Por SANDRA BITENCOURT & TARSO GENRO*
Observações sobre a decisão judicial que impediu a ONG Católicas pelo Direito de Decidir, de utilizar o termo “católicas”
“Nós, enquanto católicos, queremos que todos conheçam a verdade e sejam servos inúteis dela”. Este é o propósito declarado da Associação Centro Dom Bosco de Fé e Cultura, organização católica ultraconservadora, fundada em 2016, no Rio de Janeiro, autora do pedido para que ONG Católicas pelo Direito de Decidir, criada por mulheres cristãs que defendem o direito ao aborto nos casos já previstos em lei, percam a prerrogativa de usar o termo Católicas.
O Tribunal de Justiça de São Paulo (TJ-SP) concordou com as alegações e determinou nesta semana, 27, que a organização que defende o aborto legal não pode mais utilizar o termo “católicas” no nome. A decisão, do colegiado da 2ª Câmara de Direito Privado, alega que a finalidade da associação “revela incompatibilidade com os valores adotados pela Igreja Católica”, referendando a posição do pedido de que as mulheres da ONG “têm a pretensão de implementar agenda progressista e anticatólica em meio aos católicos”. O relator do recurso, desembargador José Carlos Ferreira Alves, determinou que a ONG CDD retire o termo do seu nome em até 15 dias, sob pena de multa diária de R$ 1 mil.
Dentre os principais propósitos do centro Dom Bosco está a defesa da fé. “Todas as atividades do Centro Dom Bosco partem do princípio — consignado de maneira sublime por Santo Tomás, na longínqua Idade Média — de que fé e razão não se contradizem, mas se complementam”, destacam no [i] Facebook da organização. De acordo com a Associação Dom Bosco, a ONG CDD tem como único motivo de existir, a propagação da falsa ideia de que é possível assassinar crianças no ventre materno e permanecer católico. Prosseguem: “repudiamos firmemente as reiteradas tentativas da extrema-mídia de tentar nos rotular como ultraconservadores. Somos apenas fiéis católicos que acreditam que a justiça precisa ser feita neste país”.
Nesse ponto é interessante compreender a visão de necessidade de reparo da Justiça do Estado em função da fé que professam. A disputa em torno do termo “católicas” demonstra como é imprescindível deter o patrimônio da palavra cristã e seus efeitos, como meio de poder político e influência social. A pauta objeto- o aborto- da discussão jurídico-eclesiástica é um tema sensível, controverso, unificador de diferentes filiações religiosas e normalmente acionado pelos conservadores. É um tema que suscita diferentes posições e tem a capacidade de mobilizar e sobrepor seus aspectos religiosos a outros aspectos do exercício de direitos. No campo comunicacional e simbólico, em transformação por um ambiente digital com suas interfaces numa esfera pública possivelmente mais alargada, esse tema permite a reflexão sobre mecanismos e imbricações da política, mídia, religião e qualidade democrática. Uma temática tabu acaba por convocar diferentes atores a se pronunciarem numa discussão característica dos atuais modos de sociabilidade: de maneira fluída, dispersa, superficial, segregada, complexa e intensa, com enquadramentos que vão desde a inter-relação religiosa, até a perigosa estratégia de tornar a política confessional.
A[ii]ONG Católicas pelo Direito de Decidir foi fundada em 1993 e declara lutar pela laicidade do Estado, “que deve ser livre da interferência religiosa na criação e condução das políticas públicas”. Para isso, se apoia na prática e na teoria feministas com o propósito de promover mudanças nos padrões culturais e religiosos, considerando que “as religiões devem ajudar as pessoas a terem uma vida digna e saudável, e não dificultar sua autonomia e liberdade, especialmente em relação à sexualidade e reprodução”. A organização existe em vários países. Na América Latina, está presente em sete: Argentina, Bolívia, Brasil, Chile, Colômbia e México.
Considerando a posição de laicidade e a defesa de direitos sexuais e reprodutivos, a CDD reconhece as dificuldades e a necessidade inevitável de diálogo com os crentes/fiéis, já que na América Latina a maioria da população se declara católica ou cristã de diferentes matrizes. Ao mesmo tempo que nenhuma transformação social pode ocorrer sem considerar esse contingente de pessoas guiadas pela fé, com forte tradição de marco católico (especialmente no que se refere ao papel da mulher e sua obrigação com a maternidade), os desafios da consolidação da democracia requerem o estabelecimento de um Estado livre da interferência religiosa na criação e condução das políticas públicas. É nessa tensão que a discussão sobre o aborto e os direitos reprodutivos das mulheres acontece. É bom lembrar, contudo, que o tema nem sempre foi uma questão dogmática.
