Por Laymert Garcia dos Santos*
O texto que segue abaixo foi apresentado no fórum Postcolonial Perspectives from the Global South, promovido pelo Instituto Goethe de Jakarta, Indonésia, em janeiro de 2019. Constatando que boa parte da discussão da problemática pós-colonial se fazia e se faz passando pelo referencial ocidental e eurocêntrico (até porque no campo acadêmico foram scholars anglo-americanos que instituíram o tema), e que isso obscurecia as relações Sul-Sul no passado e no presente, Heinrich Blömeke decidiu promover um fórum para que intelectuais da África, da Ásia e da América Latina pudessem conversar e trocar ideias sobre como as diferentes sociedades vem respondendo às questões de língua, identidade e papel da cultura no contesto da descolonização.
Convidado, e considerando que meus colegas da Indonésia, da África do Sul, de Singapura e da Índia também deveriam tratar do processo de descolonização como um movimento de des-ocidentalização e de valorização da diversidade cultural de seus próprios países, achei que deveria aproveitar a oportunidade para apresentar o que foi a experiência de descolonização cultural dos governos populares de Lula e Dilma.
Não me enganei – o interesse pela experimentação brasileira foi muito grande, gerando intensa discussão. O que, aliás, não me surpreendeu. É raro encontrar uma estratégia de política cultural tão instigante quanto a que foi implementada no Ministério da Cultura durante aqueles anos.
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O tema desse encontro é absolutamente contemporâneo, em virtude das transformações geopolíticas que estão acontecendo, com o deslocamento do eixo de poder para um mundo multipolar, no qual o continente asiático adquire uma importância crescente. Por isso, estou feliz de poder conhecer um pouco da Indonésia e de aprender com vocês como estão experienciando essa mudança de perspectiva.
Venho da América do Sul, mais especificamente, do Brasil. E posso afirmar que nosso continente sem dúvida conheceu uma experiência pós-colonial muito importante, a partir da década de 80, quando vários dos países da região saíram de regimes ditatoriais para democracias. Tal experiência, correspondendo a um anseio de inclusão de diversas parcelas marginalizadas das populações nacionais até então, se refletiu na elaboração de novas Constituições, no Brasil, na Colômbia, no Equador, na Bolívia, na Venezuela, na Argentina. Vários países sul-americanos reconheceram os direitos das populações tradicionais, indígenas e negras, principalmente. Direito à demarcação e preservação de seus territórios, direito ao mantimento e produção de suas culturas e conhecimentos. Alguns se tornaram constitucionalmente multidiversos, pluri-étnicos e pluriculturais.
Durante a década de 90 e o primeiro decênio dos anos 2000 ampliou-se, junto com o peso crescente da questão ambiental na cena política continental e internacional, a presença, a voz e o discurso da diversidade. E é claro que a tônica principal dessa expansão tinha um forte componente pós-colonial, na medida em que se buscava afirmar as singularidades e diferenças desses povos em relação às narrativas eurocêntricas, euro-americanas, ocidentais. Isso se deu porque os povos associaram a proteção da cultura e dos conhecimentos tradicionais à defesa de um meio ambiente ameaçado por acelerada deterioração.
Na Bolívia, no Equador, no Perú, e também no Brasil, assistimos à reelaboração do papel das culturas ancestrais enquanto condição de crítica e de superação do modelo de desenvolvimento imposto de fora para dentro. Neste sentido, a superação do colonialismo e do neo-colonialismo compreende também uma dimensão geopolítica. Esta não se restringe ao universo das relações internacionais, ao “world-game” dos Estados-Nações e de seus interesses.
O “Geo” precisa ser entendido como Terra e terra, substrato que não pode ser esquecido quando se pensa em política, cultura e tecnologia, pois não é mais possível ignorar a relação entre planeta e chão, entre o mundial e o local, se pensarmos que tanto as culturas tradicionais quanto as tecnologias são geradas no diálogo entre o humano e o meio.
