Governo Biden e governo Bolsonaro

Imagem: Thelma Lessa Fonseca
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Por EDUARDO COSTA PINTO*

O que muda e o que permanece?

A escolha eleitoral para presidente dos Estados Unidos sempre desperta enormes expectativas no que diz respeito aos rumos de sua política externa e os impactos disso para o mundo. Quais serão os efeitos políticos e econômicos mundiais?

Essa pergunta percorre as redações dos jornais pelo mundo afora, passando pelos textos de diversos acadêmicos, até alcançar os gabinetes dos analistas e estrategistas de diversos Estados nacionais (na Europa, na Rússia, na China, no Brasil, entre outros). Mas por que essa eleição presidencial é tão importante?

Isso se deve ao fato de que os EUA são a maior potência econômica, tecnológica e militar do sistema internacional, formado por diversos Estados nacionais que possuem diferentes capacidades (maiores ou menores) de exercerem sua vontade independente da vontade alheia (soberania). Assim, a posição hierárquica de determinado país no sistema está atrelada à sua capacidade de acumular riqueza e, ao mesmo tempo, de ampliar os seus poderes (político, ideológico/cultural e militar).

Nesse sentido, o sistema internacional é caracterizado, em sua essência, pelo conflito permanente (manifesto ou latente) e pelo equilíbrio instável. Paz, guerra, globalismo, nacionalismo não são fins últimos na arena de disputa do sistema internacional, mas sim meios para a obtenção de maior acumulação de riqueza e de poder para um determinado subconjunto de nações, que buscam se manter no topo ou ascender na hierarquia do sistema (“quem não sobe, cai”).

Isso implica, por um lado, constantes conflitos entre os Estados nacionais e, por outro, um processo desigual de desenvolvimento das forças produtivas. A depender da posição do Estado na hierarquia do sistema, ele pode exercer sua soberania diante das outras nações por meio:

1 – da guerra convencional ou não convencional (ou pela preparação para a guerra), que expressa o exercício coercitivo do poder na arena internacional;

2 – do poder econômico nas esferas produtiva (comercial e tecnológica), monetária e financeira, materializado pela exportação de capitais e pelo controle da moeda de curso internacional. Isso proporciona uma maior capacidade de acumular e controlar a riqueza; e

3 – da atuação direta e indireta nos aparelhos hegemônicos internacionais formados pelas organizações multilaterais (ONU, FMI, Banco Mundial, OMS etc.) e pela exportação de seu modelo de cultura (cinema, TV, mídias, educação, valores etc.), que funciona como elemento de dominação e legitimidade.

Como dito, os EUA estão no topo da hierarquia do sistema internacional. Por isso sua eleição presidencial é tão importante. No entanto, a eleição de 2020 assumiu um caráter ainda maior em virtude: 1) da forma de governar do presidente republicano Donald Trump, de extrema direita (alt-right)[i], e de sua política externa America First (anti-globalista). Isso significou a saída dos EUA de instituições e acordos multilaterais e a redução de intervenções militares; 2) da atual ascensão da China no sistema internacional, que já se tornou a segunda maior potência econômica. Criando preocupações nos estrategistas norte-americanos, sobretudo, com a internacionalização dos capitais chineses por meio do projeto da Rota da Seda; e 3) do aumento do poder militar da Rússia, sobretudo com os desdobramentos da guerra na Síria.

Mais do que uma disputa tradicional entre o presidente republicano Trump e o candidato democrata Joseph Biden, ex-vice-presidente do governo Barack Obama, a eleição de 2020 teve um caráter plebiscitário sobre a forma que Trump vinha governando os EUA, num contexto de aumento de poder russo e, sobretudo, chinês.

Nessa disputa, o presidente Trump foi derrotado por Biden, que representa o retorno do establishment democrata ao poder, sobretudo o que esteve presente no governo Obama. Isso fica explícito com o anúncio de Antony Blinken para exercer a secretaria de Estado. O mesmo que exerceu diversos cargos relevantes no governo Obama, atuando diretamente na formulação das políticas dos EUA para o Iraque, Afeganistão, Líbia, Síria e Rússia.

Cabe lembrar que, durante os governos Obama (2009-2017), apesar da retórica do multilateralismo, os EUA utilizaram dos instrumentos da guerra convencional e não convencional[ii], do poder econômico e da atuação direta e indireta nas instituições multilaterais para reforçar a posição de suas empresas e para impedir o avanço de seus principais oponentes do sistema internacional, a saber: Rússia, Irã, Coréia do Norte e China, conforme definido na National Military Strategy de 2015.

