Por FLÁVIO AGUIAR*
Comentário sobre a polêmica envolvendo o jornalista e o site The Intercept
Glenn Greenwald deu uma ajuda para Donald Trump tentar se reeleger: esta constatação é incontornável. Talvez seja uma das únicas certezas que se possa ter dentro deste imbroglio envolvendo o jornalista, o site The Intercept, o presidente e o candidato a substituí-lo. De resto, podemos nos debater sobre muitas coisas, dar voltas e contravoltas sobre o caso, os críticos da atitude do jornalista (entre os quais me incluo), que invocam a oportunidade nefasta de seu artigo contra Joe Biden e a mídia mainstream que o apoia, e os favoráveis a ele, que invocam o princípio de que a verdade deve aparecer, doa a quem doer.
A verdade, porém, é que, fora daquela conclusão incontornável acima descrita, há mais bruma e confusão do que clareza, mais perguntas sem respostas que respostas que esclareçam as perguntas.
Comecemos por The Intercept. É um veículo inteiramente virtual, criado a partir do fundo gerido por uma organização chamada First Look Media, com dotação inicial de 250 milhões de dólares, feita pelo bilionário norte-americano Pierre Omidyar, nascido em Paris de pais iranianos. Omidyar é dono da rede virtual eBay, se apresenta como patrocinador da mídia independente, e é um dos financiadores assíduos do Partido Democrata. Desde sua criação, a First Look Media é alvo de controvérsias sobre a competência na administração do fundo sob sua guarda. Quais são as controvérsias? Não dá para se saber muito bem; só se sabe que elas existem, e que provocaram adesões e afastamentos dentro do grupo.
Os fundadores do The Intercept foram Jeremy Scahill, Glenn Greenwald e Laura Poitras, sendo que Glenn e Laura foram os entrevistadores de Edward Snowden em Hong Kong antes que este fosse obrigado a se refugiar na Rússia, país onde estava em trânsito para o Equador, quando o governo norte-americano cassou seu passaporte. Posteriormente a jornalista Betsy Reed se juntou ao grupo diretor, além de outros e outras profissionais. Ao que tudo indica, mas pouco se sabe com certeza, as tensões entre Glennwald e alguns membros da direção, em particular com Betsy, já vinham se intensificando desde algum tempo, explodindo agora com o afastamento de Glenn, suas acusações de ter sofrido censura, coisa que a equipe diretora do The Intercept nega.
Por que Greenwald decidiu escrever seu artigo sobre as denúncias contra Joe Biden, e o que ele vê como a cumplicidade da maior parte da mídia mainstream dos EUA com o candidato democrata, logo agora, às vésperas do que vem sendo descrito como o mais importante pleito eleitoral da história recente do país? É uma boa pergunta, ainda sem uma boa resposta.
O artigo em disputa requenta uma série de acusações contra Joe Biden e seu filho Hunter, envolvendo favorecimentos e intervenções em negócios de uma empresa chamada Burisma na Ucrânia, e possíveis negócios na China.
As acusações que envolvem a Ucrânia são particularmente graves, pois implicariam em um jogo de influências sobre o governo daquele país e até a promotoria ucraniana, que as investigaria. As acusações datam de 2017, tendo como fiador o depoimento de um empresário de nome Tony Bobulinsky, que também se refere aos supostos negócios na China, depoimento este a que falta a apresentação de provas documentadas e cabais. Além disto, corroboram as acusações pistas deixadas num computador pertencente ao filho de Biden. Este deixou o aparelho para conserto numa loja em Delaware. O dono da loja, constatando que o dono não reclamava o aparelho, violou seu conteúdo, entregando o que encontrou para o FBI, e também para o assessor da campanha de Trump, o ex-prefeito de Nova Iorque, Rudy Giuliani. Embora o caso seja nebuloso, pode-se entender que o dono da loja tenha procurado o FBI. Mas por quê Giuliani? Sem resposta a não ser a de que Giuliani já fora enviado por Trump para a Ucrânia, a fim de investigar por conta própria as acusações contra o filho de Biden. Qual a ligação entre o dono da loja e Giuliani, e o Partido Republicano? Também sem resposta.