No começo do século XIX, na Europa, a prática livre do aborto cresceu respaldada em razões de ordem econômica, política, social e demográfica, embora, em função de contextos históricos, a questão possa apresentar-se controversa e ambígua. Nos anos 20,ocorre um processo inverso nos países da Europa Ocidental, sobretudo aqueles que sofreram grandes baixas durante a 1ª Guerra Mundial, que optaram por uma política natalista, com o endurecimento na legislação do aborto. A França introduz uma lei particularmente severa no que diz respeito não só à questão do aborto, mas também quanto aos métodos anticoncepcionais. Contudo, não havia o apelo religioso, mas o imperativo econômico.
Nos anos 30, com a ascensão do nazi-fascismo, as leis antiabortivas tornaram-se severíssimas nos países em que ele se instalou, com o lema de se criarem “filhos para a pátria”. O aborto passou a ser punido com a pena de morte. Após a 2ª Guerra Mundial, as leis continuaram bastante restritivas até a década de 60, com exceção dos países socialistas, dos países escandinavos e do Japão (país que apresenta lei favorável ao aborto desde 1948, ainda na época da ocupação americana). A partir dos anos 60, em virtude da evolução dos costumes sexuais, da nova posição da mulher na sociedade moderna e de outros interesses de ordem político-econômica, a tendência foi para uma crescente liberalização. Estatísticas revelam que, em 1976, 2/3 da população mundial já viviam em países que apresentaram as leis mais liberais, mais da metade delas foi aprovada nesta última década. Retrocessos ocorreram na Romênia, Bulgária e Hungria (razões de ordem demográfica) e em Israel (motivos político-religiosos). Atualmente, o aborto é realizado por meio de simples solicitação em 35% dos países, por razões de ordem social, em 24% ,por razões de ordem médica, eugênica ou humanitária, em 20%; para salvar a vida da mãe, em 13% . Em apenas 4%, dos países, o aborto é totalmente proibido. Vale lembrar que a CDD defende a legislação vigente para o aborto. No Brasil, o aborto legal é permitido em três situações: gravidez decorrente de um estupro; risco à vida da gestante e anencefalia do feto.
É importante analisar o conteúdo de decisão contida no entendimento do TJ-SP, sobre recurso contra sentença de 1ª instância, que julgou extinta, sem resolução do mérito, a ação judicial do Centro Dom Bosco. Na instância inaugural a Justiça havia decidido que a ação era improcedente porque somente uma autoridade eclesiástica competente poderia fazer este tipo de pedido. A instituição Dom Bosco, no entanto, recorreu, alegando que tinha legitimidade para pedir a retirada da expressão “católicas”. O Direito Canônico é reconhecido como fonte normativa, aplicável no Brasil, posição firmada em 2005, quando o país assinou um acordo bilateral com a Santa Sé, sobre a proteção de locais, direito de culto religioso, proteção de imagens e bens da Igreja Católica. As disposições legais do Direito Canônico, contudo, não têm o poder de tornar inaplicável as cláusulas jurídicas da nossa Constituição Federal, portanto, de relativizar a força da soberania popular que está contida na Carta.
O acórdão da 2a. Câmara de Direito Privado do TJSP (Apelação Cível 1071628-96.2018.8.26.0100) em que é apelante a Associação Centro Dom Bosco de Fé e Cultura e apelado Católicas pelo Direito de Decidir SC, proibiu o uso da palavra “católicas”, para designar a referida
associação civil. O acórdão fundamenta que a sociedade “Católicas pelo Direito de Decidir” tem objetivos que ferem o Direito Canônico, o que “se traduz em inegável desserviço à sociedade, não interessando a quem quer que seja a existência de um grupo com nome que não corresponda a sua autêntica finalidade”. O acórdão, referindo ao artigo 5º, inciso XVII da CF -que assegura a liberdade de associação para fins lícitos- declara “flagrante ilicitude e abuso de direito no caso concreto, pela notória violação à moral e bons costumes”, na atuação da “sociedade requerida”, com o uso do nome “Católicas”.
Tal decisão caberia para uma Congregação de Doutrina da Fé, da Cúria Romana, que substituiu –anteriormente- o que era designado Suprema e Sacra Congregação da Inquisição- mas incompatível com o republicanismo democrático, a laicidade do Estado e –diretamente- com princípios e normas da Constituição de 88. O Direito Canônico pode ser “recebido” na ordem jurídica -normativa e concreta- mas não pode sobrepor-se a ela, definindo unilateralmente, por exemplo, o significado histórico da “moral e dos bons costumes” ou estipulando os nomes que lhe pareçam “coerentes”, para as pessoas se auto designarem na cena pública.
