Por PEDRO DE SOUZA*
Seis sonetos
1.
As palavras e as porras eu submeto
Ao esgoto, que tudo é vão e vário,
Feito as rimas inúteis dos rosários
Vaidosamente ardentes dos sonetos;
Cada espasmo de carnes inconcreto
E idiota eu despacho ao leprosário,
Que os orgasmos são versos solitários
Feito os ocos inanes do esqueleto;
Digo adeus ao quimérico mosaico
De máscaras e músculos, mestiça
Imensidão sem fundo; desse laico
E sujo amor eu quero o cuspe, eu quero
A faca, eu quero a lágrima e a cobiça,
Eu quero a dor e os gritos mais sinceros.
2.
Poesia: pulmão sem ar de náufragos?
Exercício de adornos e de técnicas
vazias? Mito pródigo das épocas
sem Deus? Mera quimera, monstro hermético?
Catedral desvalida e melancólica?
Voz sem músculos? Flor arquitetônica
de metro e rima e ritmo e dor e pássaros?
Refúgio falho e belo dos anátemas
da língua? Enigma fútil e anacrônico
de cansados arcanjos labirínticos?
Amor sem sombra? Abismo de metáforas?
Céu? Inferno? Lascívia? Ardência? Máquina?
Ou somente mais um dos gritos bárbaros
sem chão, sem foz, sem lástima e sem lágrima?
3.
Ontologicamente somos mar;
onticamente, espuma a cavalgar
a aurora infinda, infinda aurora, em lento
sangradouro de mágoas e de ventos.
O horizonte sem lastro é o nosso altar,
onde, inábeis, usamos transumar
nossos úmidos sonhos, nossos cento
e tantos moles músculos. Intento
incurável? Pendor irremitente?
Sempiterna tarefa, estrume e rosa,
paixão e trapo? Ou somos tão-somente
a sede de outros mares, de extremosas
profunduras? Descesse a nós o céu,
e não seria vão sermos ateus.
4.
O medo, amigo, é amigo da loucura.
Temer a mão carrasca é já senti-la
aproximar-se, lúbrica e tranquila,
nas horas mais serenas e seguras;
prever a morte e a senda sua, obscura,
é já morrer sem morte, é produzi-la
nas vozes inaudíveis das sibilas.
O medo, amigo, é imigo da brandura.
Temamos, mas temamos o temor:
decerto a rubra rosa, fresca agora,
um dia, murcha, vai-se decompor
tornando-se ração adubadora.
Porém às rosas é que vão as loas,
e aos pastos só o ganir dos asnos soa.
5.
“Arcano è tutto fuor che il nostro dolo ” (Leopardi)
Morreremos. E a carne e a flor e o zelo,
rebentos duma atroz desesperança,
nos embalam em sombras. Não descansas,
ó quimera? Não dormes, ó flagelo?
O infinito, fadados a querê-lo
jazeremos? E as unhas e as pujanças
só nos mandam, famélicas, à mansa
escuridão? É vão o nosso apelo,
é vão o nosso inferno. Vão, desnudos,
abrindo-se os botões da derradeira
viagem. Navegamos nós co’os remos
de miragens a noite. Arcano é tudo,
exceto a nossa dor. Nessa fronteira
de areia um pranto ecoa: morreremos.
6.
Quantas vezes me disse o Amor: escreve,
Faz das lágrimas rimas esculpidas,
Que é preciso dar vida à nossa vida;
A vida é brisa seca e bruta e breve.
É breve e seca e bruta e não se deve
Lamentar-se: das calmas corroídas,
Das vãs e incontornáveis despedidas
É possível talhar um quadro leve.
Porém Ele alertou-me ao ver-me afoito
Para a ação: não te apresses, que eu açoito
E vergasto e chibato tanto o lento
Quanto o célere. Sofre as cicatrizes
Até que a dor co’a dor não se harmonize:
Antes da arte há sempre o sofrimento.
*Pedro de Souza é escritor.