Entretanto, é preciso atentar desde já para o fato de que a irrupção dessas populações na cena política e cultural não significava uma regressão ou um anacronismo pré-moderno, como muitas vezes as elites locais encararam os novos questionamentos. Tampouco se tratava de uma postura eminentemente reativa, ressentida ou revanchista.
O que se viu em todo o continente sul-americano foi a reivindicação do direito a um diferente modo de ser contemporâneo, para lidar com situações e problemas contemporâneos. Não se tratava de se tentar voltar para trás, mas sim de construir um futuro diferente daquele que havia sido programado pelo colonialismo e pelo neo-colonialismo. Nesse sentido, os contornos do assim chamado “pós-colonial” estabelecidos pelos scholars ocidentais não correspondiam exatamente às novas narrativas porque estas partiam de outras referências, outros parâmetros, outras lógicas, outras ontologias, outras epistemologias.
A afirmação da diversidade étnica e cultural durante quase um quarto de século mudou a compreensão que tínhamos de nossos próprios países. A experimentação se disseminou e se desconcentrou – as capitais deixaram de ser os únicos polos de produção artística e cultural. Aumentou também o intercâmbio entre os países da América do Sul, e o Brasil começou a voltar-se para dentro e para os vizinhos, deixando de dar as costas ao continente.
A produção e a criação na música, no cinema, na dança, na culinária, nas artes plásticas , no design começaram a refletir a riqueza e a complexidade que vieram à tona. Tal valorização não ocorreu só no âmbito da cultura popular, mas também no da cultura erudita e na cultura digital. E não foi por acaso que iniciativas como a do Instituto Goethe, abrindo-se para o diálogo Sul-Sul, foram muito bem recebidas em diversas capitais sul-americanas. Havia um desejo intenso de intercâmbio de experiências e de conhecimento da cultura do Outro, fosse esse Outro do passado ou do presente.
Creio não ser um exagero dizer que parcelas importantes das populações “descobriram” ou “redescobriram” seus próprios países, sobretudo as novas gerações. Mas tal movimento foi, ao mesmo tempo, causa e consequência de mudanças trazidas por novas políticas de Estado, políticas democratizantes, voltadas para a inclusão.
Tomemos, por exemplo, o caso do Brasil durante os anos 2003-2016, anos de governos progressistas, democráticos e populares.
A elite brasileira costuma considerar a cultura em duas chaves: como cultura superior, ela é ornamento de luxo, ilustração, traço de distinção; como cultura de massa, é produto de consumo, mercadoria, na lógica da indústria cultural e do entertainment. E foi também nessa perspectiva que os sucessivos governos trataram a cultura brasileira, desde sempre.Até o governo Lula.
Por isso mesmo, em termos propriamente culturais, o Ministério da Cultura foi irrelevante desde sua criação em 1985. Foi preciso esperar a ascensão de um presidente-operário e a nomeação de um ministro “negromestiço” (o cantor e compositor Gilberto Gil), para que, enfim, o país tivesse uma política de Estado para a cultura, à altura da riqueza, da diversidade e da inventividade do povo brasileiro. Como se a elite colonizada-colonizadora fosse incapaz de reconhecer a importância estratégica da cultura para a construção de uma nação e de um futuro.
Basta ler o discurso de posse de Gilberto Gil como ministro da Cultura, em 2 de janeiro de 2003, para perceber que uma página foi virada e que entrávamos numa nova era. Olhando pelo retrovisor, fica evidente que tudo já estava lá, nesse discurso que as gerações vindouras certamente vão definir como histórico.
Com efeito, descartando as concepções dominantes, Gil colocou a cultura numa outra dimensão e o ministério num outro patamar. E se isso até hoje não foi captado com clareza por todos os setores da sociedade brasileira, foi porque a existência de uma política cultural descolonizadora contou com a incompreensão, mas também com a má fé dos lobbies e dos interesses estabelecidos, que não queriam mudança alguma e desejavam a manutenção de uma hegemonia anacrônica, que passava a ser contrariada.