O caso da China é importante? Deve ser, mas não fica claro o porquê, a não ser pelo fato de que “China” é uma palavra chave na campanha de Trump. Há uma constatação também importante: quem de fato tem negócios na China é Trump, que paga um imposto avolumado naquele país, enquanto paga uma merreca nos Estados Unidos.
Biden escolheu como estratégia não responder as acusações. Certo ou errado? Sem resposta. Quem cala consente? Quem responde acusações anima o fogo do inimigo? Novas perguntas sem resposta. O certo é que a partir deste silêncio do candidato, Greenwald conclui que a mídia que o apoia decidiu igualmente ignorá-las. As acusações partiram unicamente da mídia que apoia Trump, a Fox News, e do jornal New York Post, um tabloide sensacionalista pertencente ao grupo do famigerado empresário de mídia australiano, Rupert Murdoch, conhecido por suas posições reacionárias e pró-Trump, e repercussões dentro do mesmo círculo. Por isto tiveram sua credibilidade posta em dúvida. Conclusão: para prosperarem, as acusações precisavam encontrar o apoio de alguma outra mídia. Encontraram? Encontraram: o artigo de Greenwald, às vésperas da eleição. O artigo encontrou imediata ressonância na Fox News.
O elo de ligação foi o programa de um jornalista chamado Tucker Carlson, um talkshow chamado “Tucker Carlson Tonight”, reconhecido trumpista e um dos veiculadores das acusações contra Biden, acusações retrabalhadas por Greenwald em seu artigo. Imediatamente após a crise no The Intercept, Tucker chamou Greenwald para entrevista-lo, apresentando-o como um jornalista “Leftwing” – o que, é claro, lança o carimbo das denúncias para fora do círculo Fox News/New York Post e assemelhados.
É conhecida a animosidade entre jornalistas do porte de Greenwald e o establishment do Partido Democrata, agravada desde o caso Snowden, que Hillary Clinton caracterizou como um fora-da-lei. Greenwald cita outro jornalista do mesmo porte, Matt Taibbi, editor da newsletter Substack, que acolheu o artigo recusado pelo The Intercept. Taibbi assumiu a defesa de Trump quando este foi acusado na mídia de estar forçando a barra na Ucrânia – através, dentre outros meios, de Rudy Giuliani – para obter alguma fundamentação das acusações contra Biden e seu filho.
Em resumo, o caso todo suscita muitas perguntas e dúvidas e poucas respostas. Em seu artigo, Greenwald ainda percorre o caso das denúncias envolvendo uma – suposta? possível? provável? – ação russa sobre as eleições norte-americanas. E tudo deságua na sua análise sobre a cumplicidade de grande parte da mídia com a candidatura de Biden.
Depois de tudo, a conclusão do próprio Greenwald é taxativa: “Mas o verdadeiro escândalo que foi comprovado não é a má conduta do ex-vice-presidente [Biden], mas a de seus apoiadores na mídia dos Estados Unidos”. Se esta é a conclusão, por que então lançar um artigo-aríete contra Joe Biden às vésperas da eleição? Por que se refugiar na Fox News? Por que não lançar um artigo denunciando toda a mídia mainstream dos EUA? Será a Fox News um poço de virtudes num pantanal de vaidades falaciosas?
Para terminar, apresento outra conclusão insofismável: este passo, que considero criticável, de ter ajudado Trump, o pior presidente norte-americano, mobilizador de milícias de direita, numa reeleição posta a perigo, não apagará nem irá desmerecer a extraordinária trajetória passada de Glenn Greenwald na construção de um jornalismo sério e independente. Prejudicará sua credibilidade no futuro? Tomara que não, mas por ora esta é outra pergunta ainda sem resposta.
*Flávio Aguiar é jornalista, escritor e professor aposentado de literatura brasileira na USP. Autor, entre outros livros, de Crônicas do mundo ao revés (Boitempo).