A Revolução Alemã (1918-1923)

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Por ANGELA MENDES DE ALMEIDA*

Comentário sobre o livro de Isabel Loureiro

O livro de Isabel Loureiro A Revolução Alemã (1918-1923), publicado pela primeira vez em 2005, foi reeditado recentemente em uma versão revista. Trata-se de um livro de extrema valia. Contém um mosaico de anos cruciais da Alemanha, abarcando imenso número de informações sobre um período rico de acontecimentos naquele país, englobando personagens, grupos, partidos políticos e fatos históricos.

A narrativa é concisa, com um alto grau de minúcia e, ao mesmo tempo, de sensibilidade. Foram cinco anos em que a Alemanha passou por revoluções, tentativas de insurreição, massacres contrarrevolucionários e experiências inovadoras. A par da narrativa cativante dos fatos e do desenho dos personagens, a autora vai entremeando a posição de historiadores e teóricos sobre aqueles episódios, bem como falas, por vezes anedóticas, que descem ao chão da realidade.

No capítulo inicial, Isabel traça um painel do Kaiserreich, o Império Alemão,  unificado sob a condução do chanceler Bismarck e a larga preponderância da Prússia. Atravessa décadas do século XIX e início do XX, situando as peculiaridades alemãs, em geral pouco conhecidas. Vai mostrando, paulatinamente, como as forças políticas dominantes terminam por conduzir à formação de uma sociedade autoritária e militarizada, onde o Exército constitui um modelo de vida, com suas ideias belicistas e expansionistas. Tal preponderância operou no sentido de transformar a disciplina em valor moral, incentivando a aptidão para o servilismo e a submissão. O capítulo mostra ainda o desenvolvimento de um nacionalismo que se volta contra os judeus e uma ideia de expansionismo cujo corolário seria a necessidade de novos espaços. Aqui e ali a autora intercala as expectativas de Marx e a visão de Rosa Luxemburgo sobre aquela Alemanha. Paralelamente descreve a formação da social-democracia alemã, os personagens e grupos políticos originários, Lassalle e, por outro lado, Marx e Engels, o impacto da ilusão pacifista de Bernstein, a resposta ortodoxa de Kautsky e Luxemburgo, bem como a ascensão da burocracia operária, Friedrich Ebert e seus companheiros de tendência, Scheidemann e Noske. Com este capítulo ficam marcados os limites em que as ações revolucionárias do período seguinte se darão, tolhidas pela estrutura administrativa e governamental herdada do Império. O capítulo inspira a refletir sobre as razões pelas quais, mais tarde, nos anos 1930 e 1940, uma parte do povo alemão iria aceitar passivamente o nazismo e até colaborar com ele.

Isabel Loureiro, na esteira de uma historiografia alemã mais recente, divide o período revolucionário em duas fases, a moderada (1918-1919) e a radical (1919- março de 1921), dedicando a cada uma delas um capítulo. No dedicado à fase moderada, na qual tantos fatos cruciais sinalizavam uma forte ruptura do regime imperial, a autora dá toda a importância que possui um acontecimento que iria romper, para sempre, o movimento socialista, a aprovação no Reichstag, pela bancada social-democrata, dos créditos para que a Alemanha aderisse à guerra de 1914-1918, que se iniciava. Jogam ao lixo o internacionalismo proletário e a luta de classes! Dessa resolução, contrária a tudo que a social-democracia pregava até então, surge o Partido Social-democrata Independente Alemão (USPD), dentro do qual se alojaram, como tendências, o Grupo Spartacus, liderado por Rosa Luxemburgo e Karl Liebknecht,criado anteriormente, e os Delegados Revolucionários, liderados por Richard Müller e Ernst Däumig, que iria constituir o germe dos futuros conselhos operários. Grande contribuição dá Isabel ao aprofundar o conhecimento sobre esse grupo e o pensamento conselhista, utilizando uma bibliografia mais recente. A narrativa se aproxima do momento crucial da queda do regime imperial abordando diversos fatos, entre eles a confissão do alto comando militar ao governo, em meados de 1918, de não mais poder assegurar as fronteiras alemãs. Mostra como os generais manipulam a social-democracia para que assuma o governo e seja ela a negociar a paz com os Aliados, ficando com a responsabilidade, junto com partidos burgueses, de assinar o infame Tratado de Versalhes, mais tarde passado à história como “uma punhalada nas costas”, dada pelos civis aos militares. E como os social-democratas do Partido Social Democrata Alemão (SPD), tendo Ebert à frente, se deixaram manipular muito naturalmente.

Enquanto esses manejos eram feitos, no início de outubro a população toma conhecimento da iminente derrota. A revolução começa no fim desse mês com a rebelião dos marinheiros da frota de alto-mar, no Norte. E, de cidade em cidade, na luta pela libertação dos marinheiros presos, a revolução avança até chegar a Berlim, em 9 de novembro. Por seu lado os grupos e partidos revolucionários conseguem mobilizar rapidamente conselhos eleitos em fábricas e quartéis para reunir-se em assembleia e eleger um governo provisório. Pelo princípio da unidade proletária, um valor fundamental na formação do movimento operário alemão, os social-democratas independentes, então em maioria nos conselhos, oferecem ao SPD o lugar de três Comissários do Povo, ficando eles com os outros três lugares. Mais tarde, quando da realização do I Congresso dos Conselhos de Trabalhadores e Soldados, na terceira semana de dezembro, por uma manobra do SPD, os social-democratas independentes acabam por ser marginalizados.

