Joe Biden

Imagem: Silvia Faustino Saes
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Por TERESA DE SOUZA*

A última missão de um sobrevivente

A história escreve-se muitas vezes por linhas tortas e Joe Biden parece ser um exemplo vivo disso. Quando a sua carreira política parecia aproximar-se do ocaso, o seu país ofereceu-lhe uma última oportunidade. Para derrotar Donald Trump, talvez nada melhor do que um homem normal, decente, que acumulou fracassos e vitórias ao longo de uma vida política que começou aos 29 anos quando foi eleito senador do Delaware, que lhe deu experiência, serenidade e a coragem necessária para travar o derradeiro combate. Essas qualidades acabaram por ter um valor inesperado porque, mais do que os programas ou as ideologias, o que esteve em causa nestas eleições foi o caráter dos dois candidatos.

O que pensa Biden da América? Qual será o seu programa para governar os EUA? Terá que começar pelo combate a uma pandemia que atingiu brutalmente o seu país e que ainda não tem fim à vista. Biden prometeu algumas linhas de ação, mas avisou durante a campanha que não há milagres. “Mesmo se ganharmos, vai ser preciso muito trabalho árduo para pôr fim a esta pandemia. Trataremos os americanos com honestidade e nunca, nunca, desistiremos”.

Na economia, as suas ideias evoluíram de acordo com o efeito acumulado da crise financeira de 2008 e das consequências econômicas e sociais da crise pandêmica. Tal como a ala moderada do Partido Democrata, incluindo Hillary Clinton e Barack Obama, Biden apoiou a globalização dos mercados e o livre comércio, incluindo os vários tratados comerciais assinados por ambos nas últimas décadas e nunca postos em causa pelos republicanos, antes de Trump.

Este consenso acabou. As duas crises provaram que a globalização recomenda algumas cautelas, que os mercados não resolvem tudo e que o Estado tem um papel, às vezes fundamental, no fortalecimento das economias. Os países ricos descobriram os riscos de uma excessiva dependência das cadeias de produção que têm uma origem longínqua, muitas vezes na China. Biden inclinar-se-á um pouco mais para o lado do “Made in America”.

Sobre a relação dos EUA com o mundo, dificilmente seria possível um simples “bilhete de volta” ao mundo antes de Trump, mas muitas coisas mudariam com a sua eleição: os aliados voltariam a ser aliados, a América regressaria aos tratados e acordos internacionais que abandonou. Biden prometeu que o seu país voltaria a liderar o mundo.

Biden não possui nem o carisma nem os dons de oratória de Clinton ou de Obama. Tem apenas para oferecer uma longa experiência política e uma capacidade extraordinária de superar as tragédias que a vida lhe colocou à frente. É preciso conhecê-las para compreender o personagem. Tomou posse do seu primeiro mandato de senador, aos 29 anos, num hospital onde estavam internados dois dos seus filhos, gravemente feridos num desastre de automóvel que matou a sua mulher e a filha Naomi, de 13 meses. Muitos anos mais tarde, o seu filho Beau, herói da guerra do Iraque, morreu aos 46 anos, vítima de cancro. O outro, Hunter, foi expulso do exército por uso de cocaína, facto que Trump lhe atirou à cara no primeiro debate. Hunter fez negócios na Ucrânia e na China cuja transparência foi posta em causa durante a campanha.

Dizem os biógrafos de Biden que esteve no fundo do poço, mas veio à superfície sem azedume nem amargura. Tentou a sorte por duas vezes nas “primárias” do Partido Democrata, em 1987 e 2007. Ficou conhecido por algumas gafes memoráveis, uma delas sobre o próprio Obama, quando o enfrentou nas “primárias” de 2007 e se referiu a ele como “o primeiro afro-americano convencional que é articulado, é brilhante e ainda por cima bem-parecido”. Houve algum espanto quando Obama o convidou para seu “vice”. Católico de origem irlandesa, se for eleito, será apenas o segundo depois de John Kennedy. O mais velho a chegar à Casa Branca. Alguém que “sempre fez parte da aristocracia masculina de Washington”, “um senador da velha escola”, como o define Even Osnos, um dos seus biógrafos.

Fez toda a sua vida política em Washington, tomando diariamente o comboio da pequena cidade de Wilmington, no minúsculo e tranquilo estado do Delawere, um milhão de pessoas, onde a política se faz de porta a porta. A ala esquerda do Partido Democrata franziu o sobrolho quando prometeu a um grupo de republicanos “por Biden” que não os envergonharia. Na sua experiência de seis mandatos como senador acumulou iniciativas bipartidárias no Congresso. Prefere construir pontes a cavar trincheiras.

Conseguirá este homem banal, que gosta de lembrar que não estudou na Ivy League e que prefere os “town halls” onde o que conta é a empatia, estar à altura da missão “impossível” de sarar as feridas da sociedade americana?

*Teresa de Souza é jornalista.

Publicado originalmente no site do jornal Público.

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