Gil entendeu que fora escolhido por um homem do povo “e que, como o seu povo, jamais abriu mão da aventura, do fascínio e do desafio do novo”. “E é por isso”– disse ele – “que assumo, como uma das minhas tarefas centrais, aqui, tirar o Ministério da Cultura da distância em que ele se encontra, hoje, do dia a dia dos brasileiros”.
Valendo-se de um conceito antropológico de cultura (fundado nas três grandes matrizes do povo brasileiro – os colonizadores portugueses, os escravos de origem africana e os povos indígenas autóctones), ancorado no nosso saber e no saber fazer, nos nossos gestos, nos nossos jeitos, Gil pensou a cultura como “usina de símbolos de um povo” e, por isso, propôs que o ministério fosse “como uma luz que revela, no passado e no presente, as coisas e os signos que fizeram e fazem, do Brasil, o Brasil”.
E formulou, com a cúpula do Ministério, as linhas mestras de uma estratégia que encarasse de frente o paradoxo central da questão cultural no Brasil: um povo detentor de imensa criatividade, mas sem acesso à produção cultural! Um povo que nunca pôde ir ao cinema, nunca entrou num teatro, nunca viu uma exposição e que, no entanto, inventou, por exemplo, a escola de samba (“escola da vida”), essa ópera de rua fantástica, encenada por milhares de pessoas, que transforma miséria em riqueza, falta em abundância, negatividade em afirmação.
Enfrentar o paradoxo significava colocar a pergunta: o que faria um povo com tanto potencial e capaz de tanta potência se tivesse, além do acesso aos meios, o reconhecimento de seu valor?
Nem o Estado nem o mercado haviam até então colocado a questão nesses termos. Assim, durante os primeiros anos, foi preciso desenhar uma estratégia cultural de Estado, não de governo, isto é, um conjunto de políticas públicas que tornasse o Ministério da Cultura uma instituição capaz de mobilizar as forças culturais existentes no país, em vez de continuar como mero repassador de verbas públicas para o setor privado, no velho esquema clientelista.
Para tanto, foi preciso, antes de tudo, construir inteligência no âmbito do próprio ministério, atraindo jovens profissionais bem preparados e entusiasmados com a nova proposta, e refuncionalizando as estruturas remanescentes. Foi preciso, ainda, elaborar um amplo diagnóstico das condições de produção e de acesso aos bens culturais em todo o país, identificar os agentes culturais, as carências, os obstáculos e os pontos de estrangulamento, rever as legislações pertinentes. Foi preciso atentar para as manifestações da cultura não oficial, para as formas de expressão das periferias, como a pichação, o funk e o hip-hop, e construir as condições e os espaços para que a juventude e as populações tradicionais marginalizadas, como os povos indígenas e os quilombolas, começassem a articular o potencial da diversidade cultural com o potencial da cultura digital. Foi preciso abrir uma discussão pública nacional sobre o estado da cultura no Brasil, por meio do Conselho Nacional de Política Cultural.
Foi preciso estimular as pesquisas sobre os temas contemporâneos e o papel das novas tecnologias por meio da abertura de editais que visavam financiar novos projetos. Foi preciso re-estruturar os museus, apoiar a arqueologia, repensar o incentivo ao cinema e ao teatro, reavaliar o papel das artes plásticas, encontrar uma solução para salvar a ameaçada Bienal de São Paulo, com uma parceria público-privada.
Em suma, o Ministério da Cultura passou, portanto, a investir na elaboração e execução de uma política cultural como parte de um projeto geral de construção do Brasil contemporâneo, isto é, de construção de uma nação que afirma a sua presença no mundo globalizado por meio de uma diferença específica, de seus potenciais, de seus recursos e de sua visão de futuro.
Nesse sentido, vale também assinalar que, desde o início do governo popular, a estratégia do ministério sempre esteve em sintonia direta com a nova política externa desenhada pelo Ministério das Relações Exteriores, que fez o Brasil se posicionar no tabuleiro geopolítico mundial como um país de peso.
