Livro de apocalipse

Escultura José Resende / Esco;a Politécnica USP/ São Paulo / foto: A.Saggese
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Por FRIEDRICH ENGELS*

Comentário sobre um dos livros da Bíblia

Uma ciência quase desconhecida neste país, exceto para alguns teólogos liberais que planejam mantê-la tão secreta quanto possível, é a crítica histórica e linguística da Bíblia, a investigação sobre a idade, origem e valor histórico dos diversos escritos que compõem o Antigo e o Novo Testamento.

Esta ciência é quase exclusivamente alemã. E, além disso, o pouco que adentrou além dos limites da Alemanha não é exatamente a melhor parte dela: é a crítica latitudinariana que se orgulha de ser completa, sem preconceitos e, ao mesmo tempo, cristã. Os livros não são exatamente revelados pelo Espírito Santo, mas são revelações da divindade através do espírito sagrado da humanidade etc. Assim, a escola de Tübingen (Bauer, Gfrörer etc.)[i] é a mais proeminente na Holanda e na Suíça, bem como na Inglaterra e, se as pessoas vão um pouco mais longe, seguem Strauss. O mesmo espírito ameno, mas totalmente a-histórico, domina o renomado Ernest Renan, que é apenas um pobre plagiador dos críticos alemães. De todas as suas obras, nada lhe pertence senão o sentimentalismo estético do pensamento penetrante e a linguagem diluída que o envolve.

Uma coisa boa, no entanto, Ernest Renan disse: “Se você quiser ter uma ideia distinta de como eram as primeiras comunidades cristãs, não as compare com as congregações paroquiais de nossos dias; elas eram como seções locais da Associação Internacional dos Trabalhadores”.

Isto está correto. O cristianismo se apoderou das massas, exatamente como o socialismo moderno, sob a forma de uma variedade de seitas e mais ainda de visões individuais conflitantes – algumas mais claras, outras mais confusas, estas últimas a grande maioria –, mas todas opostas ao sistema dominante para “os poderes que existem”[ii].

Tomemos, por exemplo, o nosso Livro de apocalipse, do qual veremos que, em vez de ser o mais sombrio e misterioso, é o livro mais simples e mais claro de todo o Novo Testamento. No momento, devemos pedir ao leitor que acredite no que vamos provar pouco a pouco5. Que foi escrito no ano 68 de nossa era ou janeiro de 69 d.C., e que, portanto, não é apenas o único livro do Novo Testamento cuja data é realmente fixa, mas também o livro mais antigo. Através dele podemos ver a imagem refletida das características do cristianismo em 68 d.C.

Para começar, seitas e mais seitas repetidas vezes. Nas mensagens para as sete igrejas da Ásia[iii], há pelo menos três seitas mencionadas, das quais, de outra forma, nada sabemos: os nicolaitanos, os balaamitas e os seguidores de uma mulher aqui tipificada pelo nome de Jezabel. Das três, é dito que elas permitiram que seus seguidores comessem coisas sacrificadas aos ídolos e que eles gostavam de fornicação[iv]. É um fato curioso que, com todo grande movimento revolucionário, a questão do “amor livre” chegue ao primeiro plano. Para um grupo de pessoas, como um progresso revolucionário, como um chacoalhar dos velhos grilhões tradicionais, não mais necessários; para outros, como uma bem-vinda doutrina, que recobre confortavelmente todo o tipo de práticas livres e fáceis entre homens e mulheres. Este último, do tipo filistino, parece aqui que está em pequena vantagem; pois a “fornicação” está sempre associada ao consumo de “coisas sacrificadas aos ídolos”, que judeus e cristãos eram estritamente proibidos de fazer, mas que, às vezes, poderia ser perigoso, ou pelo menos desagradável, recusar. Isso mostra, evidentemente, que os amantes livres aqui mencionados geralmente eram inclinados a serem amigos de todos, e tudo menos mártires.

