O desmonte da rede de proteção social

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Por JORGE LUIZ SOUTO MAIOR*

No jogo de cena do STF quem perde é a classe trabalhadora: até quando?

Não é de hoje que a grande mídia tem se colocado como paladina da democracia, mas essa sua atuação militante esbarra no limite da defesa da aliança histórica que mantém com os interesses dos setores econômicos que a sustentam. Mesmo o ataque que faz aos arroubos autoritários e populistas de governantes encontra sempre um ponto de trégua quando as práticas antidemocráticas são utilizadas para reduzir os direitos sociais.

A grande mídia, que se diz defensora intransigente da democracia, foi aliada de todo o processo antidemocrático do qual culminou a “reforma trabalhista”. Aliás, os recentes abalos às instituições democráticas do país foram estimulados exatamente para que uma retração inconstitucional de direitos fosse imposta à classe trabalhadora.

Em meio à pandemia, o trabalho e, consequentemente, os trabalhadores e trabalhadoras foram vistos, a olhos nus, como essenciais. Mas se manteve toda a invisibilidade acerca das condições precárias de trabalho a que o conjunto da classe trabalhadora brasileira foi conduzido tanto pela “reforma” trabalhista quanto pela reiteração, verificada há décadas, das iniciativas de destruição do projeto social fixado na Constituição de 1988.

Em 2020, os trabalhadores e trabalhadoras foram aplaudidos(as) por salvarem vidas com seu trabalho e, ao mesmo tempo, foram submetidos(a) a novas formas de precarização e de redução de sua renda. O trabalho foi visto e aplaudido, mas as condições de vida e de trabalho das trabalhadoras e trabalhadores foram, solenemente, ignoradas.

No jogo de cena que se instaura, os poderes se enfrentam publicamente e quando se sentem desgastados buscam o ponto de entendimento que é o do pacto em torno do desmonte da rede de proteção social que foi constitucionalmente assegurada aos trabalhadores e trabalhadoras.

Tem sido assim desde a década de 1990 e os exemplos são múltiplos, de governantes acuados buscarem equilíbrio por meio de promessas de agrados aos setores econômicos. O fato, aliás, pode ser verificável na formação circunstancial das “pautas trabalhistas” no Supremo Tribunal Federal.

O caso do julgamento da atualização do crédito trabalhista proferido pelo STF (ADC 58 e ADC 59) na semana passada é mais uma evidência desse roteiro. Na semana anterior o STF foi colocado sob vigilância da grande mídia, sendo previamente acusado de rasgar a Constituição caso autorizasse a renovação dos mandatos das presidências do Senado e da Câmara dos Deputados.

Opondo-se ao voto do relator e contrariando as previsões, a maioria dos integrantes do STF não autorizou a reeleição, o que agradou a grande mídia, mas gerou instabilidade interna. Para que tudo se ajeitasse qual a solução de equilíbrio pensada? A mesma de sempre: a fixação de uma pauta trabalhista em que o julgamento pudesse recompor a ordem interna e amenizar os holofotes externos.

Foi neste contexto que o STF definiu a nova forma de atualização dos créditos trabalhistas, ao mesmo tempo em que manteve sem apreciar matérias fundamentais relativas ao acesso à Justiça do Trabalho (ADI 5766) e à tarifação da reparação dos danos morais (ADI 5870) – ou porque não possui argumentos para negar a inconstitucionalidade dos dispositivos trazidos a respeito na “reforma” trabalhista, ou para as manter como trunfos diante de novo ataque midiático.

O resultado, por mais que a esperança que insiste em nos enganar conduzisse a nossa imaginação, foi aquele, plenamente previsível, integrado ao contexto histórico vivenciado da retração dos direitos trabalhistas a partir de argumentos supostamente econômicos.

Mas não foi uma tarefa simples, vale dizer, isto porque o STF já havia decidido que a TR não poderia ser fator de correção monetária, vez que insuficiente para acompanhar o processo inflacionário e o que estava nas mãos dos julgadores era a declaração da constitucionalidade ou inconstitucionalidade do dispositivo da Lei n. 13.467/17 que, alterando o § 7º do artigo 879 da CLT, estabeleceu que a TR seria o índice da correção monetária trabalhista.

