinada de algumas organizações clericais.
Em pleno século XVIII, prossegue o desmantelamento da ética tradicional, com a afirmação do princípio utilitarista por David Hume, e a sua aplicação ao campo das atividades econômicas com A riqueza das nações de Adam Smith. Doravante, a classe burguesa dispunha de uma justificativa racional para o seu egoísmo competitivo e dominador: a busca, de cada indivíduo, por seu próprio interesse, na arena livre do mercado, provocaria, por um efeito de causalidade automática, o progresso de toda a coletividade, nacional e mundial. Esse resultado, cuja realização aquela dupla de pensadores escoceses nos assegurava certeira, passou portanto a sobrepor-se a qualquer princípio ético abstrato.
O que conta nas ações humanas, sustentou Hume, é saber qual a vantagem ou desvantagem que daí advém, para o agente e os demais componentes da sociedade. Como se vê, uma moral clara e precisa, muito distante das incertezas ligadas ao cumprimento de princípios abstratos. O problema todo, no entanto, é justamente tornar claro o que se deve entender por vantagem ou desvantagem moral, e, sobretudo, quem são os beneficiados e os prejudicados por esse sistema de contabilidade social.
Em vão, Rousseau e Kant, cada qual com seu estilo e seu método de pensamento, procuraram reagir contra essa tendência desagregadora, e sustentar a transcendência ética da pessoa humana. As sementes do individualismo utilitário já haviam germinado, a erva daninha vicejou e produziu abundantes frutos. O mundo entrara, decisivamente, na era capitalista, com a hegemonia incontrastável das regras técnicas sobre os princípios éticos, e a supremacia do interesse próprio sobre o bem comum.
Faltava apenas uma última etapa, para se concluir o desmonte do edifício ético original: a separação entre direito e moral. Disso se encarregou a teoria do chamado positivismo jurídico. Doravante, passou a ser tida como elemento componente do direito toda norma que, editada pela autoridade competente ao cabo de um processo regular, é suscetível de sanção coativa pelo Estado. De acordo com esse conceito formalista, seriam perfeitamente jurídicas não apenas as regras de supressão da cidadania para minorias étnicas ou culturais, mas também o regulamento dos campos de concentração e as medidas legais de genocídio. A distinção entre legalidade e legitimidade, ou a contraposição de justiça a direito, entrariam a fazer parte do longo rol histórico das querelas absurdas, pois entre a ordem jurídica e os princípios morais já não existiria nenhum vínculo lógico ou social.
Esta, a meu juízo, a verdadeira etiologia da peste totalitária. A septicemia do organismo social só pôde ocorrer em razão do estado de profunda debilidade em que ele se encontrava.
A preservação da liberdade
A segunda metade do século XX desdobrou-se em duas fases bem distintas. A primeira delas foi o período marcado pela Guerra Fria, pela descolonização e o esforço de desenvolvimento nos países do chamado Terceiro Mundo, e também pela difusão dos princípios e instituições do Estado do bem-estar social nos países avançados. Na segunda fase, ao contrário, assistimos à predominância mundial do capitalismo, à desagregação da União Soviética, com o consequente desvinculamento de seus satélites europeus, e à afirmação dos Estados Unidos como potência hegemônica planetária.
Como definir essa ameaça? Ela se parece com um imperialismo, mas de uma espécie diversa daquela que conhecemos e analisamos no passado.
O imperialismo antigo, com efeito, fundava-se na dominação territorial de outros povos e visava à sua exploração econômica, para a extração de metais e pedras preciosas, à expansão do mercado de consumo das potências imperiais, ou ao estabelecimento de zonas geopolíticas de segurança. O ônus dessa forma de imperialismo era a administração direta dos territórios colonizados.
O novo imperialismo, ao contrário, não se funda na dominação territorial, mas no controle econômico e financeiro de outros países.
Empreguei intencionalmente o termo “controle”, contrapondo-o a “dominação”. A distinção assim proposta é análoga à que se estabeleceu, na análise jurídica da grande sociedade anônima, entre “propriedade” do capital e “controle” da empresa [4]. Os capitalistas contentam-se em ser proprietários de ações, para renda ou especulação no mercado de valores mobiliários. Já os empresários, embora muita vez possuindo uma minoria de ações, ou mesmo não possuindo ação alguma, exercem de fato o poder de governo da empresa e de disposição do patrimônio social.
No novo imperialismo, de modo semelhante, instituem-se dois níveis de poder de governo nos países controlados. Os governantes “de dentro” exercem a administração direta – tal como os conselheiros e diretores da sociedade anônima –, mas devem submeter-se às diretrizes e políticas econômico-financeiras ditadas pelo controlador, que governa o país de fora. Algumas vezes, o controlador chega a interferir na administração direta do país controlado, impondo-lhe os governantes de sua confiança, ou destituindo os que lhe pareçam perigosos aos seus interesses imperiais.