Veja-se que o acórdão parte de determinados imperativos categóricos de uma ideologia religiosa conservadora, que busca prefigurar uma
ilicitude sem socorro à ordem normativa. E assim o faz, quando fala em “inegável desserviço à sociedade”, por parte de grupo cujo nome
-segundo a decisão do TJSP- “não corresponde a sua autêntica finalidade”, com “abuso de direito no caso concreto”. Tratando-se de
uma sociedade composta por pessoas que se referem como “católicas”, mas que não pretendem falar pela Igreja Católica – falam apenas na
sua “condição” de católicas – o que se conclui é que o acórdão veda, na verdade, uma identidade subjetiva religiosa, livremente escolhida e
associada (art. 5º XVII), cuja formação não depende da permissão da Igreja e do Estado. Perguntas que são premissas: Uma associação que defende a manutenção das leis relativas ao aborto legal, em vigência no Brasil, tem finalidades ilícitas? Para declarar-se da fé católica, como identidade religiosa, é preciso ter permissão do Estado ou da Santa Sé?
O art. 5º, VI da CF prevê que é “inviolável a liberdade de consciência e de crença”; o VIII, que “ninguém será privado de direitos por motivo de crença religiosa”; o X, que são invioláveis a “intimidade” e a “imagem”, proteção de direitos que -por raciocínio elementar republicano- estão conectados com o direito de “criar associações”, escorado no art.5º XVIII da Lei Maior. O acórdão optou, na sua dogmática despida de princípios, por um método interpretativo que parte de conceitos e ideologias, que são remetidos diretamente ao
fato e não passam pelo crivo dos “valores” que estão na Constituição. O raciocínio, no caso, quer superpor o conservadorismo religioso aos
valores (morais e políticos) que estão norma constitucional, que são -respeitosamente- laicos e republicanos.
Cabe aqui a lição do Ministro Barroso sobre a força normativa da Constituição no direito contemporâneo. Depois de afirmar que foi superada a fase histórica da democracia moderna, na qual a Constituição era considerada apenas “um documento essencialmente político, um convite à atuação dos poderes públicos”, afirma que ela passou a ter caráter vinculativo: “Vale dizer, as normas constitucionais são dotadas de imperatividade, que é atributo de todas normas jurídicas, e sua inobservância há de deflagrar os mecanismos próprios de coação, de
cumprimento forçado”[iii](Barroso, 2009, p.59).Aqui, o “cumprimento forçado” passa por indeferir a pretensão inconstitucional do Centro Dom Bosco, de proibir o uso de uma identidade religiosa, livremente escolhida como direito da cidadania, destinada a caracterizar um direito de associação protegido pela Constituição.
Nesta mesma semana, o [iv]Centro Dom Bosco organizou uma live em suas redes sociais para comemorar a decisão e tornar públicas as posições conservadoras da organização, segundo eles, referendadas pela Justiça. A ocupação e atenção do espaço público é outro viés da estratégia de avanço conservador. É possível associar a abertura do espaço público à vigência de uma sociedade e cultura democráticas, defendendo a pluralidade como garantia de estabilidade democrática. No entanto, há posições conflitivas e incoerentes com os próprios preceitos democráticos. Nesse sentido, considerando a liberdade de expressão das mulheres católicas, cabe a problematização sobre que lugar caberia à religião, especialmente na condição de organização ocupante de instâncias de decisão no Estado, borrando o traçado de uma fronteira nítida entre público e privado e complicando a definição normativa do que ou quem deve fazer parte desse espaço.
Cada vez, no entanto, é maior e mais ampliada a ocupação das religiões nos espaços não estatais de vida coletiva, associativa e cultural. Ou especialmente, nos espaços em que o Estado muitas vezes se faz ausente. O papel das igrejas passa a ser ainda mais preponderante, não apenas na influência em valores, condutas e comportamentos, mas também na organização material da sociedade civil, sempre com um cruzamento da fronteira público/privada.
Aqui no Brasil, os últimos anos revelam uma intensificação dessas relações, com uma desproporcional representação de interesses privados religiosos nas instituições políticas. Para os emergentes atores religiosos, ameaças à Constituição não são uma preocupação, já que compreendem ocupar um espaço que lhes é devido, uma vez que contam com números expressivos de uma representação constituída por resultados inequívocos, dentro do jogo democrático, com capacidade de mobilização de vários recursos materiais, simbólicos, de visibilidade, de poder social e de gente, cada vez mais gente. Jogam pelas regras, mirando além das casas legislativas e do Executivo, o próprio Sistema de justiça. Eles têm a sua verdade, que é considerada inapelável, porque vem da fé. O resto é inútil, seja esse “resto” direitos e preceitos da ordem republicana.
*Sandra Bitencourt é jornalista, doutora em Comunicação e Informação, pesquisadora do NUCOP/PPGCOM-UFRGS.
*Tarso Genro é advogado e ex-Ministro da Justiça.
Notas
[i] https://www.facebook.com/cdbosco/
[ii] https://catolicas.org.br/nossa-historia/
[iii] Neoconstitucionalismo/coordenadores: Regina Quaresma, maria Lúcia de Paula Oliveira e Farlei Martins Riccio de Oliveira; 1. Ed-Rio de Janeiro:Forense, 2009.
[iv] https://www.youtube.com/watch?v=8azyUmgPSWY.