Não havia, pois, como se pudesse declarar constitucional o dispositivo, embora a posição pessoal do relator, Ministro Gilmar Mendes, fosse neste sentido. Por outro lado, declarando a inconstitucionalidade surgia o problema de deixar em aberto o índice a ser aplicável e o TST já havia se posicionado no sentido da aplicação do IPCA-E.

Ocorre que a aplicação do IPCA-E não estaria em conformidade com o movimento de redução de direitos trabalhistas, já que, conforme destacado pelo relator, desde as duas liminares proferidas no mesmo processo, o IPCA-E gera um efeito econômico 25% superior ao da TR – e até por isso a TR foi fixada como índice de correção pelo texto da “reforma” trabalhista, cujo objetivo, como se sabe, foi satisfazer os desejos do poder econômico.

Cumpre observar, de todo modo, que esse dado percentual não representa um benefício injustificado ao credor, como tentou justificar o relator, pois a comparação entre os dois índices só tem sentido frente à variação da inflação em um determinado período. E o que o maior percentual de correção do IPCA-E significa é unicamente uma maior aproximação do índice inflacionário e não um enriquecimento sem causa.

Partindo da consideração equivocada de que a aplicação do IPCA-E representaria um benefício injustificável aos trabalhadores ou que oneraria excessivamente os empregadores, o voto condutor não se ateve ao limite objetivo da ação e passou a “preencher a lacuna” deixada pela declaração de inconstitucionalidade do atual §7º do artigo 879 da CLT, embora, concretamente, não houvesse uma lacuna a ser preenchida no âmbito da ação em questão, um vez que o texto declarado inconstitucional só veio a existir em novembro de 2017, com a entrada em vigor da Lei n. 13.467/17, e nunca se cogitou de um problema jurídico nesta seara antes disso.

Lembre-se que a aplicação do IPCA-E na Justiça do Trabalho já tinha sido consolidada, em agosto de 2015, no julgamento da ArgInc-479-60.2011.5.04.0231, como efeito da posição firmada pelo próprio STF, em 25 de março de 2015, na apreciação das ADIs 4357 e 4425.

Segundo o relator, no julgamento das ADCs 58 e 59, embora o STF já tivesse fixado a aplicação do IPCA-E isso teria se dado apenas com relação aos créditos fazendários e, por consequência, a posição do TST teria sido lastreada em uma “indevida equiparação da natureza do crédito trabalhista com o crédito assumido em face da Fazenda Pública”.

Fez-se, assim, vistas grossas do artigo 889 da CLT que deixa claro que à execução dos títulos trabalhistas são aplicáveis “os preceitos que regem o processo dos executivos fiscais para a cobrança judicial da dívida ativa da Fazenda Pública Federal”.

O critério utilizado para se chegar a um índice de correção que não fosse o IPCA-E foi ainda juridicamente mais equivocado, qual seja, a equiparação do crédito trabalhista a um crédito cível: “a proposta que trago à colação é a de que, uma vez afastada a validade da TR, seja utilizado, na Justiça Trabalhista, o mesmo critério de juros e correção monetária utilizado nas condenações cíveis em geral” (cf. voto do relator).

Neste ponto, a decisão proferida pelo STF superou décadas de uma tradição jurídica fincada no reconhecimento de que o crédito trabalhista é privilegiado, sobrepondo-se, inclusive, ao crédito tributário, conforme, aliás, prevê, expressamente, o art. 83 da Lei n. 11.101/05 (Lei de Recuperação Judicial) – também solenemente ignorado.

Aliás, o STF ignorou o seu próprio precedente, fixado na ADI 3934, no qual, declarando-se expressamente a constitucionalidade do art. 83 da Lei n. 11.101/05, foi reconhecido expressamente que o crédito trabalhista é privilegiado com relação a todos os outros, embora, naquela oportunidade, se tenha estabelecido um limite (de 150 salários-mínimos) por credor para este privilégio – o que foi mantido, inclusive, na recém-aprovada Lei n. 14.112, de 24 de dezembro de 2020.