O cristianismo, como todo grande movimento revolucionário, foi feito pelas massas. Surgiu na Palestina, de uma maneira totalmente desconhecida para nós, em um tempo em que novas seitas, novas religiões, novos profetas surgiam aos montes. É, de fato, uma mera mediação, formada espontaneamente a partir do atrito mútuo, das mais progressivas seitas, e depois transformada em doutrina pela adição de teoremas do judeu alexandrino, Philo, e mais tarde de forte infiltração estoica[v]. De fato, se podemos chamar Philo de pai doutrinário do cristianismo, Sêneca era seu tio. Passagens inteiras no Novo Testamento parecem quase literalmente copiadas de suas obras[vi]; e você encontrará, por outro lado, passagens nas sátiras de Persius que parecem copiadas do – até então não escrito – Novo Testamento. De todos esses elementos doutrinários, não há vestígios em nosso Livro de apocalipse. Aqui temos o cristianismo da forma mais crua em que ele foi preservado para nós. Há apenas um ponto dogmático dominante: que os fiéis foram salvos pelo sacrifício de Cristo. Mas como, e por que, é completamente indefinível. Não há nada além da antiga noção judaica e pagã de a que Deus, ou aos deuses, devem ser propiciados sacrifícios, transformada na concepção especificamente cristã (que, de fato, fez do cristianismo a religião universal) de que a morte de Cristo é o grande sacrifício, e que isso basta de uma vez por todas.

Nenhum traço do pecado original. Nada da santíssima trindade. Jesus é “o cordeiro”, mas subordinado a Deus. De fato, em uma passagem (15:3) ele é colocado em pé de igualdade com Moisés. Em vez de um Espírito Santo, existem “os sete espíritos de deus” (3:1 e 4:5). Os santos assassinados (os mártires) clamam a Deus por vingança:

Até quando, ó Senhor santo e verdadeiro, tardarás a fazer justiça, vingando nosso sangue contra os habitantes da terra? (Apocalipse, 6:10) –, um sentimento que, mais tarde, foi cuidadosamente retirado do código teórico-moral do cristianismo, mas realizado praticamente como vingança assim que os cristãos assumiram o controle sobre os pagãos.

Naturalmente, o cristianismo se apresenta como uma mera seita do judaísmo. Assim é dito nas mensagens para as sete igrejas:

Conheço tua tribulação, tua indigência — és rico, porém! — e as blasfêmias de alguns dos que se afirmam judeus [não cristãos] mas não são — pelo contrário, são uma sinagoga de Satanás! (Apocalipse, 2:9)

E, novamente, no capítulo 3, versículo 9: “Vou entregar-te alguns da sinagoga de Satanás, que se afirmam judeus mas não são” (Apocalipse, 3:9). Assim, nosso autor, no 69º ano de nossa era, não tinha a menor ideia de que ele representaria uma nova fase do desenvolvimento religioso destinada a se tornar um dos maiores elementos da revolução. Assim, também, quando os santos aparecem diante do trono de Deus, há inicialmente 144.000 judeus, 12.000 de cada uma das 12 tribos, e somente depois deles são admitidos os pagãos que ingressaram nesta nova fase do judaísmo.

Tal foi o cristianismo no ano 68 d.C., conforme descrito no mais antigo e único livro do Novo Testamento cuja autenticidade não pode ser contestada. Quem foi o autor não sabemos. Ele se chama João. Nem mesmo finge ser o “apóstolo” João, pois na fundação da “nova Jerusalém” estão “os nomes dos 12 apóstolos do cordeiro” (21:14). Portanto, eles deviam estar mortos quando ele escreveu. Que ele era judeu isto é claro devido aos hebraísmos abundantes em seu grego, o que excede em muito a gramática ruim, de longe, e até mesmo os outros livros do Novo Testamento. Que o chamado Evangelho de João, as epístolas de João e este livro têm pelo menos três autores diferentes é provado claramente por sua linguagem, se as doutrinas que eles contêm, colidindo completamente umas com as outras, não o provam.

As visões apocalípticas que compõem quase todo o livro da “Revelação” são tomadas, na maioria dos casos, de modo literal dos profetas clássicos do Antigo Testamento e de seus imitadores posteriores, começando com o Livro de Daniel (cerca de 190 antes de nossa era, e profetizando coisas que haviam ocorrido séculos antes) e terminando com o Livro de Enoque, uma mistura apócrifa em grego escrita pouco antes do início de nossa era. A invenção original, mesmo o agrupamento das visões roubadas, é extremamente pobre. O professor Ferdinand Benary, por quem sou grato pelo seu curso de palestras na Universidade de Berlim, em 1841, nas quais[vii] provou o que se segue, a cada capítulo e verso, de onde nosso autor emprestou todas as suas pretensas visões. Portanto, não adianta seguir nosso “João” através de todos os seus caprichos. É melhor chegarmos ao ponto que descobre o mistério disso em todos os eventos deste curioso livro.