Ao contrário do que sustentam Antonio Negri e Michael Hardt [5], o centro de poder do novo imperialismo não dispensa as estruturas políticas do Estado-nação, pela boa razão de que, atualmente, só países soberanos detêm a potência militar: as organizações internacionais com poder de autorizar a guerra ou de dirigi-la, tais como a ONU e a OTAN, dependem inteiramente do concurso de seus países-membros para formar as suas forças militares.
No campo econômico-financeiro, a dominação mundial é também exercida por Estados-nações, seja diretamente seja pelo controle que detêm sobre as organizações internacionais como a Organização Mundial do Comércio e o Fundo Monetário Internacional.
O velho edifício das Nações Unidas, erigido por iniciativa dos Estados Unidos, após a Segunda Guerra Mundial, para manter a paz e corrigir os efeitos mais desastrosos da miséria ,das populações, está sendo agora desmontado pelos mesmos Estados Unidos, porque a ONU tornou-se um claro obstáculo às pretensões norte-americanas de exercer, isoladamente, o poder imperial sobre toda a face da Terra.
Como tive ocasião de assinalar [6], o acesso dos Estados Unidos à condição de potência hegemônica mundial, após o esfacelamento da União Soviética, tornou muito difícil a reorganização das relações internacionais num sentido comunitário. O último tratado internacional de direitos humanos ratificado pelos Estados Unidos foi o Pacto aprovado pelas Nações Unidas em 1966, sobre direitos civis e políticos. O Pacto gêmeo sobre direitos econômicos, sociais e culturais teve sua ratificação rejeitada pelo Congresso norte-americano.
A partir de então, os Estados Unidos vêm-se recusando, sistematicamente, a se submeter às normas internacionais de proteção aos direitos humanos, por considerarem que isso implica limitação de sua soberania. Assim foi com os Protocolos de 1977 às Convenções de Genebra de 1949 sobre a proteção das vítimas de conflitos bélicos, com a Convenção sobre a eliminação de todas as formas de discriminação contra as mulheres de 1979, com a Convenção sobre o Direito do Mar de 1982, com o Protocolo Adicional de 1988 à Convenção Americana sobre direitos humanos em matéria de direitos econômicos, sociais e culturais, com o Segundo Protocolo de 1989 ao Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos, com a Convenção sobre os direitos da criança de 1989, com a Convenção sobre a Diversidade Biológica de 1992, com a Convenção de Ottawa de 1997, sobre a proibição de uso, armazenagem, produção e transferência de minas antipessoais [7], tratados, todos esses, já em vigor no plano internacional. Os Estados Unidos recusaram-se também a assinar a Convenção que instituiu um Tribunal Penal Internacional, aprovada em Roma por uma conferência de plenipotenciários, em 17 de julho de 1998.
Os Estados Unidos vão-se tornando assim, decisivamente, um Estado fora da lei no plano internacional. A reorganização do mundo, para evitar a ressurreição do flagelo totalitário, passa pois, hoje, claramente, pela instituição de estruturas políticas e econômicas internacionais de limitação da soberania das grandes potências, a começar pelos Estados Unidos. É esta a magna tarefa das próximas gerações. Do êxito desse formidável empreendimento dependerá, afinal, a preservação da dignidade da pessoa humana, como único ser no mundo capaz de amar, descobrir a verdade e criar a beleza.
*Fábio Konder Comparato é Professor Emérito da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, Doutor Honoris Causa da Universidade de Coimbra.
Publicado originalmente no portal Artepensamento IMS
Notas
[1] A cidade antiga. Tradução de Fernando de Aguiar. São Paulo: Martins Fontes, 1998, p. 4.
[2] Brazil under Vargas. Nova York: The MacMillan Company, 1942, conclusão, p. 369 e ss.
[3] The origins of totalitarianism. San Diego/ Nova York/ Londres: A Harvest Book, Harcourt Brace & Company, nova edição, p. 290 e ss.
[4] Tratei amplamente do assunto na monografia O poder de controle na sociedade anônima. Rio de Janeiro: Forense, 1983.
[5] Antonio Negri e Michael Hardt, Empire. Harvard University Press, 2000,
[6] A afirmação histórica dos direitos humanos. São Paulo: Saraiva, 2001, epílogo.
[7] A convenção entrou em vigor no dia 1o de março de 1999. Segundo o Relatório do Desenvolvimento Humano 1998, das Nações Unidas, mais 110 milhões de minas ativas estão espalhadas por 68 países, e uma quantidade equivalente acha-se armazenada em todo o mundo. Todos os meses, mais de 2 mil pessoas são mortas ou mutiladas por explosões de minas.