Na ADI 3934, o STF aplicou a Convenção 173 da OIT que consagra, internacionalmente, a posição privilegiada do crédito trabalhista. Na ocasião a invocação da referida Convenção se deu para justificar a limitação ao privilégio imposta pelo art. 83 da Lei n. 11.101/06, nos seguintes termos: “É importante destacar, ademais, que a própria legislação internacional de proteção ao trabalhador contempla a possibilidade do estabelecimento de limites legais aos créditos de natureza trabalhista, desde que preservado o mínimo essencial à sobrevivência do empregado.

Esse entendimento encontra expressão no art. 7.1 da Convenção 173 da Organização Internacional do Trabalho – OIT (Convenção sobre a Proteção dos Créditos Trabalhistas em Caso de Insolvência do Empregador), segundo o qual a “legislação nacional poderá limitar o alcance do privilégio dos créditos trabalhistas a um montante estabelecido, que não deverá ser inferior a um mínimo socialmente aceitável”.

Ocorre que para chegar a esse resultado o Supremo integrou ao ordenamento nacional, de forma explícita, as normativas da OIT, notadamente no que se refere à proteção dos créditos trabalhistas, independente até mesmo do processo de ratificação. Como estabelecido na decisão em questão: “Embora essa Convenção não tenha sido ainda ratificada pelo Brasil, é possível afirmar que os limites adotados para a garantia dos créditos trabalhistas, no caso de falência ou recuperação judicial de empresas, encontram respaldo nas normas adotadas no âmbito da OIT, entidade integrante da Organização das Nações Unidas, que tem por escopo fazer com que os países que a integram adotem padrões mínimos de proteção aos trabalhadores.

Nesse aspecto, as disposições da Lei 11.101/2005 abrigam uma preocupação de caráter distributivo, estabelecendo um critério o mais possível equitativo no que concerne ao concurso de credores. Em outras palavras, ao fixar um limite máximo – bastante razoável, diga-se – para que os créditos trabalhistas tenham um tratamento preferencial, a Lei 11.101/2005 busca assegurar que essa proteção alcance o maior número de trabalhadores, ou seja, justamente aqueles que auferem os menores salários.

Foge de todos os parâmetros jurídicos, portanto, a “escolha”, completamente aleatória e fruto de uma vontade pessoal do julgador, a equiparação do crédito trabalhista ao crédito cível, valendo lembrar que a relação de emprego é regulada pelo Direito do Trabalho e não pelo Direito Civil exatamente por se reconhecer, historicamente, a diversidade das relações jurídicas civis e trabalhistas, a primeira, marcada pela igualdade, e a segunda, pela desigualdade e a dependência econômica.

A equiparação proposta pelo STF é contrária à realidade dos fatos e uma afronta a todos os preceitos jurídicos concebidos a respeito das relações de emprego como fator, inclusive, de desenvolvimento da sociedade capitalista, o que foi, inclusive, reconhecido, expressamente, na Constituição Federal em diversos dispositivos: “art. 1º, incisos III e IV; art. 4º, inciso II; art. 5º, inciso XXIII; art. 7º; art. 170 e incisos III e VIII; e art. 186, inciso III.

O pior é que o argumento de equiparação dos créditos trabalhistas aos créditos de natureza civil não foi utilizado apenas para afastar a aplicação do IPCA-E. Extrapolando todos os limites da ação, o voto seguiu adiante e aproveitou o ensejo, mesmo sem qualquer provocação dos sujeitos constitucionalmente legitimados neste sentido, para propor a rejeição, sem declaração formal de inconstitucionalidade, da aplicação do § 1º do art. 39 da Lei n. 8.177/89, que fixa juros de mora nas relações trabalhistas na ordem de 1% ao mês, desde o ajuizamento da reclamação trabalhista.

Caso isso efetivamente se evidencie no acórdão a ser publicado, o STF terá afastado a Lei n. 8.177, que regula a atualização dos créditos trabalhistas desde 1991, para colocar em seu lugar o artigo 406 do Código Civil, gerando como efeito a aplicação da taxa SELIC, já composta dos juros e da correção monetária. Assim, por uma mágica jurídica, o crédito trabalhista que vinha sendo atualizado pelo índice do IPCA-E, retroativo à época do “inadimplemento”, e adicionado de juros de 1% ao mês, contados da data da propositura da reclamação trabalhista, passaria a ser atualizado pelo IPCA-E durante o período pré-judicial (como nominou o voto do relator) e, da data da propositura da relação trabalhista em diante, pela SELIC, cabendo lembrar que a taxa da SELIC foi de 4,5% ao ano, em 2019, e a projeção é que fique em 2%, em 2020.