Em total oposição a todos os seus comentadores ortodoxos, que esperam que suas profecias ainda sejam realizadas, depois de mais de 1.800 anos, “João” nunca se abstém de dizer: “Feliz o leitor e os ouvintes das palavras desta profecia, se observarem o que nela está escrito, pois o Tempo está próximo” (Apocalipse, 1:3).

E esse é especialmente o caso da crise que ele prevê e que, evidentemente, espera ver.

Esta crise é a grande luta final entre Deus e o “Anticristo”, como outros o nomearam. Os capítulos decisivos são o 13 e o 17. Para deixar de fora todas as ornamentações desnecessárias, “João” vê, surgindo do mar, uma besta que tem sete cabeças e dez chifres (os chifres não nos interessam de maneira alguma). “Uma de suas cabeças parecia mortalmente ferida, mas a ferida mortal foi curada”. (Apocalipse, 13:3)

Este animal tinha poder sobre a Terra, contra Deus e o cordeiro, durante 42 meses (metade dos sete anos sagrados), e todos os homens foram compelidos durante esse tempo a ter a marca do animal ou o número de seu nome na testa ou na mão direita. “Aqui é preciso discernimento! Quem é inteligente calcule o número da Besta, pois é um número de homem: seu número é 666!” (Apocalipse, 13:18)

Irineu, no século II, já sabia que, pela cabeça ferida e curada, significava o imperador Nero. Ele havia sido o primeiro grande perseguidor dos cristãos. Em sua morte, espalhou-se um boato, especialmente na Acaia e na Ásia, de que ele não estava morto, mas apenas ferido, e que um dia reapareceria e espalharia o terror por todo o mundo (Tácito, Ann. VI, 22)[viii]. Ao mesmo tempo, Irineu conheceu outra escritura muito antiga, que fez o número do nome 616, em vez de 666[ix].

No capítulo 17, a besta com as sete cabeças aparece novamente, desta vez montada pela conhecida Dama Vermelha, cuja descrição elegante o leitor pode observar no próprio livro. Aqui, um anjo explica a João:

A Besta que viste existia, mas não existe mais… As sete cabeças são sete montes sobre os quais a mulher está sentada. São também sete reis, dos quais cinco já caíram, um existe e o outro ainda não veio, mas quando vier deverá permanecer por pouco tempo. A Besta que existia e não existe mais é ela própria o oitavo e também um dos sete… A mulher que viste, enfim, é a Grande Cidade que está reinando sobre os reis da terra. (Apocalipse, 17:8)

Aqui, então, temos duas claras declarações: (1) A Dama Vermelha é Roma, a grande cidade que reina sobre os reis da Terra; (2) no momento em que o livro foi escrito, reina o sexto imperador romano; depois dele, outro virá a reinar por um curto período de tempo; e então vem o retorno de quem “é dos sete”, que foi ferido, mas curado, e cujo nome está contido naquele número misterioso, e que Irineu ainda sabia que se tratava de Nero.

Contando com Augusto, temos: Augusto, Tibério, Calígula, Cláudio e Nero, o quinto. O sexto é Galba, cuja ascensão ao trono foi o sinal de uma insurreição das legiões, especialmente na Gália, liderada por Otho, sucessor de Galba. Assim, nosso livro deve ter sido escrito sob o reinado de Galba, que durou de 9 de junho de 68 a 15 de janeiro de 69. E prediz o retorno de Nero como iminente.

Mas agora a prova final – o número. Isso também foi descoberto por Ferdinand Benary, e desde então nunca mais foi contestado no mundo científico.

Cerca de 300 anos antes de nossa era, os judeus começaram a usar suas letras como símbolos para números. Os rabinos especulativos viram nisso um novo método para interpretação mística, ou Kabbala. Palavras secretas foram expressas pela figura, produzida pela adição dos valores numéricos das letras nelas contidas. A essa nova ciência eles chamaram “gematriah” –geometria. Agora, essa ciência é aplicada aqui pelo nosso “João”. Temos que provar (1) que o número contém o nome de um homem, e esse homem é Nero; e (2) que a solução apresentada é válida tanto para a leitura de 666 quanto para a leitura igualmente antiga de 616. Tomemos letras hebraicas e seus valores –

NeronKesar, o imperador Neron, grego NéronKaisar. Agora, se em vez da grafia grega, transferirmos o latim Nero Caesar para caracteres hebraicos, o nun no final de Neron desaparece e, com ela, o valor de 50. Isso nos leva à outra leitura antiga de 616 e, portanto, a prova é a mais perfeita possível[x].