Até esse momento, em linhas gerais, a futura política externa do governo Biden parece ser um de retorno ao passado (onde Obama parou). Acontece que os tempos cronológicos e históricos não pararam ao longo do governo Trump. As condições internacionais se modificaram, a China aumentou seu poder econômico, a Rússia aumentou seu poder bélico e os antigos aliados ficaram desconfiados com as posições do governo Trump. O jogo no tabuleiro internacional ainda não foi concluído, os EUA perderam posições relativas, mas ainda permanecem com capacidades econômicas, políticas e militares significativas na disputa com seus principais oponentes.

Nesse contexto de vitória de Biden e de aumento das disputas geopolíticas, cabe perguntar: quais os impactos para o Brasil? Como fica o governo Bolsonaro, que possuía enormes afinidades ideológicas (extrema direita)e até afetivas com o governo Trump? Em 2019,após visita do secretário de Comércio dos EUA, o presidente Bolsonaro chegou a afirmar que “está cada vez mais apaixonado pelo presidente americano, Donald Trump”. As “almas desencantadas” se atraem.

Com o fim da paixão, o presidente Bolsonaro reagiu com pólvora ao discurso do Biden, à época candidato, sobre a possibilidade de aplicar sanções econômicas ao Brasil caso o desmatamento da Amazônia continuasse. Fim de paixão causa situações vexatórias. Mas o presidente Bolsonaro extrapolou os limites ao usar uma retórica bélica para desafiar a maior potência militar do planeta. É evidente que virou piada. Muitos “memes” surgiram sobre a capacidade das Forças Armadas brasileiras. Acho que os comandantes das FFAA não deram risadas, não

Independente desse e de muitos outros momentos tragicômicos que o Brasil atravessa sob o governo Bolsonaro, acho que muitos analistas, inclusive de esquerda, têm superestimado os efeitos negativos da vitória do Biden para o governo Bolsonaro. É evidente que o Bolsonaro perdeu com a derrota de Trump, no mínimo uma paixão.

Mas daí derivar que o governo Biden atuará de forma direta ou indireta para desestabilizar o governo Bolsonaro, já que ele ameaçou os EUA com pólvora, é muito complicado. Os EUA exercitam o seu poder para alcançar os seus fins econômicos (de suas empresas) e geopolíticos e muitos deles já foram alcançados, desde 2016.

Sob os governos Temer e Bolsonaro, os EUA conseguiram obter as mudanças regulatórias na exploração do pré-sal, que ampliaram a participação das suas empresas (Chevron e Exxon); a desestabilização do engajamento do Brasil nos arranjos configurados pelos Brics; o acordo de uso da base de Alcântara, entre outros benefícios. Por outro lado, recebemos muito pouco em troca dessas concessões.

A perda da capacidade de controlar esses ativos estratégicos implicou a redução da relevância do Brasil no tabuleiro geoeconômico e geopolítico internacional. Um dos poucos ativos estratégicos que ainda não negociamos à preço de banana é nosso mercado para o 5G. Mercado este cobiçado tanto pelos chineses como pelos norte-americanos no âmbito das disputas tecnológicas, econômicas e de controle dos sistema de informação (instrumento para guerra convencional e, sobretudo, não convencional) entre esses países. Mas como a China é governada pelo Partido Comunista, dificilmente o governo Bolsonaro abrirá espaço para negociação com esse país. Ideologia acima de tudo. Com isso, provavelmente, entregaremos a baixo custo o nosso mercado para os EUA.

Nesse sentido, não acho que o governo Biden terá grandes impactos para o Brasil, uma vez que os interesses dos EUA estão sendo e serão atendidos sob o governo Bolsonaro. Não dá para esperar que a tragicomédia brasileira seja resolvida por um novo governo dos EUA, uma vez que eles ganham, e muito, com o nosso descalabro atual.

*Eduardo Costa Pinto é professor do Instituto de Economia da UFRJ.

 

Notas:


[i]Alt-righttem sua raiz na “velha direita” (coletivismo de direita) da década de 1920 e 1930 (conservadorismo e oposição ao New Deal), que tinha como tripé: governo pequeno (descentralização das funções de governo articulado com a autogovernança/comunitarismo), anticomunismo e valores tradicionais (defesa da civilização ocidental e judaico-cristã) (Ver Foley, M. American credo: theplaceofideas in US politics. Oxford University Press, 2007 (capítulo 13).

[ii] Andrew Korybko, em seu livro Guerras Híbridas, de 2018, argumenta que os EUA adotaram uma estratégia de guerra indireta na Síria e na Ucrânia, marcada por “manifestações” e “insurgências”.

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