Desse modo, a propositura da reclamação trabalhista se transforma em mais um fator de redução dos efeitos da ilegalidade, ou seja, uma forma de punição da vítima, estimulando, inclusive, as práticas processuais procrastinatórias, porque, doravante, quanto mais demorar o processo mais corroído ficará o crédito e mais benefício o infrator experimentará.

É de suma importância destacar, portanto, que o efeito concreto dessa engenharia jurisprudencial não é meramente o de uma equiparação do crédito trabalhista ao crédito de natureza civil e sim o rebaixamento do primeiro em relação ao segundo, pois o que diz expressamente o art. 406 do Código Civil é que este índice, que diz respeito unicamente aos juros moratórios, será aplicado quando o contrato não estipular de modo diverso. Ora, bem se sabe que nos contratos cíveis o credor tem totais condições de “impor” cláusulas moratórias, sendo que um dos pontos de maior discussão na esfera jurídica cível gira em torno exatamente dos “juros abusivos”. A desigualdade contratual quando existe nas relações cíveis é favorável ao credor. Vide, por exemplo, o que se passa entre o locatário e o locador, entre o banco e o cliente, entre a casa comercial e o consumidor. Assim, em concreto, raramente a regra do art. 406 do Código Civil tem aplicabilidade. Na esfera trabalhista se dá precisamente o contrário e o credor, o trabalhador, não tem a mínima condição de exigir a fixação no contrato de trabalho de cláusulas moratórias.

Além disso, o voto prevalecente não fez menção ao artigo 404 do Código Civil que garante ao credor o direito de reaver “perdas e danos” decorrentes do ato ilícito do qual foi vítima, integrando ao crédito, de forma automática, atualização monetária, juros, custas e honorários, além de especificar que quando os juros de mora não forem suficientes para cobrir o prejuízo experimentado, poderá o juiz fixar indenização suplementar [i].

Desse modo, a posição anunciada é a de um enorme rebaixamento dos créditos trabalhistas, estimulando as ilegalidades e contribuindo com a impunidade patronal. Representou, por assim dizer, uma redução da condição de cidadania dos trabalhadores e trabalhadoras, sendo completamente falsa, portanto, a premissa utilizada no voto de que “a dívida trabalhista judicializada vem assumindo contornos extremamente vantajosos (bem superiores à média do mercado)”.

A título de informação, importante consignar que tratando dos efeitos da decisão nos processos em curso, o direcionamento foi no sentido de:

– reputar válidos – não ensejando qualquer rediscussão (na ação em curso ou em nova demanda, incluindo ação rescisória) – todos os pagamentos realizados utilizando a TR (IPCA-E ou qualquer outro índice), no tempo e modo oportunos (de forma extrajudicial ou judicial, inclusive depósitos judiciais) e os juros de mora de 1% ao mês;

– manter a execução das sentenças transitadas em julgado que expressamente adotaram, na sua fundamentação ou no dispositivo, a TR (ou o IPCA-E) e os juros de mora de 1% ao mês;

– aplicar, de forma retroativa, a taxa Selic (juros e correção monetária) nos processos em curso que estejam sobrestados na fase de conhecimento (independentemente de estarem com ou sem sentença, inclusive na fase recursal), sob pena de alegação futura de inexigibilidade de título judicial fundado em interpretação contrária ao posicionamento do STF (art. 525, §§ 12 e 14, ou art. 535, §§ 5º e 7º, do CPC);
– aplicar eficácia erga omnes e efeito vinculante da decisão proferida, no sentido de atingir processos já transitados em julgado em que não tenha havido manifestação expressa quanto aos índices de correção monetária e taxa de juros (omissão ou simples consideração de seguir os critérios legais).

Toda essa afronta a diversos preceitos constitucionais, supraconstitucionais, legais, principiológicos, lógicos e humanos, se realizou na decisão proferida pelo STF na sexta-feira, dia 18 de dezembro de 2020. E o que sobre essa decisão foi dito na grande mídia? Absolutamente nada! Silêncio total!