Por isso, o Ministério da Cultura teve um papel central na promulgação da Convenção sobre a Proteção e Promoção da Diversidade das Expressões Culturais da Unesco, aprovou em 2009 o selo Mercosul Cultural, e realizou o Ano do Brasil em diversos países. Para se ter uma ideia: no final da década de 2010, o país recebeu o convite de mais de trinta países que queriam acolher o Ano do Brasil… Isso expressava o interesse e a curiosidade da comunidade internacional: em toda parte desejava-se saber que povo era esse que entrava na cena global de modo tão vibrante.
Os adversários da nova política costumavam combatê-la agitando o velho espantalho do “dirigismo estatal”, do “perigo” do “autoritarismo”, da ameaça à “liberdade de expressão” e à “livre-iniciativa”; mas ignoravam sistematicamente o caráter democrático de uma proposta que pretendia promover uma melhor distribuição do dinheiro público captado por meio da legislação específica, combatendo a exclusão e a concentração cultural no Brasil.
De todas as iniciativas dessa mudança de paradigma, a meu ver a mais original e promissora foi a criação de 2.500 Pontos de Cultura pelo Brasil afora, abrindo para 8 milhões de pessoas oportunidades de acesso à produção e à fruição de bens culturais. A meta era criar 5 mil pontos adicionais, no mínimo um por município. A eles deviam se somar a adoção do Vale-Cultura e a ampliação do acesso à banda larga móvel para 125 milhões de pessoas. Visava-se mudar a paisagem cultural de um país emergente que, na verdade já emergira no âmbito dos BRICS.
Os Pontos de Cultura foram centrais na estratégia do Ministério porque era ali que se tramava, com os jovens, a articulação entre cultura e tecnologia. Até recentemente, estávamos acostumados a pensar que o modelo de desenvolvimento moderno e contemporâneo só poderia ocorrer se imitássemos e incorporássemos o modo da lógica euro-americana relacionar cultura e tecnologia.
Mas, com a entrada dos BRICs, sobretudo da China e da Índia, ficou patente que há outros modos, pois chineses e indianos recorrem tanto à lógica ocidental moderna quanto às lógicas tradicionais para fazer valer seu desenvolvimento cultural e tecnológico na dimensão geoestratégica. A pergunta que se impõe, então, é: Seremos capazes de aliar nossa riqueza cultural à produção de tecnologias da informação, de modo a favorecermos um tipo de criação e de invenção que ao mesmo tempo preencha nossas necessidades e aspirações e expresse o nosso modo de ser?
Não se pode mais considerar a questão apenas do ponto de vista da digitalização do patrimônio cultural existente; tampouco da atualização e adaptação “modernizadora” da cultura aos padrões culturais e tecnológicos estabelecidos pelo Ocidente como “cultura global”, nos tempos da primeira globalização.
No nosso caso, tínhamos que pensar a importância estratégica da cultura brasileira em contraste com a cultura euro-americana declinante, mas também com as lógicas culturais ascendentes. Porque não é mais possível pensar separadamente cultura e tecnologia, saber e saber-fazer. O inventor norte-americano Richard Buckminster-Fuller definiu muito bem os termos da problemática, ao apontar que numa sociedade da informação o que conta é “information gathering” e “problem solving”. Ora, para tanto, é preciso um povo cultivado, isto é habilitado a processar de modo criativo problemas e soluções.
Toda essa estratégia de política cultural descolonizdora começou, porém, a ser desmontada com a crise do governo da presidenta Dilma Rousseff e o seu impeachment, em abril de 2016. O golpe, que contou com a participação ativa dos setores mais conservadores do Judiciário, das Forças Armadas, da mídia e das elites, foi completado na eleição presidencial de 2018 – perseguido e preso através de lawfare, o ex-Presidente Lula, candidato favorito, foi impedido de se apresentar. Fraude eleitoral consentida, interferência das Forças Armadas e emprego maciço de fake news asseguraram a vitória e a ascensão ao poder da extrema-direita fascista.