O livro misterioso, então, agora está perfeitamente claro. “João” prevê o retorno de Nero por volta do ano 70 e um reinado de terror sob ele, que deve durar 42 meses, ou 1.260 dias. Após esse prazo, Deus surge e derrota Nero, o Anticristo, destrói a grande cidade através do fogo e amarra o diabo por mil anos. O milênio começa, e assim por diante. Tudo isso agora perdeu todo o interesse, exceto as pessoas ignorantes que ainda podem tentar calcular o dia do juízo final. Mas, como uma imagem autêntica do cristianismo quase primitivo, desenhada por um deles, o livro vale mais do que todo o resto do Novo Testamento.

Friedrich Engels (1820-1895), teórico e ativista socialista/comunista, é autor, entre outros livros de A origem da família, da propriedade privada e do Estado (Boitempo).

Tradução: Lucas Parreira Álvares, com revisão de Gabriel Perdigão para a Verinotio – Revista on-line de Filosofia e Ciências Humanas.

Publicado originalmente na Revista Progress, vol. II, no. 2, August, 1883.

 

Notas


[i]A escola de Tübingen, composta por um grupo de teólogos protestantes alemães liberais, foi fundada em 1830 por Ferdinand Christian Baur, professor da Universidade de Tübingen. (Diferente do grupo de teólogos de Tübingen que existia no último quartel do século XVIII, às vezes é chamado de escola neo-Tübingen.) Seus seguidores se engajaram em um estudo crítico da literatura cristã antiga, notadamente o Novo Testamento. Sem essencialmente abandonar os limites da teologia cristã, eles foram os primeiros a investigar as fontes do Novo Testamento. No início de sua carreira filosófica, David Strauss também pertencia à escola de Tübingen, mas posteriormente suas críticas se tornaram muito mais radicais. A escola se desintegrou na década de 1860. Engels fez uma descrição detalhada dessa escola em seu artigo “Sobre a história do cristianismo primitivo”. [NEI]

[ii]Do original: “thepowersthatbe”, expressão utilizada para se referir a grupos de indivíduos

que possuem poder/autoridade sobre algo/alguém em específico. [NT] 5Do original: “by-and-bye”.

[iii]Apocalipse, 2:6, 14, 20.

[iv]Do original: “fornication”.

[v] Os estoicos – discípulos do filósofo Zenão de Cítio, que ensinou na Estoa em Atenas. Daí o nome desta escola de filosofia helenística e romana, fundada no final do século IV e início do século III a.C. Entre seus seguidores estavam filósofos antigos, como Sêneca (1º século d.C.), Filo de Alexandria (1º século d.C.) e Marco Aurélio (2º d.C.). Os estoicos procuraram corroborar a independência interior da personalidade humana, mas, ao mesmo tempo, demonstraram um extremo senso de resignação em relação ao mundo circundante e não fizeram nenhuma tentativa de mudá-lo. O estoicismo introduziu uma estrita divisão da filosofia em lógica, física e ética. Exerceu uma influência considerável na formação da religião cristã. [NEI]

[vi]Veja o capítulo “Sêneca no Novo Testamento”, em Cristo e os Césares de B. Bauer, pp. 47-61.

[NEI]

[vii] Ferdinand Benary ministrou um curso de palestras na Universidade de Berlim e, simultaneamente, publicou-as no JahrbücherfürwissenschaftlicheKritik (Berlim, n. 17-20 e 30-32 para 1841). [NEI]

[viii] A referência é imprecisa. Veja Tácito, Histórias, 2, 8. [NEI]

[ix] Irineu, RefutationandOverthrowofGnosisfalselysocalled. (AgainsttheHeresies), V, 28-

  1. [NEI]

[x] A grafia acima do nome, com e sem o segundo nun, é a que ocorre no Talmud e, portanto, é autêntica. [NEI]

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