Por quê? Porque na conta da elite midiática e econômica brasileira, a Constituição Federal, no que diz respeito aos direitos trabalhistas, não passa de uma folha de papel que pode (e até deve) ser rasgada constantemente.

O curioso é que também nada se viu falar sobre o assunto no meio sindical e muito pouco no campo jurídico trabalhista. A explicação para isso talvez seja a de que depois de tantas e reiteradas perdas de direitos sofrer uma diminuição na correção monetária e nos juros já não seria um baque tão grande. Envolvido em certo desânimo, foi como se o meio jurídico e o mundo do trabalho dissessem: “o que é um pouco mais de barro para quem já está totalmente atolado na lama?!”.

Mas há também uma explicação quantitativa. A questão é que depois de tantas e sucessivas retiradas de direitos e a disseminação de formas precárias de contratação, acrescidas dos obstáculos para o acesso à Justiça do Trabalho, são pouquíssimos(as) os(as) brasileiros(as) que possuem carteira assinada e direitos trabalhistas garantidos legalmente. São menos ainda aqueles(as) cujos direitos trabalhistas são de fato respeitados. E uma porção muito menor os(as) que se arvoram em acionar a Justiça do Trabalho para haver os seus direitos (em 2019, foram 1,5 milhões de reclamações, dentro de um universo de 33,6 milhões de trabalhadores com carteira assinada). Dos(as) que propõem as reclamações têm sido cada vez menor o número daqueles(as) que efetivamente têm seus pleitos julgados procedentes, dada uma considerável mudança de postura da Justiça do Trabalho frente ao pressuposto da prevalência dos preceitos jurídicos sociais sobre os interesses econômicos. Com isso, o tema referente a juros de mora e correção monetária dos créditos trabalhistas passou a ser quase uma espécie de “privilégio” para pouquíssimos cidadãos e cidadãs brasileiros(as).

Por outro lado, esse mesmo dado afasta qualquer validade do argumento econômico utilizado no voto para operar essa extrema engenharia jurídica contra a Constituição e contra a lei. Isto porque, a diminuição de 25% (ou um pouco mais) nos cálculos de atualização de precários direitos trabalhistas de não mais de 2 milhões de pessoas não tem como gerar efeito econômico significante em um país de 212 milhões de pessoas.

Fato é que a posição firmada pelo Supremo acabou servindo para que fossem abertas todas as portas da completa desregulação das relações de trabalho no Brasil.

Aliás, na mesma sessão do dia 18 de dezembro, no julgamento da ADC 66, o passo seguinte foi dado. Reproduzindo argumentos utilizados na ADPF 324 (a que permitiu a terceirização da atividade-fim), foi declarada a constitucionalidade do artigo 129 da Lei 11.196/2005, que estabelece que, para fins fiscais e previdenciários, a prestação de serviços intelectuais, inclusive os de natureza científica, artística ou cultural, se sujeita somente à legislação aplicável às pessoas jurídicas, não importando se o serviço é prestado em caráter personalíssimo ou não, com ou sem a designação de quaisquer obrigações a sócios ou empregados da sociedade prestadora de serviços.

O julgamento praticamente legitimou as fraudes trabalhistas operadas pela “pejotização”, que é a transformação artificial do trabalhador em pessoa jurídica, como se fosse uma opção das partes elegerem ou não o Direito do Trabalho para reger a sua respectiva relação de trabalho. A decisão, ainda, contraria preceitos fundamentais, fincados na base de formação dos direitos sociais, sobre a não distinção entre os diversos tipos de trabalho, como prescreve, inclusive, o parágrafo único do art. 3º da CLT (não modificado nem mesmo pela Lei n. 13.467/17), nos seguintes termos: “Art. 3º – Considera-se empregado toda pessoa física que prestar serviços de natureza não eventual a empregador, sob a dependência deste e mediante salário. Parágrafo único – Não haverá distinções relativas à espécie de emprego e à condição de trabalhador, nem entre o trabalho intelectual, técnico e manual.”