Em suma: não existe mais Estado de Direito, a democracia levou um tiro no coração. Obviamente, nessa perspectiva uma estratégia pós-colonial precisa ser rapidamente aniquilada em todas as frentes. E é o que está acontecendo com o desencadeamento da violência contra índios, negros, LGBT e toda a população marginalizada, ao mesmo tempo em que se revoga os direitos trabalhistas, se extingue o Ministério da Cultura, se ataca a diversidade cultural, se busca censurar as artes e até mesmo os livros didáticos.
Antes de concluir, gostaria, porém, de mencionar rapidamente como todo esse processo se refletiu em meu próprio trabalho. De 2006 a 2010 estive engajado na concepção de um projeto transcultural de realização de uma ópera multimídia para a Bienal de Teatro Música de Munique. A iniciativa partiu da Bienal e do Instituto Goethe-Munique e contou com a participação do ZKM, de Karlsruhe e do Sesc, instituição cultural brasileira. A ideia era apresentar para o público de ópera contemporânea uma visão do desmatamento da Amazônia, através de uma dupla perspectiva: a perspectiva tecno-científica ocidental, que via a floresta de fora para dentro; e a perspectiva xamânica yanomami,, que via a floresta de dentro para fora. Assim, artistas, técnicos e colaboradores europeus, brasileiros e yanomami trabalharam juntos o desafio de confrontar diferenças ontológicas e epistemológicas que precisam dialogar, sem que pensamento ocidental seja, de saída, considerado como superior ao pensamento mágico dos índios. Foi uma experimentação fascinante, cujo resultado foi encenado em Munique e em São Paulo, em 2010, e em Viena, em 2013.
Durante o trabalho, foi ficando cada vez mais claro, para os brasileiros e europeus, que o xamanismo yanomami consistia numa prática fundada numa tecnologia de acesso a mundos virtuais altamente sofisticada. E que era como tecnologia contemporânea que o xamanismo deveria ser considerado. Ou seja: um entendimento de que, para além dos preconceitos, seria possível conceber a contemporaneidade como plural e diversa, com lógicas que talvez possam ser articuladas positivamente, em vez de opostas de modo excludente.
Esse experimento de quatro anos me marcou profundamente. A ponto de decidir explorar a questão um pouco mais, quando surgiu a oportunidade de fazer o filme Xapiri, a partir de um grande encontro de xamãs em uma aldeia yanomami, no coração da floresta amazônica.
Nosso grupo não queria fazer um documentário realista, tampouco um filme antropológico que pretendesse explicar o xamanismo. Queríamos, ao contrário, implicar o espectador no ritual. Tratava-se de uma questão paradoxal, pois íamos fazer um filme sobre algo que só os xamãs podem ver: os xapiri pë. Como então mostrar o que não se pode ver? A partir do conhecimento antropológico e do que os próprios xamãs nos contavam, percebemos que o xamanismo possuía uma tecnologia de geração de imagens audiovisuais muito singular, que talvez pudesse entrar em ressonância com a tecnologia digital ocidental.
O que é a imagem no xamanismo yanomami? Bruce Albert escreve: “As imagens (utupë) que os xamãs yanomami “invocam”, “fazem descer” e “fazem dançar” – no sonho ou no transe – são (…) as de “humanimais” ancestrais que vivem nos tempos das origens (…). Diz-se que tais imagens constituem o “valor de espectro” dos seres primordiais dotados de uma “pele” (corpo) humana(o) e de um nome (identidade) animal.
Elas são percebidas pelos xamãs sob a forma de uma multiplicidade infinita de humanóides minúsculos, enfeitados com pinturas corporais e ornamentos de ofuscante luminosidade. Tais seres-imagens corpusculares, espécie de quanta mitológicos, povoam o mundo em estado livre, tomados por uma incessante atividade de jogos, trocas e guerras que sustenta a dinâmica dos fenômenos visíveis.