Isabel Loureiro destaca várias vezes a moderação dos trabalhadores: queriam apenas, naqueles momentos, o sufrágio universal e a República. Nesse sentido, hipotecavam as decisões estruturais à futura Assembleia constituinte a ser eleita em data já marcada, 19 de janeiro de 1919. Outro aspecto abordado e aprofundado em relação a esse período é a formação dos corpos francos, como consequência da derrota e desmobilização do Exército. Milícias de voluntários formadas por oficias fiéis à monarquia, soldados sem emprego, estudantes sem universidade, todos reunidos pela ideologia de defesa dos valores do antigo regime. Essas tropas viriam a ter enorme importância na repressão à revolução no período posterior. E no meio disso tudo, a fundação do Partido Comunista Alemão (KPD), na passagem de ano de 1918 para 1919, desde o seu início ligado à Internacional Comunista que se formava na mesma época.

Passando, no capítulo seguinte, à fase radical da revolução (1919- março de 1921), Isabel ilustra com detalhes o caráter explosivo da situação vivida nos primeiros dias de 1919 e a consciência que tinham os trabalhadores e militantes mais decididos de que a revolução estava se esvaindo. A velha social-democracia – o SPD -, totalmente imbuída do papel de estancar a revolução, de não permitir que ela chegasse ao ponto a que tinham chegado na Rússia, demite um social-democrata independente que ainda ocupava o posto importante de chefe da polícia de Berlim. Considerada uma provocação, essa ação desperta a cólera dos trabalhadores. O grupo dos Delegados Revolucionários e o Partido Comunista (KPD) convocam uma manifestação de protesto que, afinal, revela-se gigantesca. Daí para a ocupação de jornais e edifícios, entra-se em uma situação definitivamente insurrecional. Os dirigentes, nessa noite, decidem levar a cabo, na manifestação do dia seguinte, a derrubada do governo, sobretudo porque esperavam um prometido apoio da Divisão Popular da Marinha. No entanto, diante dos cerca de 200 mil trabalhadores presentes na manifestação, os marinheiros e suas armas prometidas não chegam. Os dirigentes colocam-se a questão de recuar e evitar um banho de sangue, o que causa polêmica. Paralelamente setores do movimento operário pedem a unidade dos partidos socialistas. É o momento em que o governo intervém, Noske entra em ação com os corpos francos, desalojando jornais e edifícios ocupados, prendendo e executando sumariamente. O massacre dura uma semana. É no fim desses dramáticos dias que Rosa Luxemburgo e Karl Liebknecht são presos e trucidados, em assassinatos cuidadosamente preparados. E apesar disso as eleições para a Assembleia constituinte se realizam normalmente, dando a vitória ao SPD.

A revolução continua em outras cidades. De grande valor, no livro, é a narrativa detalhada da formação da República dos Conselhos da Baviera, ao sul do país. A autora descreve sucessivamente a fase moderada do movimento, de coexistência entre os conselhos e o parlamento local, liderada por Kurt Eisner, terminada com seu assassinato, e a dispersão dos parlamentares; e a fase radical, em que os conselhos tornam-se o único governo, em que a figura do comunista Eugen Leviné ganha proeminência. Relata ainda o apoio de grandes intelectuais alemães – por exemplo, Martin Buber, Rilke e mais longinquamente Max Weber – à experiência da República dos Conselhos de Trabalhadores, Camponeses e Soldados da Baviera. No primeiro período essa experiência pôde se desenvolver, porém, a repressão do governo central e os corpos francos chegam também para, em algumas batalhas, reconquistar Munique em 2 de maio e fazer da cidade uma terra arrasada, com um terrível massacre que só termina seis dias mais tarde.

Um capítulo final é dedicado às duas tentativas insurrecionais do Partido Comunista Alemão (KPD) já, a essa altura, completamente dependente da Internacional Comunista. Duas tentativas frustradas. A primeira – a “ação de março”, em 24 de março de 1921 – por convocar uma greve geral sem qualquer fundamento, que só levou ao afastamento de grande quantidade de militantes. A segunda, – o “outubro alemão”, no terrível ano de 1923 – quando, em Moscou, dirigentes russos e alemães discutem detalhadamente um plano de insurreição que contava com o apoio dos conselhos de fábrica alemães que iriam se reunir em conferência. Apoio completamente frustrado: no momento em que o dirigente comunista Brandler propõe uma greve geral, a resposta é um longo silêncio, seguido logo depois pela advertência do dirigente social-democrata de que, se o comunista insistisse, eles se retirariam da sala.

A história dramática da Alemanha conclui esse período, mais uma vez, com os trabalhadores recusando uma ação mais radical e seguindo fielmente o SPD. Isabel Loureiro nos prepara, ao longo de todo o livro, para a compreensão dessa moderação essencial do movimento operário alemão. Este painel, aqui sumariamente descrito, transpõe o leitor para a cena daqueles acontecimentos que marcaram o início da República de Weimar.

*Angela Mendes de Almeida é professora de História na PUC-SP. Autora, entre outros livros, de Revolução e Guerra Civil na Espanha (Brasiliense).

Referência


Isabel Loureiro. A Revolução Alemã (1918-1923). 2ª. edição revista. São Paulo, Unesp, 2020, 218 págs.

 

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