Relevante registrar, na linha da identificação das coincidências, que esta decisão veio no contexto de uma intensa mobilização da Receita Federal, que vinha autuando empresas de telecomunicação pela utilização fraudulenta de vínculos com pessoas jurídicas para a formalização da contratação de âncoras e artistas, para mascarar a relação de emprego e reduzir o custo tributário e social da contratação.[ii] E também não se viu qualquer repercussão midiática a respeito.

A grande questão é que essa suprema desconsideração dos preceitos jurídicos constitucionais efetivada pelas decisões mencionadas é bem mais que um novo baque nos direitos trabalhistas. Trata-se de situação extremamente grave e precisa ser percebida enquanto tal, para o bem do efetivo respeito ao Estado Democrático de Direito.

Nos termos em que foram proferidas, as decisões, correndo totalmente ao largo das amarras da Constituição e dos diversos preceitos legais e processuais aplicáveis à matéria, abrem espaço decisivo para uma situação de completa destruição das garantias constitucionais, tanto trabalhistas quando de qualquer outra natureza (incluindo a liberdade de expressão e até mesmo a liberdade de imprensa), proporcionando, até mesmo, que o próprio Supremo veja reduzida ou eliminada a sua legitimidade para invocar a ordem constitucional contra os arroubos autoritários e as inúmeras afrontas aos direitos fundamentais que vem se avolumando, de forma cada vez mais abrangente e convicta, na realidade nacional – vide os inúmeros casos de feminicídio, racismo, intolerância, discriminação e ofensas verbas e institucionais que se multiplicam no noticiário a cada dia.

É urgente virar esse jogo, porque ao final todos(as) sairemos perdendo! Mesmo a grande mídia e o setor econômico que aplaudem (ou silenciam) os desmontes constitucionais trabalhistas serão vítimas de algum modo da quebra da institucionalidade fincada no pacto de solidariedade social e humana.

Do ponto de vista estritamente jurídico, a multiplicidade de formas permite estabelecer contrapontos ao movimento de desmanche total.

Com efeito, na seara trabalhista sempre se recusou a conceber o desrespeito aos direitos trabalhistas como um autêntico ato ilícito. Era como se o empregador tivesse “o direito” de descumprir as leis. Toda carga punitiva dos “inadimplementos” trabalhistas – como se costuma dizer – era depositada nos juros de mora de 1% ao mês a partir da propositura da reclamação trabalhista, acompanhados da correção monetária.

A noção de perdas e danos pela submissão a uma situação ilegal era solenemente afastada na maior parte dos julgamentos, sob o fundamento de que a reparação já estava dada pelos institutos em questão, esquecendo-se que o ato ilícito requer, por si, efeito específico, já que quem comete um ilícito em uma relação contratual impõe ao outro uma situação de vida inesperada, repleta de consequências nefastas e, consequentemente, danos materiais e morais. Por exemplo, um empregador que não anota a carteira de trabalho de seu empregado deixa este trabalhador em uma situação de total insegurança e afastado das condições ideais de trabalho fixadas exatamente nos aparatos da legislação trabalhista. Há perdas e danos evidentemente pressupostos – que não requerem sequer prova – nesta situação, como se verifica, igualmente, na perda do emprego sem o recebimento das verbas rescisórias (de incontestável natureza salarial).

Pois bem, diante da retirada de toda a carga punitiva do ilícito trabalhista que se atribuía aos juros e a correção monetária abre-se, também, necessariamente, outra porta, a da visualização da reparação das perdas e danos experimentados pela vítima do ato ilícito, que é do que efetivamente se cuida quando se declara que um direito trabalhista não foi respeitado.

O intenso debate público que se desenvolveu no Brasil em torno da legislação trabalhista, em um momento de clamor pela moralização das instituições e pela ética nas relações sociais, trouxe como efeito mínimo inevitável o reconhecimento de que o desrespeito aos direitos trabalhistas constitui um ato ilícito, que deve ser punido para a devida preservação da autoridade da ordem jurídica, não se podendo compreender como válidos negócios jurídicos que simplesmente pela forma tentam aniquilar direitos.