Uma vez instalados, durante a iniciação, numa morada celeste associada ao jovem xamã, eles se tornam seus “filhos”, uma forma “aparentada” das imagens humanimais do “primeiro tempo”. São então, segundo o jargão etnográfico, “espíritos auxiliares” (xapiri pë) . Os xapiri pë assim domesticados são selecionados e combinados em cada sessão xamânica, segundo seus atributos e competências. (…)”[i].
No entender de B. Albert, tal modo de ser-imagem fundamental constitui o centro de gravidade do pensamento ontológico e cosmológico yanomami. O antropólogo alerta ainda que as imagens xamânicas, sonhadas ou induzidas por alucinógeno, não devem ser classificadas como o que chamamos de “imagens mentais” (miragens, visões interiores) pois são descritas pelos xamãs como percepções diretas de uma realidade exterior absolutamente tangível. Por outro lado, Bruce Albert é taxativo: “Não há aí fenômeno de representação, mas sim processo de presentificação do invisível. (…) Nem réplicas, nem metáforas, as imagens utupë são antes de tudo estados ontológicos cuja visibilidade intermitente é tornada efetiva durante a sessão xamânica por um efeito de transdução corporal.”[ii]
Com suas técnicas apuradíssimas, os xamãs vêem o que não podemos ver. Mas podemos ver como seus corpos, ao incorporarem os seres-imagens, expressam a passagem destes, ou seja, a metamorfose. Graças a um acoplamento homem-máquina que atualize o máximo das potências do humano e dos aparelhos podemos transformar a passagem das imagens em imagens de passagem, modulando o processo de concretização de tal modo que o visível apareça como uma espécie de configuração-desfiguração-reconfiguração capaz de nos permitir, pelo menos, contaminar a geração de nossas imagens com alguns princípios operatórios análogos aos praticados por eles.
É claro que tal procedimento não torna visível o invisível; mas abre o visível para um movimento de ampliação da percepção e da mente que nos permite esboçar uma impressão estética da riqueza, da complexidade, da beleza, e até mesmo da vertigem, dos riscos inerentes à viagem xamânica.
Assim, Xapiri foi estruturado de tal modo que o espectador possa adentrar pouco a pouco no ritual xamânico: primeiro, chegando em Watoriki, e encontrando esse povo que habita a terra-floresta e que é habitado por ela, povo de um mundo outro, cuja cor predominante é o vermelho; em seguida, vendo os xamãs se prepararem, executando a sua pintura corporal, inalando a yãkohana e começando a dançar e a chamar os xapiripë;; segue-se uma série de “retratos”, que buscam incorporar os traços visíveis e invisíveis que caracterizam os xapiri thëpë: a beleza dos ornamentos, a variedade e a força da expressão, mas também a fulguração dos pontos de luz, dos espíritos auxiliares que irrompem da floresta, e sua inscrição dançante a povoar o peito de cada um.
Na trilha sonora, o tempo todo são entoados os cantos, às vezes correspondendo, às vezes não, ao que se passa na imagem. O ritual vai se adensando, o clima vai se transformando, uma nova rodada de alucinógeno indica que o processo se intensifica, se estende no tempo e tem lugar no cotidiano da aldeia, até que os cantos e as danças anunciam e executam a passagem dos xapiripë nos xapiri thëpë, abrindo caminho para as curas de doentes, a sustentação do céu, a cura da terra…
Uma longa sequência de Levi Hewakalaxima permite ver o xapiri thëpë despojando-se de seus adornos e entregando-os aos outros xamãs, antes de acompanhar o xapiri pë que vai partir. Na sequência final, voltamos à terra-floresta, a seu povo, e à sua continuidade no futuro, através da figura dos meninos.
*Laymert Garcia dos Santos é professor aposentado do departamento de sociologia da Unicamp.
Notas
[i] Albert, Bruce, “Images, traces et « hyper images » : impromptu d´ethnographie noctambule” in imagine ambulat homo Augustin, La Trinité, livre XIV, 4, 6., p. 1
[ii] Idem, p. 4.