Durante décadas se recusou apontar a prática de desrespeito a direitos trabalhistas como ato ilícito, tratando-a pelo eufemismo de inadimplemento contratual. A correção da situação tida por “mera irregularidade” não era carregada de efeito punitivo, não se pondo, pois, como um resgate da autoridade da ordem jurídica e sim como uma falaciosa e enganosa “pacificação do conflito”. As farras de alguns empregadores que até o momento habitavam o cotidiano das relações de trabalho e das Varas do Trabalho e às quais se atribuía o status de um “nada jurídico”, tais como: contratação sem registro; pagamento de salário “por fora”; ausência de cartões de ponto que reflitam a efetiva jornada trabalhada; falta de pagamento de verbas rescisórias; não recolhimento de FGTS etc., adentram no campo do ilícito. Esse pressuposto teórico reforça o caráter punitivo que se deve atribuir a tais práticas, não sendo, pois, suficientes as condenações para o pagamento apenas do valor correspondente ao que seria devido se o ilícito não tivesse sido cometido.

O fato é que dos argumentos que buscam na ordem jurídica fórmulas para desconsiderar a ordem jurídica sobressaem contradições inevitáveis. Por isso, é no próprio argumento da equiparação do crédito trabalhista ao crédito cível que se encontra o fundamento decisivo para, enfim, perceber o desrespeito ao direito trabalhista como um ato ilícito, gerando não apenas a possibilidade de reparação das perdas e danos, conforme estabelecido no art. 404 do Código Civil, assim como as diretrizes traçadas para a responsabilidade civil, nos moles dos artigos 186, 187, 927 e 944 do Código Civil.

Possibilita – e até exige – igualmente, a aplicação de vários outros dispositivos punitivos das práticas ilícitas, com atração, sobretudo, das noções de reincidência e até mesmo de delinquência, como forma, inclusive, de proteger o sistema econômico.

Com efeito, dos termos da Lei n. 12.529/11, que estrutura o Sistema Brasileiro de Defesa da Concorrência e dispõe sobre a prevenção e repressão às infrações contra a ordem econômica, resta clara a noção de que o desrespeito aos direitos trabalhistas representa uma infração à ordem econômica. Conforme previsto na referida lei, constituem infração da ordem econômica, independentemente de culpa, os atos sob qualquer forma manifestados, que tenham por objeto ou possam produzir os seguintes efeitos, ainda que não sejam alcançados: I – limitar, falsear ou de qualquer forma prejudicar a livre concorrência ou a livre iniciativa; (….) III – aumentar arbitrariamente os lucros.

Assim, o ilícito trabalhista voltado à obtenção de vantagem sobre a concorrência ou para majorar lucros representa grave infração da ordem econômica, ainda mais quando se realiza de forma reincidente.

Por sua vez, a reincidência, costumeiramente negada na esfera trabalhistas, está expressamente prevista, por exemplo, no art. 59, da Lei n. 8.078/90 (Código de Defesa do Consumidor). No Direito Penal a reincidência constitui circunstância agravante da pena (art. 61, I, CP) e impede a concessão de fiança (art. 323, III, CPP).

Enfim, na ausência de um critério objetivo legal específico de reparação de danos e de punição pelo descumprimento de direitos trabalhistas, passa a ser necessário qualificar a conduta ilícita praticada, avaliar os danos experimentados pela vítima e buscar no ordenamento os fundamentos para a identificação das necessárias implicações jurídicas aplicáveis ao fato, dado que o crédito trabalhista, doravante, se equipara ao crédito cível, para todos os efeitos.

*Jorge Luiz Souto Maior é professor de direito trabalhista na Faculdade de Direito da USP. Autor, entre outros livros, de Dano moral nas relações de emprego (estúdio editores).

Notas


[i]. “Art. 404. As perdas e danos, nas obrigações de pagamento em dinheiro, serão pagas com atualização monetária segundo índices oficiais regularmente estabelecidos, abrangendo juros, custas e honorários de advogado, sem prejuízo da pena convencional.

Parágrafo único. Provado que os juros da mora não cobrem o prejuízo, e não havendo pena convencional, pode o juiz conceder ao credor indenização suplementar.”.

[ii]. https://noticiasdatv.uol.com.br/noticia/televisao/receita-federal-acusa-globo-de-associacao-criminosa-com-artistas-47747.

 

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